"Aqui vai uma frase sem qualquer impacte na opinião pública: “ninguém vai apenas ver um jogo, mas “torcer” (perdoam-me o brasileirismo?) pelo clube da sua simpatia”. O fenómeno acontece até com pessoas da elite intelectual e portanto habituadas, noutras situações, a um admirável rigor hermenêutico. Conheci, em tempos idos, alguns belenenses de certa relevância social que, durante os jogos, sobravam-lhes pretextos, para descobrir um “penalty” (ou dois, ou três), a favor do Clube da Cruz de Cristo. Num domingo da década de cinquenta (se bem me lembro), que perdemos, no Restelo, por 0-1, com o Caldas, regressei a minha casa, com “boleia” de um destes “doentes”. Logo no parque de estacionamento do Estádio do Restelo esporeou o carro com uma tal violência que o fez bater noutro carro, também estacionado, como o cavalo a quem a dor enfurece. Voltou-se para mim e decretou sem apelação: “Sabe quem é o culpado disto tudo? O árbitro que, na segunda-parte, não marcou aquele “penalty” sobre o Matateu”. E profundamente desgostoso: “Deixou-me possesso”. Nos dias de hoje, os comentaristas desportivos, em certas estações televisivas, agridem-se com palavras que talvez estejam incursas no Código Penal, principalmente pelas mesmas razões daquele meu consócio – as exibições dos árbitros, que agradam quase sempre a quem ganha, que desagradam sempre a quem perde. Até as lucidíssimas prosas de alguns entendidos, nestas coisas do futebol, não deixam de aguçar arestas, para que se faça do árbitro o “bode expiatório”! Só que alguns árbitros parecem indestrutíveis. Ou, então, indiferentes. Aquela obstinação na raiva, no rancor, aquelas frases despropositadas de espectadores e de críticos profissionais – nada daquilo pode dizer-lhes respeito. E enfrentam os desafios, os ardis, o clubismo faccioso, com uma aparente apatia que, para mim, se confunde com a coragem. Os árbitros, principalmente os árbitros do futebol, são meus mestres na arte de superar qualquer forte sensação de incomodidade. Daqui lhes agradeço a lição!
Um ponto que me interessa salientar, também: a análise estatística. E sem qualquer ressalto de espanto. De facto, já o Sr. José Maria Pedroto, nas nossas habituais conversas, me referia a necessidade da análise estatística, no estudo do futebol. O Prof. José Neto era o seu adjunto que desta área se ocupava. Até na análise estatística José Maria Pedroto foi um pioneiro. Sem os contributos maravilhosos da Quarta Revolução Industrial – mas foi um pioneiro, sem dúvida. Luís Cristóvão, sobre este assunto, escreve na revista do Expresso, (2019/6/22): “O futebol é cada vez mais um jogo de números. Uma dimensão que, é certo, sempre lhe foi próxima. Da contagem das superioridades à contagem dos golos, o futebol poderá ser o desporto onde o “mais um ou menos um” é mais fundamental, tendo em conta a possibilidade de um só golo decidir campeonatos inteiros”. Daí, a necessidade de “analistas que potenciam o conhecimento do jogo e transformam os mais pequenos pormenores em grandes vantagens competitivas (…). É uma linha constante na forma como a estatística entrou no mundo do futebol. A aliança entre tecnologia, o conhecimento científico e a paixão e a experiência pelo jogo permitiram modificar comportamentos que se notam, à vista desarmada, na forma como abordamos as apostas desportivas, os jogos de computador ou o entendimento daquilo que se passa no campo”. Quero dizer que o artigo do Luís Cristóvão me parece oportuno e bem fundamentado. Na Sociedade do Conhecimento, com o conceito de complexidade, ressoa a frase do Hegel: “A Verdade é o Todo”. Mas, na Sociedade do Conhecimento, não interessa tão-só conhecer mais, interessa também conhecer melhor. Atravessamos a Quarta Revolução Industrial e 17% da população mundial ainda não viveu a Segunda Revolução Industrial! Ou seja, 1,3 mil milhões de pessoas ainda não têm acesso à electricidade. Também uma observação deverá fazer-se, em relação à Terceira Revolução Industrial: 4 mil milhões de pessoas ainda não têm acesso à internet. Enfim, a diferença entre países ricos e países pobres não deixa de acentuar-se…
Voltemos ao artigo de Luís Cristóvão: “Existem posições em campo que saíram muito beneficiadas, pelo advento da análise estatística”. O caso do N’Golo Kanté, atualmente no Chelsea, é um exemplo. “Formado em clubes de escalões secundários franceses, passou, em anos consecutivos, da terceira divisão francesa, para o título de campeão da Premier League, com o Leicester. A base do seu recrutamento foi a análise estatística”. No entanto, “os dados não mataram a estrelinha no futebol. A bola que bate no poste, o craque que tem um dia mau, o adversário que se adapta de forma mais rápida a uma mudança, no contexto do jogo, continuarão a ter uma presença forte no resultado final”. Quando o desporto moderno (e o futebol, portanto) surgiu, concebido e publicitado pelas universidades britânicas, constava da lista dos seus incontáveis benefícios a prática do “fair-play”, da generosidade, do companheirismo, da coragem. Resumindo: o futebol era sinal de progresso físico, cívico e moral. E os desempenhos dos atletas, nos estádios, eram tudo isso, a um só tempo. Com o correr dos anos, o desporto (e o futebol, mais do que nenhuma outra modalidade desportiva) vem reproduzindo e multiplicando as taras da sociedade capitalista, como a mania do rendimento, da medida, da competição, do recorde, do mais antipático individualismo e dos mais alienantes imperativos do mercado e onde, inevitavelmente, a quantidade predomina sobre a qualidade, onde há triunfadores e perdedores, onde o espírito lúdico mal se divisa num “jogo de futebol”. Em Portugal, futebolisticamente falando, ninguém vai apenas ver um jogo, mas “torcer” pelo clube da sua simpatia. E, neste futebol, já se diz por aí que somos os melhores. Com efeito, o melhor jogador do mundo é português, treinadores portugueses já são inumeráveis os melhores do mundo, somos campeões europeus e conquistámos o primeiro lugar, na Taça das Nações. E de árbitros só não é nosso o melhor do mundo porque a FIFA não quer. Temos que deixar algum troféu, para os outros. É uma questão de “caridadezinha”. Mas também, no mundo da arbitragem, já caprichámos. O actual presidente da Liga, Dr. Pedro Proença, quando árbitro internacional, houve quem lhe reconhecesse qualidades incomparáveis.
Venho de ler uma separata da Revista Filosófica de Coimbra, com um texto maravilhoso do Doutor Luís Umbelino, professor do departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. O seu autor teve a bondade de mo oferecer. E assim o resume: “O problema do membro-fantasma formula-se de modo simples: trata-se de saber como se faz a experiência, no presente e como real, de uma parte do corpo fisicamente ausente”. E da neurofisiologia e da filosofia, após a leitura do Doutor Umbelino, transitei para a história do desporto português. E senti, como uma dor que me tomasse, a ausência de alguns dos pioneiros do desporto em Portugal, que eu conheci pessoalmente e cheguei a fazer amizade. O triunfo imperial de um certo espectáculo desportivo, ou não conheceram, ou conheceram mal. Digamos mesmo: não podiam conhecer. Um espectáculo a beneficiar de uma superinformação e do advento da mais sofisticada tecnologia, rodeado de sábios especialistas e de certas peculiaridades do “pensamento único”, que já regulam também o desporto – a tanto não podiam eles chegar. Mas continuo a encontra-los a cada passo, pelo seu exemplo, por algumas das suas ideias (não de todas evidentemente, pois reflectiam um tempo que não é o nosso) e, acima de tudo, pelo seu testemunho de vida. As personalidades carismáticas agora são outras: jogadores, dirigentes, empresários, com Imprensa favorável e um crédito financeiro espantoso. Pensar é problematizar e, para problematizar o futebol de hoje, são outras as variáveis e outras os condicionalismos. E, porque os problemas persistem nas soluções (de facto, uma solução não tem sentido independentemente da problemática que a fez nascer) problematizar o futebol conduz a uma determinada cultura – a cultura da sociedade de mercado! Mas não só: quando a selecção nacional joga, Portugal deixa de ser uma “sociedade de classes”, todos nos sentimos iguais – portugueses apenas. Um milagre do futebol! E isto num país onde ninguém vai apenas ver um jogo, mas “torcer” pelo clube da sua simpatia."
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