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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Em redor de um velho retrato de família

"A propósito de um livro sobre Acácio de Paiva, reencontrei Félix Bermudes. Uma figura grada do Benfica mas também das Letras e da Cultura portuguesa.

O meu bisavô materno era uma figura interessantíssima. Nascido em 1863, foi poeta, prosador, jornalista, autor de peças de teatro e letras de canções e fados, grande boémio de Lisboa no início do século passado, Acácio de Paiva trabalhou nas Alfândegas ao mesmo tempo que foi redactor de jornais como «O Século», o «Diário de Notícias» ou «O Mundo». Foi director do «Suplemento Ilustrado» de »O Século», colaborou intensamente noutros jornais, revistas e publicações, destacando-se entre elas e «Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro», a revista «Ilustração Portuguesa» e o «Suplemento Humorístico» de «O Século» e ainda o jornal portuense «Actualidades» e «O Mensageiro», de Leiria, terra de onde era natural.
Escrito por António Almeida Santos Nunes, o livro «Falando de Acácio de Paiva», recentemente publicado pela comemoração dos 150 anos do seu nascimento, define bem a imagem de alguém que escreveu milhares de versos, fundos, pagelas, folhetins, artigos, ecos, crónicas, revistas e peças de teatro.
Cabe aqui dizer, que com base em tudo o que sei sobre o meu ilustra e encantador bisavô, nunca me constou que se tenha interessado minimamente por Futebol, actividade que, aliás, tinha sido recentemente implantada em Portugal e começava aos poucos a conquistar o gosto popular. Mas isso não evita que o tenha trazido a estas suas páginas e por um motivo bem claro que já vai perceber qual é.
O livro de António Almeida Santos Nunes é profusamente ilustrado com recortes de peças literárias e jornalísticas desse meu antepassado, bem como por fotografias baças que o tempo foi comendo mas que as tornam ainda mais interessantes.
Na página 116, uma delas chamou-me particular atenção. Um grupo de rapazes bem vestidos, de bigodes recurvados para cima, estão em pose imponente. Há quatro que se distinguem: Acácio de Paiva, João Bastos, Ernesto Rodrigues e... Félix Bermudes.

Profundidade de Félix Bermudes
NÃO há que estranhar. A legenda fala de um distinto grupo de autores teatrais. E bem. João Bastos, Ernesto Rodrigues e Félix Bermudes formavam um trio que ficou para a história com o nome de «A Parceria», de um óbvio pendor republicano, com deslumbrantes e alegóricas produções revisteiras. A esta «Parceria» dedicaria Acácio de Paiva um soneto aludindo às ligações gastronómicas do grupo, e que começava assim: «Apanham amanhã um bom almoço
E eu não somente aprovo a bela ideia
Mas se alguém propuser jantar a ceia
O alvitre aceitarei com alvoroço».
Ora, ao contrário do meu bisavô, seu amigo, Félix Bermudes era um desportista emérito. Praticou Futebol Atletismo, Ténis, Ciclismo, Natação, Esgrima e o mais que se está para saber. Esteve presente nos Jogos Olímpicos de Antuérpia (1920) e de Paris (1924), disputando medalhas em tiro à pistola. Ah! E, claro está!, foi presidente do Benfica por três vezes: 1916/17, 1930/31 e 1945.
Mas, na vertigem do Futebol e do Desporto, muitas vezes cai no esquecimento a grandeza de Félix Bermudes no campo da Cultura em Portugal. Dramaturgo de excelência, foi autor de grande número de peças teatrais, de comédias e de revistas e de guiões de cinema, o mais famoso dos quais certamente «O Leão da Estrela», realizado por Arthur Duarte, que meteu Sporting e FC Porto mas não meteu Benfica. Tiveram igualmente a sua assinatura obras que os palcos tornaram sucessos: «O Conde Barão», «Sol e Sombra», «Capote e Lenço», «Novo Mundo», «Torre de Babel», «Lua Nova», «O Amigo de Peniche». bem como a obra de estofo «O Homem Condenado a Ser Deus», de uma profundidade filosófica impressionante. Foi autor do hino do Benfica, «Avante, Avante p'lo Benfica», que foi censurado ao tempo do Estado Novo, e da célebre opereta «O Timpanas», grande sucesso à época. Foi igualmente fundador da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses, que viria dar lugar à Sociedade Portuguesa de Escritores.
E assim, em redor de um velho retrato de família do tempo boémio de um bisavô estimado, reencontrei Félix Bermudes, um dos pais do Benfica, figura ímpar das Letras portuguesas. Para o qual o Futebol não resumia a vida. Longe disso...

Avante, Avante P'lo Benfica
'Todos por um' eis a divisa
Do velho Clube Campeão,
Que um nobre esforço imortaliza
Em gloriosa tradição

Olhando altivo o seu passado
Pode ter fé no seu futuro.
Pois conservou imaculado
Um ideal sincero e puro.

(Refrão)
Avante, avante p'lo Benfica,
Que uma aura triunfante Glorifica!
E vós, ó rapazes, com fogo sagrado,
Honrai agora os ases
Que nos honraram o passado!

Olhemos fitos essa Águia altiva,
Essa Águia heráldica e suprema,
Padrão da raça ardente e vida,
Erguendo ao alto o nosso emblema!

Com sacrifício e devoção
Com decisão serena e calma,
Dêmo-lhe o nosso coração!
Dêmo-lhe a fé, a alma!"

Afonso de Melo, in O Benfica

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