"De repente, o destino decidiu que era a altura ideal para terminar com a vida de dois jovens alegres e entusiastas. O destino é mesmo assim, disponível para as mais inequívocas das maldades.
Aprendemos com o bate-bate monótono do coração que muitos podem não ser gémeos na vida mas ser gémeos na morte. O dia 16 de outubro de 1915 está aí para prová-lo com a morte simultânea de Léon e Léon. Até o destino quis fazer parte desse jogo macabro dando-lhes o mesmo nome de batismo. Era como se as galáxias se encaixassem.
Léon Hourlier casou-se com a irmã de de León Comès. Ou seja, começaram por ser compinchas e viram-se aparentados pelos laços do sagrado matrimónio. Alice Comès fazia um par muito curioso com Hourlier: pequenina, adocicada, frágil, ao lado de um calmeirão de ombros largos como um armário estilo Luís XV. Hourlier era um atleta de mão-cheia: praticava ciclismo, atletismo e boxe. Chegou o ano horrendo de 1914 e o matulão não deu parte de fraco. Tal como um dos seus ídolos, Georges Carpentier, alistou-se na força aérea francesa e descobriu, pouco depois que era parceiro de batalha do cunhado, o outro Léon. Coincidências a mais? Provavelmente. Mas quem se pode dar ao luxo de combater a regra universal das coincidências?
Carpentier tinha uma estima pessoal pelo dois rapazes destemidos. Já tinha sido campeão da Europa de pesos-médios e dispunha de um estatuto que lhe permitia exibir um certo garbo muito especial, isto para não lhe chamar vaidoso ou presunçoso, algo que, vendo bem, talvez fosse exagerado. Num daqueles intervalos que se faziam volta e meia na guerra, para que todos pudessem recompor-se e ajeitar o nó da gravata, Georges convidou os dois Léon para lhe fazerem uma visita. Algo de irrecusável para os cunhados e compinchas. No tal dia 16 de outubro de 1915, ergueram-se no ar e tomaram o caminho do qual todos fogem: o da morte.
Hourlier tinha uma notável lista de vitórias velocipédicas: medalha de prata nos campeonatos do mundo de velocidade, em Roma 1911; campeão francês de velocidade em França nos anos de 1908, 1911 e 1914; vencedor do Grande Prémio de Paris em 1912 e 1914; vencedor do Grande Prémio de Reims em 1908, 1912, 1913 e 1914. O cunhado tinha, igualmente, bastante por onde se orgulhar no campo da velocipedia: terceiro no campeonato de França de velocidade em 1908, segundo em 1912, vencedor de várias provas em pista e, a par com o outro Léon, vencedor dos Six Jours de Paris em 1914, no Vel’ D’Hiv’.
Hourlier era um pouco mais velho do que o seu camarada:nascera em 16 de setembro de 1885, em Reims, e Comès a 11 de fevereiro de 1889, em Perpignan. Não foi por causa de Alice que se tornaram praticamente inseparáveis, mas a boda ajudou a criar entre eles laços de família mais fortes e resistentes do que os laços de amizade.
Léon Comès tomou os comandos do avião que largou da pista de Saint-Étienne-au-Temple, na zona de Champagne. Iam felizes. Nada como um dia bem passado a falar de boxe com o grande Carpentier. Hourlier sobretudo. Fora, durante a juventude, um incansável combatente de todo o tipo de justas, da luta livre e luta greco-romana ao boxe.
Sempre com belos resultados, ainda que, naturalmente, em competições amadoras. Depois saltou para o selim de uma bicicleta, tão competitivo como sempre, de tal ordem que o o campioníssimo Gabriel Poulain quis ser seu treinador, afirmando com clareza: «Hourlier ne tarde pas à devenir le collectionneur de courses en ligne surtout au Parc des Princes». Um velocista, portanto.
André Perchicot, o ciclista-cantor, encantava-se pelo sangre frio de Hourlier: «Escondia sobre uma máscara de impassibilidade uma coragem absolutamente notável. Era extraordinariamente correto e leal e tinha uma energia esfuziante».
Comès começou por ser colocado do 89.º Regimento de Infantaria, no serviço de equipamentos militares, mas odiava as funções que cumpria. Tanto sarrazinou a paciência dos superiores que lhe autorizaram a transferência para a força aérea, Pilotava um Voisin, construído por uma das primeiras empresas de aeronáutica francesa, fundada por Gabriel e Charles Voisin. Durante a I Grande Guerra, foi o modelo Voisin VII que teve mais sucesso por causa da sua mobilidade. O céu estava limpo, a visibilidade era boa, o voo previa-se tranquilo. De repente, o destino decidiu que era a altura ideal para terminar com a vida de dois jovens alegres e entusiastas. O destino é mesmo assim, disponível para as mais inequívocas das maldades. O Voisin pilotado por Comès ergueu-se no ar, como um pássaro altivo mas, segundos depois, sem explicação possível, mergulhou a pique desfazendo-se no solo como um cartucho de papel pardo. Léon e Léon perderam a vida quase sem dar por ela. Lá está, como gémeos na morte..."
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