"Perder é bom. Na bolha das vitórias com fartura, o olho crítico vive contaminado pela efervescência. A efervescência, grande e farta, deixa restos de elogios para André Almeida da equipa de Jonas e João Félix, para Schelotto da equipa de Bryan Ruiz e William Carvalho, para Zaidu da equipa de Vitinha e Luis Díaz. No fundo, branqueia a falta de qualidade individual de certos jogadores que beneficiaram da sorte de estar no colectivo certo à hora certa, transformando casos de explicação fácil, em histórias de misticismo apreciadas em todo o mundo: as histórias de que até as grandes equipas necessitam de jogadores banais.
Todos os dias, em algum lugar do planeta, há sete ou oito crianças que se sentam à volta de uma fogueira a ouvir um ancião que as tenta convencer de que a equipa de Jonas e João Félix não teria sido melhor com Dani Alves no lugar de André Almeida, de que a equipa de Bryan Ruiz e William Carvalho não teria sido melhor com Marcelo no lugar de Schelotto e de que a equipa de Vitinha e Luis Díaz não teria sido melhor com Theo Hernández no lugar de Zaidu. E de que não teriam sido melhores, porque as grandes equipas necessitam de jogadores banais. Há relatos de que, por vezes, a meio dessas sessões, uma ou outra criança mais irreverente se levanta, agarra num dos paus da fogueira e espeta-o no olho do ancião. Eu percebo os miúdos. Já não lhes chega serem obrigados a frequentar a catequese?
Antes de chamar Gilberto, devo revelar que também estou a par dos malefícios do olho crítico contaminado pela frustração. Sobre esses, talvez me venha a debruçar no futuro. Ou debrucem-se já aqueles que encontrarem nessa narrativa o kryptonite para esta. Sinceramente, não me soam a narrativas condenadas à incoexistência.
Perder é bom. Aos 26 minutos do clássico, quando Alexander Bah se lesionou, já depois da sua boa entrada em jogo e da assistência para a cabeça de Gonçalo Ramos, pensei que o futebol se estivesse a pôr a jeito para transformar Gilberto no novo herói do imaginário infantil. Gilberto no papel de jogador banal necessário em qualquer grande equipa, sem que o olho crítico contaminado pela efervescência depreendesse as diferenças entre o lateral-direito brasileiro e o lateral-direito dinamarquês. Estavam lá os ingredientes quase todos. O Benfica era uma equipa em estado de graça, com uma vantagem de 10 pontos fase ao segundo classificado do campeonato e com aspirações reais na passagem às meias-finais da Liga dos Campeões. Seriam anos e anos a ouvir que Gilberto era trabalhador, consistente, esforçado, que cumpria e não comprometia. A ouvir, quiçá, após inscrever o seu nome na lista de marcadores frente ao Inter de Milão, que tinha mais golo do que Bah.
Mesmo estando muito longe de ser o único ou o principal culpado do mau momento do Benfica, Gilberto vem-se mostrando mais como um problema do que como uma solução face às carências colectivas.
Num sistema que insiste em João Mário e Aursnes enquanto médios-ala, a largura e a profundidade oferecidas aos corredores laterais ficam ainda mais dependentes das acções de Grimaldo e Gilberto. Ao contrário de Alexander Bah, Gilberto não se atreve na condução, mesmo quando há espaço para progredir, optando invariavelmente por esperar pelo apoio dos colegas para combinar. Ainda que na sua zona de conforto, o ex-Fluminense denota debilidades técnicas em espaços reduzidos, o que significa que as exibições também pioram perante adversários competentes na pressão. Frente ao Inter, por exemplo, nas poucas vezes em que a equipa se mostrou capaz de sair pela esquerda, através de Grimaldo, explorar o lado contrário revelava-se ou impossível, pois Gilberto não se adiantava no corredor direito - e aí fica a dúvida se foram indicações de Roger Schmidt -, ou inócuo, pois, se adiantado, surgia por dentro, deixando a equipa “coxa” do lado direito. Atrair à esquerda para variar à direita deixou de ser um dos pontos fortes do Benfica de Roger Schmidt, porque as vantagens estão a ser criadas para beneficiar um jogador limitado no cruzamento, no passe, na condução, no posicionamento adequado, ou seja, para beneficiar um jogador que não encaixa nas ideias do treinador. Atrair à direita para variar à esquerda também se tornou mais complicado, já que Bah, recuado, é capaz de mostrar recursos no passe, metendo por dentro ou por fora, e Gilberto falha muito nesse momento, somando perdas que resultam em ataques contrários.
A culpa não é das criancinhas irreverentes, tão pouco dos anciões zarolhos. Projectar uma época que iniciou em Agosto de 2022 e terminará em Maio de 2023, apenas com um lateral capaz de representar o Sport Lisboa e Benfica parece-me arriscado, tão arriscado quanto presentear Mihailo Ristic com uns míseros 187 minutos. Felizmente, Grimaldo tem-se esforçado por não colocar mais peso nas costas de quem decide coisas.
Perder é bom. Hoje, em algum lugar do planeta, haverá sete ou oito crianças que se sentam à volta de uma fogueira a ouvir um ancião que as tenta convencer de que a equipa de Grimaldo e João Mário teria sido melhor com Alexander Bah no lugar de um jogador banal. E de que teriam sido melhores, porque as grandes equipas necessitam de bons jogadores. No final dessa sessão, o número de zarolhos não terá aumentado."
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