"Com o regresso do futebol aos estádios regressam também os comentadores às televisões. Os segundos precisam dos primeiros, mas os primeiros não precisam dos segundos. E nós também não. Cada um dos 90 minutos do jogo traduzir-se-á em dezenas de horas de comentários, em todos os canais de TV, na rádio, nos jornais. Portugal tem mais jornais diários de futebol do que o Brasil (a pátria de chuteiras), mais programas televisivos de futebol do que a Itália (onde se praticava o harpastum, um dos precursores do futebol) e mais comentadores de futebol do que o Reino Unido (que tem o campeonato nacional mais rentável financeiramente).
Mas o vínculo dos portugueses é principalmente com os clubes, não como o futebol. Se há duas décadas o futebol representava 36% de todos os atletas federados, actualmente essa percentagem é de 28%. Temos cada vez mais portugueses a praticar outras disciplinas desportivas, além do futebol. E mesmo o número de praticantes inscritos na FPF (cerca de 193 mil) é comparativamente inferior, per capita, a outros países que têm o futebol como desporto nacional, como Espanha ou França.
Eu não sou psicólogo, mas parece-me que há aqui matéria de estudo para Lacan. Vínculos acríticos e paixões cabais são geralmente sintomas de uma busca por sentido e reconhecimento. Criam-se elos simbióticos com elementos externos para preencher identidades desabitadas de autoestima. É como se um golo do Rafa Silva nos fizesse esquecer a falta de amor dos pais e se sentíssemos um frango do Oyisseas como uma rejeição que nos inflama o corpo de cólera.
Sem grandes feitos profissionais ou regozijos culturais, há uma geração de portugueses que só vive nos dias de jogo. São pessoas que não praticam futebol nem veem as partidas de outros países, mesmo quando têm claramente mais qualidade do que as do seu. O elo é, no fundo, com o clube e o clube só pode ser o Benfica, o Sporting ou o Porto. O tamanho dessas agremiações é perfeito. Se fossem planetárias, atraindo seguidores estrangeiros com quem não partilhamos simetrias culturais, a nossa identificação seria diluída. A dependência é mais fácil de se estabelecer quando existe um certo caseirismo, uma ideia de exclusividade. O clube é só meu e de outros iguais a mim.
Por outro lado, não são pequenos clubes municipais. A renúncia da nossa autonomia emocional é mais fácil de atingir com terceiros que têm características maiores do que nós, despertando o orgulho e o sentimento de conquista. É o que os psicólogos chamam de auto expansão.
E é nestas insatisfações que as televisões bicam oportunidades. A síndrome clubista pelos "três grandes" é afiada como um machado que corta clubes mais pequenos e outras modalidades desportivas. Nos média, tudo gravita em torno desses três clubes, criando-se relações emaranhadas, com interesses comerciais a sobreporem-se ao desporto.
Para comentar os jogos de futebol, as televisões não contratam especialistas na modalidade. Quem tem a minha idade, lembra-se de ver os jornalistas Rui Tovar (1948-2014), Artur Agostinho (1920-2011), Ribeiro Cristóvão ou Gabriel Alves a fazerem comentários mais criativos e eficientes do que os dribles dos atletas da bola.
Mas os comentadores de hoje, subtraindo os jornalistas da casa e os ex-jogadores, são quase todos artistas de circo. São cuspidores de fogo e de polémicas para soltar o olhar arregalado do público, são animais amestrados pelos clubes que os engordam em troca de lealdade, são mágicos anões que usam truques para agigantar a sua popularidade.
Entre os comentadores há, ou houve, ex-vereadores municipais, ex-presidentes de câmara, ex-ministros, vários deputados e actuais presidentes de partidos políticos. Discutem jogos de futebol como mendicância política. André Ventura é fruto deste pecado original. Rejeitado pelos eleitores de Loures, ressuscitou como político a comentar os jogos do Benfica numa televisão. Com a conivência do clube e do canal.
Quando se escrever a história da extrema-direita em Portugal, haverá um capítulo sobre programas de futebol na televisão."
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