"A inclusão no desporto é um processo multidimensional que está dependente de vários factores, entre os quais a assunção pessoal e familiar da deficiência e do processo que decorre (1); na criação de condições sociais do próprio processo de inclusão (2); e na transposição deste mecanismo relacional para um domínio mais específico que é o sistema desportivo (3).
Em termos meramente conceptuais, a deficiência deve ser considerada como uma diferença a ser valorizada, para que não sejam atribuídos rótulos que muitas vezes inferiorizam pessoas, destacando apenas alguns atributos, geralmente de forma não elogiosa. A confusão existe e persiste entre o atributo, lesão, (situação objectiva) e a condição de deficiência, isto é, o modo como esta influencia a performance das pessoas na sociedade, (experiência subjectiva).
Deduz-se, assim, que o factor determinante, está na interacção entre as condições disponibilizadas pela sociedade (entenda-se acessibilidade, no sentido mais amplo do termo) e as de funcionalidade da pessoa e as suas particularidades.
Três considerações básicas e práticas redundam desta análise conceptual:
1- A deficiência não deve ser circunscrita ao aspecto meramente biológico, mas deve ser considerada como um constructo relacional, porque depende não só da percepção do próprio sobre a sua deficiência, mas também do resultado da interacção entre indivíduo e sociedade.
2- Não podemos, nem devemos banalizar a deficiência tratando por igual o que é diferente, correndo o risco de assistirmos passivamente a um processo de consequências não antecipadas, como sucedeu com o conceito de racial colour blindness, cujo contramovimento provou que a desconsideração da “raça” na selecção de pessoas para a participação em actividades ou para a alocação de serviços era prejudicial às minorias em causa. Ao prescindir-se da própria deficiência enquanto atributo, com classificações, perfis ou categorizações, o que na prática sucede é que se ignoram as questões de poder relativo de certos grupos de indivíduos na comparação com outros grupos de indivíduos.
3- O sistema desportivo tem de ser rigoroso no próprio processo de inclusão desportiva, dos que possuem definitivamente atributos que os categorizem enquanto portadores de diferenças a serem relevadas na sua classificação de deficiência. A lei Geral portuguesa faz depender o reconhecimento de direitos/benefícios às pessoas com deficiência em função do grau de incapacidade definido pelo AMIM, emitido nos termos da lei (D-L n.º 202/96, de 23 de Outubro, alterado pelo D-L n.º 291/2009, de 12 de Outubro), facto que devia ser seguido pelo sistema desportivo.
A inclusão como processo é, em suma, uma questão de equidade, procurando adaptar o contexto à situação concreta, observando-se os critérios de justiça e igualdade para Todos os que fazem parte.
Cabe à sociedade prever (1) e prover (2) os mecanismos de equidade social para facilitar a inclusão social (1) e desportiva (2) das pessoas com estes atributos, num verdadeiro projecto de responsabilidade social. Cabe às organizações desportivas com utilidade pública desportiva (UPD) aceitarem e cumprirem a delegação de competências do estado no cumprimento deste direito constitucional, ajustando as suas práticas a esta necessidade, provendo as necessárias condições financeiras para a tornar possível.
Quando no início do século XXI se começou a ouvir falar em inclusão do desporto adaptado nas estruturas federativas de modalidade, utopia era a palavra mais associada devido não só à mentalidade do país que ainda via o cidadão com deficiência como um ser ineficiente e com o qual devíamos ter consideração e alguma comiseração, mas também pela falta de responsabilização por parte das organizações desportivas aliada à consciência de falta de preparação estrutural e condições financeiras nas federações que tinham sofrido já cortes nada desprezíveis no seu financiamento (30%).
Estávamos então numa época em que o desporto para deficientes se encontrava circunscrito, quase em exclusivo às associações de e para pessoas com deficiência que, sem apoios e sem recursos específicos, perceberam o enorme potencial desta prática como factor de reabilitação e de integração social.
De 2000 a 2008 assistimos a um crescente reconhecimento social e político dos feitos alcançados pelos atletas paralímpicos, com alguns destes a deixarem de estar integrados nas associações de deficiência e a transitarem para clubes de modalidade, com o desenvolvimento de campanhas de comunicação e de marketing que enfatizavam a superação de capacidades.
Durante este período, que se estendeu até cerca de 2012-2014, o desporto adaptado federado, esteve confinado à Federação Portuguesa do Desporto para Pessoas com Deficiência (FPDD), sendo que nalgumas categorias de deficiência intelectual, esta responsabilidade ficou acometida à ANDDI-Portugal, Associação Nacional de Desporto para Desenvolvimento Intelectual, instituição cuja principal actividade é fomentar e organizar a prática de actividades desportivas de competição, para atletas nacionais com deficiência mental / incapacidade intelectual.
No final da primeira década do Século XXI, o governo da república começou a ter mais preocupações na aplicabilidade dos princípios de igualdade de direitos de acesso e tratamento, liderando o combate ao principio da segregação vigente até então, nomeadamente pela Secretaria Estado do Desporto e Juventude (SEDJ), Instituto Português Desporto e Juventude (IPDJ) e Instituto Nacional de Reabilitação (INR). Com a formação do Comité Paralímpico de Portugal (CPP) no final de 2008, este processo de inclusão passou a ter uma acção mais concertada e visibilidade sem, no entanto, se verificarem melhorias e até alguns retrocessos nos apoios directos à preparação e participação desportiva dos atletas.
Entre 2012 e 2014, o IPDJ assumiu o apoio à inclusão e promoveu e apoiou a passagem das duas maiores modalidades paralímpicas: atletismo e natação da Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiência para as respectivas federações de modalidade.
A nível mais global, para além da integração nas federações de modalidade, de realçar o estabelecimento de contratos-programa quadrienais entre o CPP, o IPDJ e INR que conferiu aos projectos de preparação paralímpica de Londres 2012 e do Rio 2016 níveis de confiança, de estabilidade e de planeamento previsíveis, com pagamento efectivo e actualizado das bolsas financeiras aos atletas, acompanhantes e treinadores, e respectiva definição atempada dos planos de preparação e de participação desportiva ajustados.
No caso da FPN este processo foi faseado tendo sido delineada uma estratégia de inclusão total de todas as categorias de deficiência garantindo o respeito pelos nadadores e demais agentes desportivos envolvidos, apesar dos percalços vividos, especificamente a resistência por parte das próprias instituições da deficiência por não reconhecerem nas federações a competência organizativa e níveis de autonomia necessárias para esta tarefa.
A realidade verificada em 2019 é que a mudança para a FPN permitiu garantir condições de prática e desenvolvimento que na anterior estrutura eram muito difíceis de promover devido a constrangimentos naturais, seguindo sempre os princípios avançados pelas Nações Unidas (Best Practices for Including Persons with Disabilities in all Aspects of Development Efforts, 2011), assegurando a igualdade e a não-discriminação e permitir a participação de pessoas independentemente da sua deficiência, promovendo condições de equidade entre todos independente do género, idade ou condição de deficiência criando as condições estatutárias (inexistentes até então) regulamentares, estruturais e funcionais - recursos humanos, organizativos e logísticos - que facilitaram este processo.
Tentando combater a reduzida taxa de participantes na natação para pessoas com deficiência tornou-se pertinente a operacionalização de programas de captação de novos praticantes com a implementação do projecto: Escolas de Natação Adaptada (ENA), cujo principal objectivo foi e é a inclusão do jovem com deficiência nas estruturas regulares de natação, resultando na diminuição do sedentarismo.
Em todo este processo usamos como referências o exemplo do Canadá, Reino Unido e Holanda, países internacionalmente reconhecidos pelas suas práticas inclusivas e onde a natação para pessoas com deficiência faz parte da estrutura das federações respectivas.
Obviamente que o caminho faz-se caminhando e existe sempre algum aspecto a melhorar. Por exemplo, em 2018 introduzimos uma nova categoria de deficiência e classe desportiva no nosso sistema competitivo - o autismo, de forma a garantir uma ainda maior igualdade e justiça desportiva.
Desde então, a um nível mais estrutural e organizativo, ocorreu uma filiação massiva das federações desportivas de modalidade no CPP e a assunção, por parte destas, da governação do desporto adaptado, permanecendo por ora apenas o boccia e o goalball afectos à Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiência.
A mudança de mentalidades em prole de uma verdadeira política de integração de desportistas com deficiência com vista à verdadeira inclusão é um processo complexo, num panorama etnocêntrico universal, que apesar das superficiais declarações em contrário, está eivado de perversidades antropológicas e político-sociais, que patenteia a discriminação ainda presente.
Esta mudança de mentalidades deve ser reportada também às próprias instituições com responsabilidade no enquadramento de pessoas com deficiência, justificando-se:
1. A alteração da sobreposição de competências e respectivas afiliações institucionais internacionais entre as federações de modalidade e as, até então, instituições da deficiência com responsabilidades históricas no enquadramento e resposta ao desporto para deficientes, desde logo porque já existe uma coordenação eficaz de testada nas actividades que as diferentes Instituições/Clubes promovem individualmente por todo o país. A FPN deveria estar afiliado exclusivamente no CPP para ter acesso aos Jogos Paralímpicos e às organizações internacionais com responsabilidade de organização de eventos: IPC/World Para Swimming (WPS) para campeonatos do mundo paralímpicos; INAS para a participação nos Global games e via SUDS (Sports Union for Athletes with Down Syndrome) nos Trisome Games.
2. A preparação de Selecções Nacionais em diversas modalidades para representar Portugal em competições internacionais esteja sob a alçada e coordenação somente da estrutura técnica da federação de modalidade e não de outras instituições;
3. Apesar das conquistas estruturais, financeiras e de reconhecimento, a necessária consciência social por parte das famílias, para reconhecer os benefícios do exercício e o desporto como ferramenta determinante do desenvolvimento motor, psicológico e social.
4. A existência de um projecto nacional agregador entre as organizações desportivas, a escola, e as IPSS, para um investimento real em núcleos de prática desportiva adaptada, que permita proceder a uma identificação e integração destes estudantes com potencialidades na vertente desportiva;
5. Repensar os contratos programa para o desporto adaptado e as prioridades estratégicas face aos recursos financeiros existentes. Ao longo dos ciclos paralímpicos de Londres, do Rio de Janeiro e de Tóquio operou-se uma evolução muito significativa dos montantes implicados, de tal forma que o valor global do contrato-programa Tóquio 2020 mais do que triplica o valor disponibilizado para o ciclo de Londres 2012, sendo que durante este período, e por iniciativa legislativa da Assembleia da República:
a. Foi estabelecida a igualdade no montante dos prémios de mérito desportivo atribuídos aos atletas olímpicos e paralímpicos, pondo cobro a uma discriminação negativa destes últimos assim como a equiparação das bolsas de apoio mensais aos diferentes intervenientes;
b. Foi definido ainda que os atletas paralímpicos terão à disposição um montante idêntico ao dos atletas olímpicos para a preparação desportiva. Mas, não ser que existam verbas para além das anunciadas, mais do que valorizar as bolsas mensais a aposta deveria ser, nesta fase, pela equiparação imediata das bolsas de preparação desportiva garantindo as condições de equidade necessárias para uma efectiva operacionalização dos projectos e programas de preparação;
6. Repensar a institucionalização da formação dos recursos humanos para o desporto/natação adaptada para além da formação técnica específica. Não existe enquadramento legal e/ou a consequente operacional para a formação de agentes responsáveis por alavancar a mudança."
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