"A alcunha de Craque Saloio adivinha-lhe as origens, humildes e rurais, bem a norte do Tejo. Cavalão, como carinhosamente o “Capitão” Mário Wilson o apelidava, revelava a sua capacidade para percorrer os campos a galope. Toni do Benfica denuncia o clube do seu coração e pelo qual somou quase quatro centenas de jogos em 13 épocas de águia ao peito como jogador. Na Luz, orientou inúmeros iluminados, entre os quais João Vieira Pinto e Rui Costa, mas deu-se mal no país da Torre Eiffel. A experiência na Andaluzia foi monocromática, mas atingiria novamente as luzes da ribalta como Príncipe da Pérsia, engrenando o Tractor para o título mais importante da sua história. Numa conversa repleta de mística e carisma, aqui está Toni, em mais uma entrevista exclusiva Bola na Rede.
– As cores do futebol num país a preto e branco –
“O Mário Wilson estava a ver o jogo e fixou-se no número 4”
Quero começar esta entrevista por dizer-lhe que não vou atrever-me a perguntar por aquele defesa-esquerdo do Tractor…
Olha que era bom jogador, o Ehsan! Bem ajudou o Queiroz na seleção do Irão!
“Não se pode ter sol na eira e chuva no nabal”. Uma vez que nasceu na eira dos terrenos dos seus avós, em Mogofores, pergunto-lhe por mais quantos dias esteve sem chover naquela aldeia.
É verdade! Não é do teu tempo, mas ainda que estejas a brincar, foi mesmo na eira que eu nasci. Vivíamos num país a preto e branco, tal como Miguel Torga o referia, um Portugal triste: de muitas carências e dificuldades. Não sei o nome da parteira, mas sei que foi uma aldeã que me ajudou a vir ao mundo. Depois é todo um trajecto feito numa pequena aldeia – que não é bem no interior, está a 25/30 km da costa – mas que tinha uma escola primária, portanto já nos podíamos dar por muito felizes, considerando o índice de analfabetismo que existia à época.
O que tinha de fazer para conseguir a senha que dava acesso ao campo de futebol do Instituto Salesiano?
Portanto, havia a escola e o largo da escola – onde, com as sacolas a fazer de balizas, jogávamos seis contra seis ou cinco contra cinco – e havia o Instituto Salesiano, que era para estudantes que vinham de fora e ao qual não tínhamos acesso. Nós, da aldeia, tínhamos o nosso oratório, São João Bosco – onde jogávamos ao Jogo da Glória, às damas, ping-pong -, que era anexo ao campo do Instituto. Para podermos lá jogar, tínhamos de ir ajudar à missa, em latim, para “conquistar” a senha.
Se lhe pedir para ajudar à missa, em latim, ainda é capaz?
Já não. Nessa altura tínhamos uma folha que nos auxiliava e permitia ir respondendo em função do desenrolar da missa. Curiosamente, quando passei do segundo para o terceiro ciclo, tive de escolher uma alínea que correspondia à área que queria seguir e escolhi a “e)”, que era Direito, e onde uma das disciplinas era Latim; tive Latim, Alemão, História, Português, Filosofia e Organização Política da Nação, que era sobre a Constituição de 1933.
Vamos a jogo: estreia-se pela equipa sénior do Mogofores, no campeonato da INATEL, com um nome fictício.
Salvo erro, em Buarcos. Havia uma equipa da Figueira da Foz que entrava nesse campeonato e, como sabes, os estudantes não podiam entrar nos torneios da INATEL. Mas arranjou-se lá uma trapaça, com o cartão de outro jogador, e joguei um jogo pelo Clube Recreativo e Desportivo de Mogofores.
O Anadia é que não se deixou enganar.
O Anadia é o passo seguinte: havia uns treinos de captação e fui lá com 15 anos, mas não tinha idade suficiente para poder ser inscrito [a idade mínima era 16 anos]. Voltei no ano seguinte e fiz duas épocas nos juniores. Nesses dois anos, tínhamos uma equipa boa, com bons jogadores nos vários sectores. É essa equipa, aliás, que frente à Académica, em Coimbra, ganha 3-0, num jogo que o Mário Wilson estava a ver e em que se fixou no número 4, que era eu. Realmente o jogo correu-me muito bem e o “Capitão” pôs-se a caminho de Anadia uns dias depois.
– Coimbra tem outro encanto na hora da… chegada de Toni –
“Reconheci Mário Wilson dos cromos”
– Coimbra tem outro encanto na hora da… chegada de Toni –
“Reconheci Mário Wilson dos cromos”
Lembra-se do momento em que o Mário Wilson o encontrou quando o Toni ia a caminho daquela aula de História?
Lembro-me perfeitamente do sítio onde ele me encontrou! Eu tinha aulas de manhã, até ao meio-dia e vinte, e depois ia almoçar a casa, de bicicleta. Recomeçávamos às duas da tarde e, quando ia a caminho da aula de História, vejo, dentro de um Fiat 600, uma cara que reconheci dos cromos: era o “Capitão”. Eles pararam, eu parei, e qual aula de História, qual quê.
A assistência em viagem tinha dado jeito nessa tarde.
Quando estávamos de regresso, o Fiat 600 não pegava, pá! Olha, comecei logo ali a treinar. O Mário Wilson até dizia “Epá, a Académica não é o Benfica nem o Sporting!”. Como quem diz “Aqui não há Mercedes”. Connosco ia também o Dr. Augusto Martins, que era professor e foi director da Académica.
Como é que o seu pai reagiu à surpreendente aparição na tipografia da oficina onde trabalhava?
O meu pai era muito pragmático (…) eu também passei isso aos meus filhos. Quando fui para o Anadia, também foram falar com ele “O futebol só não pode é prejudicar os estudos ao rapaz!”, dizia. Quando fui para a Académica, abria-se a perspectiva de conseguir conciliar os estudos e jogar, que era a génese da Académica: formar Homens. Os estudos estavam sempre primeiro que o futebol.
Chegou a entrar na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Sim, sou do curso de 67. Entro no ano em que jogámos a final da Taça contra o Vitória FC.
Actualmente seria possível reeditar essa ligação umbilical entre a Académica e a Universidade de Coimbra?
Essa Académica de ontem (…) hoje já não podia. A sociedade transformou-se. Aquela Académica onde o prémio de jogo era uma laranjada… para mim e para muitos, fazer parte do lote de convocados já era uma vitória; até porque, se fosses suplente, já ganhavas cinquenta escudos! Como te digo, a génese daquele clube era a formação social e quantos tinham exames e pediam para não ser convocados.
Antes de assinar pelo Benfica, desce ao Jamor para defrontar o Vitória FC. A final mais longa de sempre da Taça de Portugal foi a melhor montra que podia ter tido?
Claro que uma final da Taça atrai as atenções das gentes do futebol, mesmo que nela não estejam envolvidos os três grandes. Foram a Académica e o Vitória FC, duas equipas que até podiam ter ali nuances daquilo que viria a ser o tiki-taka, com as devidas distâncias. Mas concordo que é essa final, pelos contornos que teve e pela exibição que acabei por fazer, que despertou a atenção do senhor Otto [Glória], responsável pela minha ida para o Benfica.
– O Benfica de Toni ou o Toni do Benfica –
“Académica x Benfica? É um dia histórico, em que o Futebol serviu a causa”
Ainda vive em frente ao Estádio da Luz?
Não é em frente! Eu vivo na rua da Lusa, sensivelmente a 600 metros do Estádio da Luz, há cinquenta anos. Sou quase o regedor. [risos]
Ao serviço do Benfica foram 13 épocas, tendo feito 395 jogos e marcado 24 golos. Que episódio nunca contou publicamente?
Conto-te esta porque é rápida e mostra a força que o Eusébio tinha: era o meu primeiro jogo para a Taça dos Campeões Europeus, na Islândia, contra o Valur. Na ida para Reiquejavique, o Eusébio não seguiu connosco na comitiva porque foi receber a Bota de Ouro. Lembro-me que fizemos escala em Glasgow e, na ida, parecia que ninguém nos conhecia, e estavam lá o Coluna, o Simões, o José Augusto, o Torres, o Jaime Graça… jogadores que, anos antes, tinham estado no Mundial 66. No regresso, já com o Eusébio integrado, foi a loucura nesse mesmo aeroporto! Fotografias, autógrafos… eu, que tinha meia dúzia de dias no Benfica, acabei por levar por tabela e também assinei e tirei fotografias.
O que é feito do Austin 1000?
Já não o tenho! Foi o meu primeiro carrinho. EF-73-77: podes apontar! Comprei-o meses depois de ter vindo sozinho para Lisboa, porque em Coimbra já tinha tirado a carta. Antes disso, eu e os colegas que vivíamos no Lar do Benfica apanhávamos o eléctrico ao pé da igreja de Benfica, íamos até ao Califa e, dali, apanhávamos o autocarro até ao estádio ou íamos a pé.
Tudo começou com uma pré-época “de sonho”: uma digressão de mais de 30 dias pelas Américas. Já tinha andado de avião?
Já, com a Académica: tínhamos ido jogar aos Estados Unidos, a Newbedford [Massachusetts], e a Caracas, esta última através do Amadeu José Freitas; viajámos na Viasa, a companhia aérea venezuelana daquela época.
É durante essa pré-época que o falecido Carlos Pinhão o apelida de “Tonitruante”. Foi um digno aprendiz de Coluna e Jaime Graça?
Um ano depois de lá ter estado com a Académica, volto aos Estados Unidos com o Benfica. Nessa digressão, que começou em Belém do Pará, estreei-me no dia 8/8/68 contra o clube do Remo, empatámos 1-1 e guardei a bola, porque quando o árbitro apitou estava com ela nos pés. Depois, fomos para Buenos Aires fazer um pentagonal – no qual o melhor marcador do Benfica acabei por ser eu, vê lá – com Santos, Boca Juniors, River Plate e Nacional de Montevideu. Daí, seguimos para a Venezuela, para jogar com o Botafogo, seguiu-se Bogotá contra os Millonarios e, finalmente, regressámos aos Estados Unidos para jogar no Yankee Stadium, novamente, contra o Santos de Pelé. Foi este o meu batismo inicial. Em relação à pergunta, disse muito bem: fui um digno aprendiz! Jaime Graça e Mário Coluna tinham dois estilos diferentes! Coluna, que estava a aproximar-se do fim de uma carreira brilhante, deixou uma marca na História do Benfica e do futebol mundial; Jaime Graça era um jogador fino, inteligente, de enorme visão de jogo e capacidade de drible, e que podia fazer não só o meio, mas também o lado direito. Foi um factor muito importante para o meu crescimento ainda tê-los como os homens com quem fui emparelhando na zona do meio-campo. Aliás, fruto do surgimento das substituições, nesse ano, no futebol português, acabei por fazer 22 jogos em 26 possíveis, que foi bom para ir começando a afirmar-me.
Meses passados e voa de novo, desta feita até Luanda, para defrontar o ASA para a Taça de Portugal. Em plena Angola Colonial, que impacto teve em si ver pretos e brancos unidos a festejar a vitória do Benfica?
Senti que havia uma comunhão perfeita. Nesse jogo, inclusive, houve gente que fez 600 e 700 km para ir ver o jogo, saindo de vários pontos de Angola para chegar a Luanda. Quando o sorteio ditava ASA x Benfica, os dois jogos eram em Angola; se fosse Benfica x ASA, as partidas realizavam-se em Portugal. Aliás, um ano antes tinha defrontado o ASA pela Académica: um jogo foi em Coimbra e o outro foi em Lisboa. Isto para dizer-te que passámos lá uma semana e a recepção que tivemos no aeroporto de Luanda, que continuou até ao hotel e culminou nas pessoas que não arredaram pé durante a noite, porque estavam ali – numa altura em que ainda não havia televisão – aquelas que eram as figuras míticas do futebol português, foi uma coisa impressionante.
Taça que viria a conquistar frente à Académica, num jogo fortemente marcado pela contestação ao Estado Novo.
Essa final foi o maior comício feito na Era de Salazar! É uma final que significou muito mais do que uma Taça. Só faltou a Académica ganhar, mas se calhar até foi melhor ter sido o Benfica, porque as manifestações poderiam ter assumido graves contornos. Pela primeira vez, uma final da Taça não foi transmitida pela televisão, a conselho do Ministro da Educação da altura, o Dr. José Hermano Saraiva. É um dia histórico, em que o Futebol serviu a causa. Adivinhava-se que algo estaria para acontecer.
Insisto nesta temporada, de 1968/69, porque é nela que se inserem dois dos jogos que diz terem sido mais especiais para si: o último do campeonato, em Tomar, e o 1-3 na Luz, frente ao Ajax.
Felizmente há muitas mais memórias positivas que negativas, mas o 3-1 com o Ajax é uma frustração, atendendo a que vínhamos de um resultado positivo em Amesterdão [3-1] e jogado em condições adversas, porque o campo estava coberto de neve. Na Luz, o senhor Cruijff resolveu abrir o livro e acabou com o jogo. Naquela altura havia um terceiro jogo para desempatar e fomos a Paris: 0-0 no tempo regulamentar e acabámos por perder no prolongamento. Esse 3-1 é marcante porque nos poderia catapultar para, eventualmente, repetir a conquista europeia. O jogo em Tomar significa saber, pela primeira vez, o que é ser campeão pelo Benfica e logo em época de estreia.
Há ainda a história da invasão de campo, em que, pelo que me disseram, foi o único jogador que se manteve sereno.
Janeiro, 1970. Estava de chuva. O árbitro era João Nogueira, da AF de Setúbal; se nós não estávamos a jogar nada, ele também não estava a ser feliz nas decisões que andava a tomar. O Mota da Silva foi para a rua, o Torres, que era o capitão, foi para a rua também, e o que acontece é que, fruto de uma decisão que o árbitro toma, eu olho e vejo que, do lado da baliza sul, vêm uma série de adeptos a correr e eu disse “Oh Homem, fuja, fuja, fuja!” e o árbitro, de olhos esbugalhados, começa a correr. O Estevão também se junta e apoiámo-lo até ele sair pelas escadas. Lá em baixo estava o Sr. Calado, o sapateiro, com o pé de ferro para se houvesse alguma coisa com as nossas botas, e o árbitro começa a querer vir para cima com esse objecto e eu disse “Epá, não, não!”. Estou a rir-me, mas não devia ter acontecido: provocou uma interdição de oito jogos no Estádio da Luz e puseram uma rede na bancada para que se evitassem invasões futuras. Ainda levei com um guarda-chuva nas costas. Foi um dia negro na história do futebol português.
– Da relva para o banco: Rui Costa, Zidane e Irão –
“João Pinto? Quem o deixou sair do Benfica devia estar preso”
Permita-me fazer a ponte para a sua carreira fora das quatro linhas: é no Benfica que inicia as funções de treinador, primeiro enquanto adjunto e, depois, como principal. Que importância teve Eriksson nesta nova fase da sua vida?
Quando o Eriksson chega ao Benfica, eu já tinha sido adjunto do Lajos Baroti. No primeiro ano do húngaro na Luz, eu ainda era jogador; no segundo ano passei a adjunto, com o senhor Caiado. O sueco chega na época 1982/83 e identifiquei-me logo com a sua ideia de jogo. Os métodos de treino que trouxe também foram importantes, porque cortaram com aquilo que era a forma como se trabalhava: não pela complexidade do treino, mas pelos exercícios fáceis e com bola. Trouxe motivação aos jogadores. Para além disto, encontra um leque de jogadores de grande qualidade do ponto de vista técnico, físico e táctico. Houve uma comunhão perfeita. Cheguei a dizer-lhe, numa das conversas que tínhamos diariamente, que eu podia ter sido melhor jogador se tivesse sido treinado por ele.
O resultado 6-3 tem dupla face para o Toni: se, por um lado, é sinónimo de uma das suas maiores vitórias, por outro, significa a última partida ao comando do Bordéus. Qual destes jogos teve maior impacto na sua carreira?
O jogo de Alvalade abriu-nos a porta para chegar ao título. Numa época de grande complexidade, vencer, ainda mais por estes números, em casa de um rival (…) indo recuperar jogadores que já estavam quase do outro lado e se revelaram fundamentais, como é o caso João Pinto… quem o deixou sair do Benfica devia estar preso. O João nunca devia ter saído do Benfica! Aliás, por essa altura, também já sabia que a minha saída do Benfica já estava decidida, mas fui respondendo com profissionalismo todos os dias, numa época muito difícil.
Em relação ao outro jogo, foi contra o Mónaco. Como sabes, o plantel do Bordéus era constituído por 18 jogadores e, quando necessário, existia o centro de formação ao qual podíamos recorrer. Nesse dia, ia jogar o Sonny Anderson e lembro-me de ter de pôr, fruto de castigos e de lesões, dois miúdos de 18 anos a centrais e, para lhes dar cobertura, pensei “Bem, deixa-me jogar aqui com três a ver se consigo aguentar isto”. Aos 20 minutos já estávamos a perder 3-0, portanto abandonei os três defesas. Ainda fizemos o 3-2, não sei se foi o Dugarry ou o Zidane, mas o jogo acabou com os 6-3. De todo o modo, faltavam apenas oito jornadas para o fim do campeonato e foi com o meu contributo que o Bordéus vai à Taça UEFA, através da Taça Intertoto; no ano seguinte, estão a jogar com o Bayern na final e quase a descer para a segunda divisão. Foi a venda do Zidane, para a Juventus, do Dugarry, para o Milan, e do Lizarazu, para o Bilbao, que permitiu ao Bordéus reinventar-se e ficar com uma equipa muito diferente daquela que eu tinha.
São dois 6-3 com sabores distintos: um que provoca um dia de uma alegria imensa e outro que provoca um dia de tristeza, mas não diria de grande tristeza. Tristeza a sério foi quando, dias depois, recebo uma chamada do Presidente do Bordéus – que não teve a hombridade de fazê-lo pessoalmente – e disse-me que estava despedido.
O Rui Costa já o perdoou por ter jogado apenas vinte minutos nesse derby?
Já falámos sobre isso, continuaremos a falar-nos e temos uma relação boa. O Rui Costa foi campeão comigo como treinador, regressa à Luz porque falo com o Eriksson e disse-lhe que havia um miúdo que estava a destacar-se no Fafe e que pertencia ao Benfica. Aquela equipa teria de ser sempre Rui Costa mais dez, mas o jogo e a estratégia que montámos, eu e o Jesualdo, (…) tínhamos de equilibrar a equipa; não a podíamos partir com cinco homens de propensão ofensiva e outros cinco de propensão defensiva. Foi a razão pela qual ele só jogou 20 minutos nesse dia. Nos jogos que se seguiram, o Rui foi sempre titular. Não é fácil para um jogador daqueles aceitar ficar de fora num derby, mas houve sempre algo que me guiou enquanto treinador: ninguém é mais importante que a equipa.
Entre Rui Costa e Zidane, quem aparentava ter maior potencial?
Parecendo iguais são diferentes. São iguais no talento, na criatividade. A passagem de ambos pelo futebol italiano acabou por lhes ser benéfica, enriqueceu-os do ponto de vista táctico e físico, porque tecnicamente já sabiam tudo. Só que, enquanto o Zidane saiu para a Juventus, o Rui saiu para a Fiorentina, e penso que pode estar aí o motivo pelo qual não foi catapultado para outros patamares – embora tenha deixado o seu lastro de classe e de talento, páginas de ouro que escreveu, em Florença e no futebol italiano. Vou confessar-te que, no Bordéus, sonhava trazer o Zidane e o Dugarry para o Benfica, mas tinha de hipotecar a Caixa Geral de Depósitos para que isso acontecesse.
Sevilha vale, sobretudo, por ter testemunhado de perto o talento de Šuker?
O Šuker até parecia que estava a mais naquela equipa. Era um jogador fabuloso. Lembro-me, também, de recorrer a um miúdo chamado Carlitos, que tinha 17 anos e acabou por fazer parelha com o croata. Quando fui para Sevilha, o clube vivia dos períodos mais difíceis da sua história. O Celta de Vigo e o Sevilha estavam na segunda divisão; já tinha sido feito o calendário para 20 equipas, que depois foi alterado para 22, porque o povo foi para a rua e revoltou-se.
Quando consultei o seu palmarés, notei que faltava uma das maiores conquistas do Toni: ter conseguido explicar ao Amir o que era uma pá …
Essa história não foi para o Youtube! É passada no gabinete do Presidente com todo o staff técnico. Estávamos a fazer um meeting e o Presidente disse “Epá… meio-campo… buraco…” e eu disse ao Amir, o meu tradutor que tinha sido casado com uma brasileira, “Sabes o que é uma pá?” e ele ficou a olhar para mim sem perceber. Lá lhe fiz sinais, e ele acabou por perceber. “Então diz ao Presidente – e não tenhas medo! – que agarre numa pá e vá lá tapar o buraco. Mas diz-lhe mesmo!”. Ele podia ser o Presidente, mas o treinador era eu. A minha equipa técnica – o meu filho, o Vítor Campelos e o Paulo Grilo [treinador de guarda-redes] – pensou que íamos todos presos.
Como foi o regresso a Tabriz após a conquista da Taça do Irão?
Foi das maiores manifestações de carinho e reconhecimento que senti na minha vida. O Tractor é uma bandeira de 40 milhões de pessoas. Já viste como é que o Quaresma foi recebido na Turquia, como é o ambiente de um jogo na Turquia… transporta isso para o Irão. Quando a selecção joga no Azadi Stadium, em Teerão, estão 100 mil a assistir e se o estádio tivesse capacidade para 500 mil, eram 500 mil que estavam lá. A conquista da Taça do Irão, no dia 14/02/2014, é o feito que marca a história daquele clube.
Por falar em vitórias, o dia 11 de Junho de 2013 coroa a maior vitória da sua vida?
Foi o jogo da vida. Regressei do Irão para férias no tempo certo, porque a primeira coisa que fiz quando cheguei foram análises ao sangue e uma radiografia aos pulmões; como a radiografia foi um bocadinho mais abaixo, o radiologista apanhou um tumor maligno no rim esquerdo. Felizmente, estava circunscrito e não metastizou. Foi a maior vitória.
Já o dia 11 de Agosto rima com susto.
Quando lemos ou ouvimos na televisão que houve um tremor de terra no Japão ou no Haiti, não fazemos ideia do que é isso. Lembro-me que estava sentado no sofá e o candeeiro era o meu sismógrafo, parecia o sino de Mafra. Agarrei no meu filho e disse “Vamos para baixo de uma ombreira” e aquela hesitação de andar de um lado para o outro (…) a qualquer instante dava-nos a sensação de que aquilo ia cair. Estávamos no 12.º andar. Foi um minuto interminável. Na escala de Richter atingiu 6,4, com o epicentro a 60 ou 70 quilómetros de onde estávamos. Depois houve réplicas, nesse dia e nos seguintes, mas nada comparadas com o primeiro. É um dia que não esqueço e até está apontado no meu diário.
– Passes Curtos –
Toni do Benfica, craque saloio ou cavalão?
Toni do Benfica é um orgulho e não tem preço. Craque saloio vem do facto de em Coimbra, no final do treino, ficar a ajudar o “Capitão” a treinar os guarda-redes; eu rematava em “banana”, a pior coisa que podes fazer aos guarda-redes, e o “Capitão” mandava com cada tiro… o Dr. Maló, que ainda não era formado, dizia “este craque saloio, pá” e ficou. Cavalão foi o “Capitão” e tem para mim o significado de alguém que me marcou para sempre. Assim como o Vítor Martins era o “Bom de Bola”.
Jogar ou treinar?
São diferentes, mas o prazer de jogar é qualquer coisa. Treinar é apaixonante, mas completamente diferente de jogar. O prazer de jogar pode sobrepor-se ao prazer de treinar.
Golo, assistência ou desarme?
O futebol é golo.
Melhor jogador com quem jogou?
Eusébio, acima de todos. Depois, Chalana e Humberto Coelho.
Melhor jogador contra quem jogou?
Pelé e Beckenbauer, o meu ídolo.
Melhor treinador que teve?
Mário Wilson.
Melhor jogador que treinou?
Tinha de se fazer uma selecção [risos]. Tive a felicidade de ter treinado grandes jogadores: Bento, Ricardo Gomes, Mozer, Chalana, Carlos Manuel, Diamantino, Rui Costa, João Pinto (…) Zidane, mas não queria dizer estrangeiros…"
A assistência em viagem tinha dado jeito nessa tarde.
Quando estávamos de regresso, o Fiat 600 não pegava, pá! Olha, comecei logo ali a treinar. O Mário Wilson até dizia “Epá, a Académica não é o Benfica nem o Sporting!”. Como quem diz “Aqui não há Mercedes”. Connosco ia também o Dr. Augusto Martins, que era professor e foi director da Académica.
Como é que o seu pai reagiu à surpreendente aparição na tipografia da oficina onde trabalhava?
O meu pai era muito pragmático (…) eu também passei isso aos meus filhos. Quando fui para o Anadia, também foram falar com ele “O futebol só não pode é prejudicar os estudos ao rapaz!”, dizia. Quando fui para a Académica, abria-se a perspectiva de conseguir conciliar os estudos e jogar, que era a génese da Académica: formar Homens. Os estudos estavam sempre primeiro que o futebol.
Chegou a entrar na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Sim, sou do curso de 67. Entro no ano em que jogámos a final da Taça contra o Vitória FC.
Actualmente seria possível reeditar essa ligação umbilical entre a Académica e a Universidade de Coimbra?
Essa Académica de ontem (…) hoje já não podia. A sociedade transformou-se. Aquela Académica onde o prémio de jogo era uma laranjada… para mim e para muitos, fazer parte do lote de convocados já era uma vitória; até porque, se fosses suplente, já ganhavas cinquenta escudos! Como te digo, a génese daquele clube era a formação social e quantos tinham exames e pediam para não ser convocados.
Antes de assinar pelo Benfica, desce ao Jamor para defrontar o Vitória FC. A final mais longa de sempre da Taça de Portugal foi a melhor montra que podia ter tido?
Claro que uma final da Taça atrai as atenções das gentes do futebol, mesmo que nela não estejam envolvidos os três grandes. Foram a Académica e o Vitória FC, duas equipas que até podiam ter ali nuances daquilo que viria a ser o tiki-taka, com as devidas distâncias. Mas concordo que é essa final, pelos contornos que teve e pela exibição que acabei por fazer, que despertou a atenção do senhor Otto [Glória], responsável pela minha ida para o Benfica.
– O Benfica de Toni ou o Toni do Benfica –
“Académica x Benfica? É um dia histórico, em que o Futebol serviu a causa”
Ainda vive em frente ao Estádio da Luz?
Não é em frente! Eu vivo na rua da Lusa, sensivelmente a 600 metros do Estádio da Luz, há cinquenta anos. Sou quase o regedor. [risos]
Ao serviço do Benfica foram 13 épocas, tendo feito 395 jogos e marcado 24 golos. Que episódio nunca contou publicamente?
Conto-te esta porque é rápida e mostra a força que o Eusébio tinha: era o meu primeiro jogo para a Taça dos Campeões Europeus, na Islândia, contra o Valur. Na ida para Reiquejavique, o Eusébio não seguiu connosco na comitiva porque foi receber a Bota de Ouro. Lembro-me que fizemos escala em Glasgow e, na ida, parecia que ninguém nos conhecia, e estavam lá o Coluna, o Simões, o José Augusto, o Torres, o Jaime Graça… jogadores que, anos antes, tinham estado no Mundial 66. No regresso, já com o Eusébio integrado, foi a loucura nesse mesmo aeroporto! Fotografias, autógrafos… eu, que tinha meia dúzia de dias no Benfica, acabei por levar por tabela e também assinei e tirei fotografias.
O que é feito do Austin 1000?
Já não o tenho! Foi o meu primeiro carrinho. EF-73-77: podes apontar! Comprei-o meses depois de ter vindo sozinho para Lisboa, porque em Coimbra já tinha tirado a carta. Antes disso, eu e os colegas que vivíamos no Lar do Benfica apanhávamos o eléctrico ao pé da igreja de Benfica, íamos até ao Califa e, dali, apanhávamos o autocarro até ao estádio ou íamos a pé.
Tudo começou com uma pré-época “de sonho”: uma digressão de mais de 30 dias pelas Américas. Já tinha andado de avião?
Já, com a Académica: tínhamos ido jogar aos Estados Unidos, a Newbedford [Massachusetts], e a Caracas, esta última através do Amadeu José Freitas; viajámos na Viasa, a companhia aérea venezuelana daquela época.
É durante essa pré-época que o falecido Carlos Pinhão o apelida de “Tonitruante”. Foi um digno aprendiz de Coluna e Jaime Graça?
Um ano depois de lá ter estado com a Académica, volto aos Estados Unidos com o Benfica. Nessa digressão, que começou em Belém do Pará, estreei-me no dia 8/8/68 contra o clube do Remo, empatámos 1-1 e guardei a bola, porque quando o árbitro apitou estava com ela nos pés. Depois, fomos para Buenos Aires fazer um pentagonal – no qual o melhor marcador do Benfica acabei por ser eu, vê lá – com Santos, Boca Juniors, River Plate e Nacional de Montevideu. Daí, seguimos para a Venezuela, para jogar com o Botafogo, seguiu-se Bogotá contra os Millonarios e, finalmente, regressámos aos Estados Unidos para jogar no Yankee Stadium, novamente, contra o Santos de Pelé. Foi este o meu batismo inicial. Em relação à pergunta, disse muito bem: fui um digno aprendiz! Jaime Graça e Mário Coluna tinham dois estilos diferentes! Coluna, que estava a aproximar-se do fim de uma carreira brilhante, deixou uma marca na História do Benfica e do futebol mundial; Jaime Graça era um jogador fino, inteligente, de enorme visão de jogo e capacidade de drible, e que podia fazer não só o meio, mas também o lado direito. Foi um factor muito importante para o meu crescimento ainda tê-los como os homens com quem fui emparelhando na zona do meio-campo. Aliás, fruto do surgimento das substituições, nesse ano, no futebol português, acabei por fazer 22 jogos em 26 possíveis, que foi bom para ir começando a afirmar-me.
Meses passados e voa de novo, desta feita até Luanda, para defrontar o ASA para a Taça de Portugal. Em plena Angola Colonial, que impacto teve em si ver pretos e brancos unidos a festejar a vitória do Benfica?
Senti que havia uma comunhão perfeita. Nesse jogo, inclusive, houve gente que fez 600 e 700 km para ir ver o jogo, saindo de vários pontos de Angola para chegar a Luanda. Quando o sorteio ditava ASA x Benfica, os dois jogos eram em Angola; se fosse Benfica x ASA, as partidas realizavam-se em Portugal. Aliás, um ano antes tinha defrontado o ASA pela Académica: um jogo foi em Coimbra e o outro foi em Lisboa. Isto para dizer-te que passámos lá uma semana e a recepção que tivemos no aeroporto de Luanda, que continuou até ao hotel e culminou nas pessoas que não arredaram pé durante a noite, porque estavam ali – numa altura em que ainda não havia televisão – aquelas que eram as figuras míticas do futebol português, foi uma coisa impressionante.
Taça que viria a conquistar frente à Académica, num jogo fortemente marcado pela contestação ao Estado Novo.
Essa final foi o maior comício feito na Era de Salazar! É uma final que significou muito mais do que uma Taça. Só faltou a Académica ganhar, mas se calhar até foi melhor ter sido o Benfica, porque as manifestações poderiam ter assumido graves contornos. Pela primeira vez, uma final da Taça não foi transmitida pela televisão, a conselho do Ministro da Educação da altura, o Dr. José Hermano Saraiva. É um dia histórico, em que o Futebol serviu a causa. Adivinhava-se que algo estaria para acontecer.
Insisto nesta temporada, de 1968/69, porque é nela que se inserem dois dos jogos que diz terem sido mais especiais para si: o último do campeonato, em Tomar, e o 1-3 na Luz, frente ao Ajax.
Felizmente há muitas mais memórias positivas que negativas, mas o 3-1 com o Ajax é uma frustração, atendendo a que vínhamos de um resultado positivo em Amesterdão [3-1] e jogado em condições adversas, porque o campo estava coberto de neve. Na Luz, o senhor Cruijff resolveu abrir o livro e acabou com o jogo. Naquela altura havia um terceiro jogo para desempatar e fomos a Paris: 0-0 no tempo regulamentar e acabámos por perder no prolongamento. Esse 3-1 é marcante porque nos poderia catapultar para, eventualmente, repetir a conquista europeia. O jogo em Tomar significa saber, pela primeira vez, o que é ser campeão pelo Benfica e logo em época de estreia.
Há ainda a história da invasão de campo, em que, pelo que me disseram, foi o único jogador que se manteve sereno.
Janeiro, 1970. Estava de chuva. O árbitro era João Nogueira, da AF de Setúbal; se nós não estávamos a jogar nada, ele também não estava a ser feliz nas decisões que andava a tomar. O Mota da Silva foi para a rua, o Torres, que era o capitão, foi para a rua também, e o que acontece é que, fruto de uma decisão que o árbitro toma, eu olho e vejo que, do lado da baliza sul, vêm uma série de adeptos a correr e eu disse “Oh Homem, fuja, fuja, fuja!” e o árbitro, de olhos esbugalhados, começa a correr. O Estevão também se junta e apoiámo-lo até ele sair pelas escadas. Lá em baixo estava o Sr. Calado, o sapateiro, com o pé de ferro para se houvesse alguma coisa com as nossas botas, e o árbitro começa a querer vir para cima com esse objecto e eu disse “Epá, não, não!”. Estou a rir-me, mas não devia ter acontecido: provocou uma interdição de oito jogos no Estádio da Luz e puseram uma rede na bancada para que se evitassem invasões futuras. Ainda levei com um guarda-chuva nas costas. Foi um dia negro na história do futebol português.
– Da relva para o banco: Rui Costa, Zidane e Irão –
“João Pinto? Quem o deixou sair do Benfica devia estar preso”
Permita-me fazer a ponte para a sua carreira fora das quatro linhas: é no Benfica que inicia as funções de treinador, primeiro enquanto adjunto e, depois, como principal. Que importância teve Eriksson nesta nova fase da sua vida?
Quando o Eriksson chega ao Benfica, eu já tinha sido adjunto do Lajos Baroti. No primeiro ano do húngaro na Luz, eu ainda era jogador; no segundo ano passei a adjunto, com o senhor Caiado. O sueco chega na época 1982/83 e identifiquei-me logo com a sua ideia de jogo. Os métodos de treino que trouxe também foram importantes, porque cortaram com aquilo que era a forma como se trabalhava: não pela complexidade do treino, mas pelos exercícios fáceis e com bola. Trouxe motivação aos jogadores. Para além disto, encontra um leque de jogadores de grande qualidade do ponto de vista técnico, físico e táctico. Houve uma comunhão perfeita. Cheguei a dizer-lhe, numa das conversas que tínhamos diariamente, que eu podia ter sido melhor jogador se tivesse sido treinado por ele.
O resultado 6-3 tem dupla face para o Toni: se, por um lado, é sinónimo de uma das suas maiores vitórias, por outro, significa a última partida ao comando do Bordéus. Qual destes jogos teve maior impacto na sua carreira?
O jogo de Alvalade abriu-nos a porta para chegar ao título. Numa época de grande complexidade, vencer, ainda mais por estes números, em casa de um rival (…) indo recuperar jogadores que já estavam quase do outro lado e se revelaram fundamentais, como é o caso João Pinto… quem o deixou sair do Benfica devia estar preso. O João nunca devia ter saído do Benfica! Aliás, por essa altura, também já sabia que a minha saída do Benfica já estava decidida, mas fui respondendo com profissionalismo todos os dias, numa época muito difícil.
Em relação ao outro jogo, foi contra o Mónaco. Como sabes, o plantel do Bordéus era constituído por 18 jogadores e, quando necessário, existia o centro de formação ao qual podíamos recorrer. Nesse dia, ia jogar o Sonny Anderson e lembro-me de ter de pôr, fruto de castigos e de lesões, dois miúdos de 18 anos a centrais e, para lhes dar cobertura, pensei “Bem, deixa-me jogar aqui com três a ver se consigo aguentar isto”. Aos 20 minutos já estávamos a perder 3-0, portanto abandonei os três defesas. Ainda fizemos o 3-2, não sei se foi o Dugarry ou o Zidane, mas o jogo acabou com os 6-3. De todo o modo, faltavam apenas oito jornadas para o fim do campeonato e foi com o meu contributo que o Bordéus vai à Taça UEFA, através da Taça Intertoto; no ano seguinte, estão a jogar com o Bayern na final e quase a descer para a segunda divisão. Foi a venda do Zidane, para a Juventus, do Dugarry, para o Milan, e do Lizarazu, para o Bilbao, que permitiu ao Bordéus reinventar-se e ficar com uma equipa muito diferente daquela que eu tinha.
São dois 6-3 com sabores distintos: um que provoca um dia de uma alegria imensa e outro que provoca um dia de tristeza, mas não diria de grande tristeza. Tristeza a sério foi quando, dias depois, recebo uma chamada do Presidente do Bordéus – que não teve a hombridade de fazê-lo pessoalmente – e disse-me que estava despedido.
O Rui Costa já o perdoou por ter jogado apenas vinte minutos nesse derby?
Já falámos sobre isso, continuaremos a falar-nos e temos uma relação boa. O Rui Costa foi campeão comigo como treinador, regressa à Luz porque falo com o Eriksson e disse-lhe que havia um miúdo que estava a destacar-se no Fafe e que pertencia ao Benfica. Aquela equipa teria de ser sempre Rui Costa mais dez, mas o jogo e a estratégia que montámos, eu e o Jesualdo, (…) tínhamos de equilibrar a equipa; não a podíamos partir com cinco homens de propensão ofensiva e outros cinco de propensão defensiva. Foi a razão pela qual ele só jogou 20 minutos nesse dia. Nos jogos que se seguiram, o Rui foi sempre titular. Não é fácil para um jogador daqueles aceitar ficar de fora num derby, mas houve sempre algo que me guiou enquanto treinador: ninguém é mais importante que a equipa.
Entre Rui Costa e Zidane, quem aparentava ter maior potencial?
Parecendo iguais são diferentes. São iguais no talento, na criatividade. A passagem de ambos pelo futebol italiano acabou por lhes ser benéfica, enriqueceu-os do ponto de vista táctico e físico, porque tecnicamente já sabiam tudo. Só que, enquanto o Zidane saiu para a Juventus, o Rui saiu para a Fiorentina, e penso que pode estar aí o motivo pelo qual não foi catapultado para outros patamares – embora tenha deixado o seu lastro de classe e de talento, páginas de ouro que escreveu, em Florença e no futebol italiano. Vou confessar-te que, no Bordéus, sonhava trazer o Zidane e o Dugarry para o Benfica, mas tinha de hipotecar a Caixa Geral de Depósitos para que isso acontecesse.
Sevilha vale, sobretudo, por ter testemunhado de perto o talento de Šuker?
O Šuker até parecia que estava a mais naquela equipa. Era um jogador fabuloso. Lembro-me, também, de recorrer a um miúdo chamado Carlitos, que tinha 17 anos e acabou por fazer parelha com o croata. Quando fui para Sevilha, o clube vivia dos períodos mais difíceis da sua história. O Celta de Vigo e o Sevilha estavam na segunda divisão; já tinha sido feito o calendário para 20 equipas, que depois foi alterado para 22, porque o povo foi para a rua e revoltou-se.
Quando consultei o seu palmarés, notei que faltava uma das maiores conquistas do Toni: ter conseguido explicar ao Amir o que era uma pá …
Essa história não foi para o Youtube! É passada no gabinete do Presidente com todo o staff técnico. Estávamos a fazer um meeting e o Presidente disse “Epá… meio-campo… buraco…” e eu disse ao Amir, o meu tradutor que tinha sido casado com uma brasileira, “Sabes o que é uma pá?” e ele ficou a olhar para mim sem perceber. Lá lhe fiz sinais, e ele acabou por perceber. “Então diz ao Presidente – e não tenhas medo! – que agarre numa pá e vá lá tapar o buraco. Mas diz-lhe mesmo!”. Ele podia ser o Presidente, mas o treinador era eu. A minha equipa técnica – o meu filho, o Vítor Campelos e o Paulo Grilo [treinador de guarda-redes] – pensou que íamos todos presos.
Como foi o regresso a Tabriz após a conquista da Taça do Irão?
Foi das maiores manifestações de carinho e reconhecimento que senti na minha vida. O Tractor é uma bandeira de 40 milhões de pessoas. Já viste como é que o Quaresma foi recebido na Turquia, como é o ambiente de um jogo na Turquia… transporta isso para o Irão. Quando a selecção joga no Azadi Stadium, em Teerão, estão 100 mil a assistir e se o estádio tivesse capacidade para 500 mil, eram 500 mil que estavam lá. A conquista da Taça do Irão, no dia 14/02/2014, é o feito que marca a história daquele clube.
Por falar em vitórias, o dia 11 de Junho de 2013 coroa a maior vitória da sua vida?
Foi o jogo da vida. Regressei do Irão para férias no tempo certo, porque a primeira coisa que fiz quando cheguei foram análises ao sangue e uma radiografia aos pulmões; como a radiografia foi um bocadinho mais abaixo, o radiologista apanhou um tumor maligno no rim esquerdo. Felizmente, estava circunscrito e não metastizou. Foi a maior vitória.
Já o dia 11 de Agosto rima com susto.
Quando lemos ou ouvimos na televisão que houve um tremor de terra no Japão ou no Haiti, não fazemos ideia do que é isso. Lembro-me que estava sentado no sofá e o candeeiro era o meu sismógrafo, parecia o sino de Mafra. Agarrei no meu filho e disse “Vamos para baixo de uma ombreira” e aquela hesitação de andar de um lado para o outro (…) a qualquer instante dava-nos a sensação de que aquilo ia cair. Estávamos no 12.º andar. Foi um minuto interminável. Na escala de Richter atingiu 6,4, com o epicentro a 60 ou 70 quilómetros de onde estávamos. Depois houve réplicas, nesse dia e nos seguintes, mas nada comparadas com o primeiro. É um dia que não esqueço e até está apontado no meu diário.
– Passes Curtos –
Toni do Benfica, craque saloio ou cavalão?
Toni do Benfica é um orgulho e não tem preço. Craque saloio vem do facto de em Coimbra, no final do treino, ficar a ajudar o “Capitão” a treinar os guarda-redes; eu rematava em “banana”, a pior coisa que podes fazer aos guarda-redes, e o “Capitão” mandava com cada tiro… o Dr. Maló, que ainda não era formado, dizia “este craque saloio, pá” e ficou. Cavalão foi o “Capitão” e tem para mim o significado de alguém que me marcou para sempre. Assim como o Vítor Martins era o “Bom de Bola”.
Jogar ou treinar?
São diferentes, mas o prazer de jogar é qualquer coisa. Treinar é apaixonante, mas completamente diferente de jogar. O prazer de jogar pode sobrepor-se ao prazer de treinar.
Golo, assistência ou desarme?
O futebol é golo.
Melhor jogador com quem jogou?
Eusébio, acima de todos. Depois, Chalana e Humberto Coelho.
Melhor jogador contra quem jogou?
Pelé e Beckenbauer, o meu ídolo.
Melhor treinador que teve?
Mário Wilson.
Melhor jogador que treinou?
Tinha de se fazer uma selecção [risos]. Tive a felicidade de ter treinado grandes jogadores: Bento, Ricardo Gomes, Mozer, Chalana, Carlos Manuel, Diamantino, Rui Costa, João Pinto (…) Zidane, mas não queria dizer estrangeiros…"
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