"Há 35 anos, um clube iô-iô, que tinha subido à Série A apenas três épocas antes, foi campeão italiano. No meio do Nápoles de Maradona, da Juventus de Platini ou do Inter de Rummenigge, o Hellas Verona passou 29 das 30 jornadas do campeonato em primeiro lugar, provou que os contos de fadas existem e deu razão ao seu treinador: "Não inventei tácticas, não houve nada de maquiavélico. O futebol é um jogo simples e deixei-os expressarem-se livremente"
São tempos de camisolas justas e grossas, calções curtos, caneleiras só para quem quiser, e meias reduzidas à altitude dos calcanhares. Vê-se a farfalheira de bigodes com fartura e penteados selvagens em tipos que jogam com fios de ouro ao pescoço. Não há cá chuteiras espampanantes, o negro mantém a sobriedade nos pés de génios. E Itália ainda é o íman para o futebol.
É lá que os melhores jogam, é para lá que quem deseja ser melhor pretende ir e lá estão as atenções dos que desejam ver a melhor forma possível de humanos aos pontapés na bola. Os anos 80 futebolísticos nutrem um carinho especial pela Série A, mesmo que os italianos não se curvem perante o interesse vindo de fora e se revoltem contra o raiar do interesse estrangeiro.
Cada clube tem direito, apenas, a ter dois jogadores de fora. O francês Michel Platini e o polaco Zbigniew Boniek são da Juventus. O brasileiro Falcão está na AS Roma. O conterrâneo Sócrates vive na Fiorentina. O alemão Karl-Heinz Rummenigge joga no Inter de Milão. E o particular argentino Diego Armando Maradona acaba de se mudar para o Nápoles, clube que à primeira jornada da época 1984/85 vai a Verona.
É o Maradona pré-falência derivada da cocaína, pleno possuidor das suas capacidades de jogador superior a qualquer outro, chegado ao sul de Itália para resgatar um clube rumo aos primeiros títulos. Da visita à cidade onde Shakespeare romantizou palavras, não se esperava grandes problemas causados pela equipa local.
O Hellas Verona ficara sexto lugar na época anterior, em quarto na antes dessa e fora finalista vencido das últimas duas Taças de Itália, mas só três anos antes subira à primeira divisão. Era visto como é hoje, um clube iô-iô, ia e voltava das catacumbas do futebol com a mesma rapidez, a gravidade da bola parecia ser-lhes mais castigadora. Só que, nessa primeira jornada, houve uma surpresa: ganhou por 3-1.
A influência de Maradona foi abafada pelo alemão Hans-Peter Briegel, um todo-o-terreno contratado ao Kaiserslautern que até marcou um golo, sendo outro de Antonio di Gennaro e o restante de Giuseppe Galderisi, um refugiado do tempo de jogo que fugira da Juventus em busca de minutos.
Com um jogo feito, o Hellas Verona tinha a coincidência inócua de estar em primeiro lugar no campeonato, que já calhou a muitos clubes, em muitos países, e continuará a calhar, mas, vieram as semanas, os jogos, as malvidências e os dizeres de que isto um dia vai acabar, e nada. Da primeira à trigésima jornada, apenas sairiam do trono na décima sexta.
Na vigésima nona e penúltima, a 12 de maio de 1985, eram campeões de Itália. A melhor equipa era a sem estrelas, a do conjunto de jogadores colados pelo suor em vez da pompa dos nomes, mesmo que houvesse Briegel, um internacional alemão, e também Elkjaer Larsen, dinamarquês que ainda ninguém sabia, mas ficaria em terceiro e segundo nas votações para duas Bolas de Ouro dali para a frente.
Todos foram canalizados para um futebol vistoso, contra-atacante e descomplexado por Osvaldo Bagnoli, o treinador que somente utilizaria 17 jogadores durante a época e não teve pudores em admitir, mais tarde, que foi tudo uma questão de escolher quem devia para os lugares adequados.
Porque o futebol "é um jogo simples", resumiria ao site "Goal", ao explicar a simplicidade dizendo que "o importante é ter sorte e encontrar os tipos certos, pô-los nas posições certas e deixá-los expressarem-se livremente".
Bagnoli acreditava que "é a sua força de vontade que se sobrepõe a tudo”, parecia menosprezar conceitos como "a pressão e a marcação à zona", ao classificá-los como "não indispensáveis", sumarizando a época ganhadora com o Hellas Verona com uma frase - "Liderei jogadores que mereceram ganhar o scudetto sem inventar tácticas, sem maquiavelismo ou segredos". Galderisi, que já reformado e grisalho viria a treinar o Olhanense, em 2014, diria ao jornal "i" que "na pré-temporada [falaram] em evitar a despromoção" - "era uma boa equipa, mas ninguém pensava que podíamos ganhar".
Mas venceram, foram os melhores e tiveram que olhar bem para baixo para verem a Juventus no quinto lugar e a AS Roma em sétimo, os dois anteriores campeões italianos, entre os quais se ensanduichou o AC Milan. Os típicos matulões da Série A acabaram em posições derrotadas na primeira temporada da história em que a liga italiana passou a sortear os árbitros para cada jogo, em vez de os nomear. E muita gente associou o feito do Hellas Verona esta mudança.
Essa alteração na arbitragem viera, em grande parte, do Totonero, o primeiro grande escândalo de corrupção no futebol italiano, que rebentara cinco anos antes ao provar-se que existia uma rede de apostas e combinação de resultados. AC Milan e Lazio seriam despromovidos e deduziriam-se pontos ao Avellino, ao Bologna e ao Perugia.
Em 1984/85, para evitar eventuais influências dos clubes mais poderosos, os árbitros foram sorteados e não nomeados. O Hellas Verona foi campeão. Na época seguinte, reverteu-se às nomeações. Até hoje, apenas dois clubes seriam campeões da Séria A sem que antes já o tivessem sido."
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