"O fastio tem cara e essa era a de Summer McIntosh, a servir trombas molhadas mal emergiu da piscina de Singapura e mirou, ao primeiro relance água fora, o ecrã dos tempos. Com testa pesada, sobrancelhas-eira a carregar nos olhos, nem era preciso ter dito o palavrão que captou as notícias para transmitir o seu desagrado. Soltado o “fuck” ao acabar de ser campeã mundial dos 200 metros mariposa, a canadiana pareceu uma contradição em clorofila, de toca posta, e não só pelo ato em si.
Deduzir a razão da sua moléstia não era um pedregulho de tarefa. Ficara a 18 centésimos de segundo do recorde mundial da distância, menos tempo até do que aquela impossibilidade de mantermos os olhos abertos durante um espirro, ela tão perto e no entanto longíssimo desse “grande objetivo”, afirmaria depois, para o qual treinara “expressamente” e “estragou tudo nos últimos 15 metros” da prova onde, apesar da desfeita que lhe ceifou a alegria, foi buscar a terceira medalha de ouro na prova. Aos 18 anos, era a décima primeira vez que Summer McIntosh se proclamava campeã do mundo, um rácio absurdo de tão irreal.
A pepita de vernáculo unida ao trombil da fenomenal canadiana deu forro a questionar se estaremos a presenciar, aqui e ali, os humanos tocados pela excelência a alcançarem o cume do descontentamento com o muito no desporto. De nadadores, por obrigação imposta pelo seu estado sublime, a serem pobres e mal-agradecidos com eles próprios, evoluídos ao ponto de as suas superiores capacidades os levarem à insatisfação por ganharem, com regra, as provas nas quais se especializaram e que 99% dos adversários nem a esfolarem-se conseguem disputar. Os 2:01.81 segundos do recorde perseguido por Summer, fixados pela chinesa Liu Zige, em 2009, sugerem irrealidade pelas evidências: desde então, só por quatro vezes (incluindo esta) houve quem nadasse abaixo dos dois minutos e quatro segundos.
Desconhecendo nós as agruras e os demónios, os bicharocos mentais e as frustrações de nascer com arestas físicas brutais cujos presenteados limam excelsamente para serem como são, se calhar não há outra maneira, não têm como não exigir à exigência o que um atleta ‘normal’ nem imagina exigir a ele próprio. Summer McIntosh ganharia quatro medalhas de ouro nos Mundiais, sendo apenas a segunda mulher na história a lográ-lo numa edição do evento, juntando-se à americana extraordinária Katie Ledecky. Mas, antes de entrar em competição na Singapura, pintou de dourado as cinco unhas de uma mão, vidrada na caça aos cinco penduricalhos dessa cor, feito em que apenas a sueca Sarah Sjöström tocou, em 2019.
O facto de ser campeã do mundo, ter feito cócegas ao recorde individual da natação em piscina longa que vigora há mais tempo, conseguido a segunda marca mais rápida da história e deixado um sério cutxi-cutxi a quebrá-lo em breve equivaler a um “estou feliz, mas…”, revela as distâncias a que uma nadadora tal, e quem a treina, se força a colocar as fasquias para saciar a motivação e manter-se esfomeada por um tipo de alimento que já não tem a ver com os outros. Ainda adolescente, Summer nada atrás do seu próprio verão (fora os 800 metros livres, onde ainda deve à Anfitrite das piscinas que é Ledecky) assim como Léon Marchand parece perseguir já só a sua própria barbatana.
O francês padeceu, sem hesitações, da cisma de McIntosh por recordes quando, ao ser o primeiro a tocar na parede dos 200 metros estilos, se encavalitou sobre a boia divisória das pistas, estendeu os braços em pose triunfal, fletiu o bíceps de um braço à macho man e esmurrou depois a água, por momentos embriagado de alegria, numa meia-final, por bater o recorde do mundo. Todos esses sorrisos abandonaram-no na final que diligentemente ganharia com feições somenos: sóbrio, austero, quase indiferente ao ouro conquistado. A mostrar ser outro nadador sublime que se diferencia também pela predileção por ter os melhores tempos da história - e, pelos vistos, priorizá-los às medalhas que o identifiquem como campeão do mundo.
A fatura de almejar ir lá bem ao fundo das águas com cloro, aos abismos subaquáticos a que uma ínfima quantidade de pessoas pode aspirar, mói a mente, imprimindo a devida fatura no corpo. Explodida a efusão de alegria pelo recorde mundial (o terceiro da sua carreira em piscina longa), Léon Marchand não pregou olho, culpa da adrenalina a retribuir-lhe com uma noite em branco. “Perdi muita energia”, confessou. Tentou acalmar-se, ver vídeos, ler um livro, meditar, mas não dormiu durante a noite. Só mesmo no dia da final da prova, em que ficou na cama até às 12h30.
Que a competição drena combustíveis e sufoca ânimos é unânime, até para nós, comuns humanos alheios a estes Olimpos, mas os casos de McIntosh e Marchand, como de Ledecky ou Michael Phelps e Ian Thorpe antes deles, mostram as consequências que por tabela a natação abarca ao ter outliers tão majestosos, gente remetida, pela grandiosidade própria, a banalizar o que é raro: carecem então de estímulos estratosféricos que lhes meta uma cenoura diante dos olhos para se esfaimarem.
E não será a monetização desses píncaros a motivá-los. O ano passado, Léon Marchand recebeu 173 mil dólares e Summer McIntosh levou 113 mil da World Aquatics em prémios de competição, que retribuem com 25 mil por cada marca mundial batida. Ambos têm elogios ditos a respeito e confessaram ser mais um motivo que lhes fomenta o apetite, apesar de longe ficarem das potenciais retribuições das empresas que patrocinam Armand Duplantis, o triplo saltista que já bateu 12 vezes o recorde do mundo e recebe uns 100 mil dólares por cada teto desfeito. Mas não será isso, pelos menos não só isso, que os move.
Todos vivem num plano só deles, onde gozam de um estado por enquanto inatingível. Por serem os melhores, são reféns da insatisfação permanente para se manterem nesse percentil estapafúrdio de já não se contentarem apenas com medalhas de ouro. Chegámos ao ponto de a reação a quente a ser campeão mundial vestir uma cara de poucos amigos nestes peixes mais raros."

Armand Duplantis, triplo saltista? O Diogo estava muito distraído...
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