"Os ingleses são um povo muito particular e talvez por isso o bom Deus os tenha reunido a todos numa ilha.
Sochi - Há lá algo de mais russo do que chegar ao meu quarto e ligar o samovar para o chá da tarde? Claro que não é um daqueles samovares monumentais, do tempo do Miguel Strogoff, o correio do czar Alexandre II, enviado a Irkutsk, essa cidade à beira do Baical da qual recordo tardes encantadoras. Nem sequer um samovar como o que existia na nossa carruagem do Trans-siberiano, vigiado dia e noite por uma “pravadnika” com cara de esturjão cujo marido deve ter saltado pela janela na hora do casamento, como o Podkoliossin da peça de Nicolai Gogol.
É simples o meu samovar - a palavra é construída, samo (próprio) e varit (cozinhar) -, apenas um bulezinho com uma base que se liga à electricidade e aquece em segundos o Lipton em saquetas.
Ora, a verdade é que, neste caso, Mr. Thomas Johnstone Lipton, um escocês que foi camareiro de navio e adorava velejar, cai aqui tão a propósito como o grande Miguel Strogoff do imarcescível Verne, à mistura com a perseguição dos tártaros, Pigassof, Nadia e o diabo a quatro. Em 1909 já Mr. Lipton tinha uma fortuna colossal graças a uma ideia peregrina: vender chá a pacote para as classe mais baixas a preços suportáveis. Foi quando decidiu organizar, em Turim, um grande torneio internacional de futebol. O troféu para o vencedor tinha o pomposo nome de Crown of Italy World Cup. Ah! Um Campeonato do Mundo! “Tally-ho old chap!”
A pomposidade do nome caiu por terra em menos tempo do que a velha do Mário-Henrique Leiria comeu a nêspera que estava na cama deitada, muito calada, a ver o que acontecia. Ficou simplesmente Lipton Cup, nada de especialmente snobe. Mas Lipton tinha mais com que se preocupar.
Os ingleses são um povo muito particular e talvez por isso o bom Deus os tenha reunido a todos numa ilha. A Football Association não quis nem saber de Lipton, pacotes de chá e Turim incluídos: era o que faltava autorizar equipas britânicas a participar em palhaçadas circenses com gentalha que nem ao certo sabia para que servia uma bola.
Como bom escocês de Glasgow (no meu tempo da primária escrevíamos Glásgua), Lipton era teimoso como um muar. Foi a West Auckland, não longe de Middlesbrough, no condado de Durham, e convenceu uma equipa de mineiros que vegetava nos cafundéus da Northern Amateur League a participar no tal Campeonato do Mundo de Turim, juntamente com os alemães do Stuttgarter Sportfreund, os suíços do FC Winterthur e uma selecção de Turim formada por jogadores do Torino e da Juventus.
Não chegam até hoje ecos da qualidade flagrante dos bravos mineiros de West Auckland, mas sabe-se que bateram o Stuttgarter Sportfreund por 2-0, repetindo o resultado na final, frente ao Winterthur. E foram para casa convictos de que eram, na realidade, campeões do mundo. Convicção que se acentuou dois anos mais tarde, em nova Lipton Cup, dessa vez esmagando a Juventus no jogo decisivo por 6-1.
A Crown of Italy World Cup ficaria, de forma perpétua, nas vitrinas da sede do West Auckland Social Club, não se tivesse dado o caso de algum malandrim resolver levá-la para casa.
Nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima, nem o próprio Thomas Lipton, que não tardou a receber a Royal Victorian Order das mãos da autêntica Victoria Regina, na Capela Savoy, em Londres, por serviços prestados aos negócios a retalho do Britânico Império. Dedicou-se às regatas e desistiu do futebol. Participou cinco vezes na America’s Cup e nunca ganhou. Simpáticos, talvez condoídos, os seus colegas do Royal Ulster Yatch Club ofereceram-lhe um troféu misericordioso: “To the best of all loosers.” Enfim, uma espécie de melhor dos piores.
Não faço ideia se Sir Thomas Johnstone Lipton chegou a ser proprietário de algum samovar. Sei que, se fosse vivo, não lhe emprestava o meu. E dizia-lhe sem grande tartufice que este cházito Lipton não é lá das tais coisas..."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!