"De repente, uma memória solta-se da sua prisão como um pássaro que fugisse da gaiola. Início de Março de 1984. O Benfica foi goleado na Luz (0-5) pelo Hvidovre. Um Benfica de segundas linhas apenas a cumprir o papel que lhe cabia no contrato de aquisição de Manniche.
Às vezes é bom deixar a memória à solta, como o cavalo do meu querido Fernando Tordo. E não correr à procura do momento exacto da história certa. Lembrar. Lembrar só. Mesmo que coisas incompletas que obrigam ao esforço das meningues.
Estou em Águeda, terra da minha infância, ponto mais alto da ternura.
De certa forma, estou no meu posto.
Durante quatro dias viajei entre Águeda, Porto e Guimarães por causa da Liga das Nações, sempre com aquela excitação do jornalismo a correr-me pelas veias, aquele excitação de ir ao sítio onde as coisas acontecem e não ficar à espera que elas nos entrem em casa pelo ecrã da televisão.
Sentando num grupo de amigos, entre os quais o meu camarada de A Bola, Celestino Viegas, recordámos aquela vez em que o Benfica veio jogar ao Municipal, ali no Sardão.
Na época de 1983/84 o Recreio de Águeda estava na I Divisão: pela primeira e única vez.
Estive lá e vi. E muito não vi.
Sim, porque não havia espaço para todos. O público transbordou das bancadas até às linhas laterais - os dirigentes do Benfica viriam a fazer um protesto, alegando que o campo tinha sido reduzido - encavalitava-se atrás das balizas, os guardas republicanos passeavam a cavalo procurando impedir que as pessoas saltassem para dentro do pelado.
Havia quem gritasse: «Tira o cavalo do frente!!! Quero ver a bola!»
Bem podia gritar... De nada servia. A autoridade cavalgava a passo, farda a condizer e uma certa vaidade mal escondida.
O Benfica ganhou fácil: 4-1.
Mas a gente recorda-se sempre dos cavalos republicanos.
Um miúdo chamado Peter
Depois, a memória começou a inquietar-me.
Não sabia porquê, mas tinha que ver com o Manniche. O Manniche dinamarquês. Grande figura! Grande figura!, como exclamaria Otto Lara de Resende.
Mal desembarcou em Lisboa, José Maria Pedroto, que era treinador do FC Porto, tratou de diminui-lo: 'É um rapaz alto e louro'.
O rapaz alto e louro foi campeão pelo Benfica. Chegara de uma equipa meio desconhecida, o Hvidovre.
Depois, por entre as tais brumas da memória, chegou-me a vaga imagem de ver o Hvidovre jogar na Luz. Era por causa do contrato. Metera dinheiro pelo jogador e um jogo amigável ao qual o Benfica ligou pevas, entretido que estava a ser campeão.
Mas houve esse jogo e eu também estive lá.
Noite desoladora e fria.
Por muito que me esforce, os pormenores fogem-me e eu prometi, logo na primeira linha,que não ir ia recorrer aos subterfúgios de foçar nos canhenhos ou na internet. Faço um esforço. Um esforço grande.
O jogo contra o Hvidovre, na Luz, foi próximo da vinda do Benfica aqui, a Águeda.
Lembro-me de o Filipovic estar em campo. Depois da chegada do Manniche, foi perdendo o lugar nas escolhas de Eriksson.
Lembro-me de, dois ou três dias mais tarde, ver o Benfica dar 7-0 ao Braga, e de o Manniche fazer golos.
Lembro-me de que o jogo foi estranhamente dominado por aqueles dinamarqueses que sentíamos não virem de parte alguma.
E ganharam de goleada: 5-0. Com 3-0 ao intervalo.
Mas o que já não me lembrava, e de repente lembro-me como se uma luz se acendesse na escuridão do cérebro, é que na baliza do Hvidovre estava um calmeirão, também alto e também louro. Um tipo imponente, elástico, exibindo a calma intocável dos veteranos.
Depois, muito depois, ficou conhecido em todo o mundo. Filho de um músico de jazz polaco, nascido em Soborddard, na região de Gladsaxe, na Dinamarca. Foi empregado de limpeza num lar de idosos, vendedor, chamado ao serviço militar numa altura em que estava no Algarve, a fazer um estádio com a sua equipa, e libertado do fardo por alegação de ter os joelhos demasiados fracos.
Percebo, só assim não vão lá.
E isto também não é um concurso de adivinhas.
O rapaz chamava-se Peter Schmeichel. Tinha vinte anos.
Esteve na Luz e ganhou.
E eu ganhei uma nova recordação. Que estava há muito perdida nos labirintos do esquecimento."
Afonso de Melo, in O Benfica
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