"Por três vezes, Rodolphe Hiden deu com o nariz nas Rochas Brancas de Dover. Desistiu e foi ser francês, em Paris
Se tivesse nascido na Pérfida Albion que nos encheu, a nós portugueses, de comichões no sangue aquando do Ultimatum (que uns, por pilhéria, diziam último atum), Rodolphe Hiden não podia ter tido um nome mais escondidamente a propósito. Mas o facto é que Rudi, para os mais íntimos, veio ao mundo em Graz no tempo em que Império Áustro-Húngaro sobrevivia ao movimento de dispersão que costuma condenar todos os impérios.
Hiden era um cachopo aplicado e não tardou a despertar o interesse dos clubes da capital. Aos 17 anos já tomara conta da baliza do Wiener AC. É mais ou menos por aqui que Herbert Chapman, o treinador do Arsenal que revolucionou o futebol com a invenção do WM, entra na vida do nosso Rudi. Tudo por causa de um Áustria-Inglaterra, disputado em Viena, em 1930, perante mais de 55 mil almas frenéticas.
Os ingleses não costumam deixar-se fascinar por nada mais do que por eles próprios, pelo que foi surpreendente a forma como Hiden lhes caiu no goto. Talvez tenha sido por causa do seu cavalheiresco gesto de auxiliar um adversário que se contorcia no chão nas vascas da agonia; talvez fosse pela sua pinta de moço apessoado ao qual não deviam faltar filas de sopeirinhas espigaitadas; talvez ainda pela sua forma revolucionária de usar os pés e pela sua agilidade felina e temerária. Bom, pouco importa, Chapman quis levar Hiden para Londres e, logo ali, combinou com os dirigentes vienenses a bonita soma de duas mil e quinhentas Libras esterlinas.
Rudi esfregou as mãos de contente. O_Arsenal era, à época, o pináculo daquele desporto ao qual os britânicos deram o nome tão encantador de ‘association’. O problema é que o pobre Rudolphe deu demasiadas vezes com o nariz nas Rochas Brancas de Dover, ou, por outras palavras, na alfândega do lado de lá da Mancha. E não foi por falta de tentar. Ensaiou a viagem três vezes. O conspícuo Department of Labour limitou-se a enviá-lo no primeiro ferry de volta a Calais. Rudi fora padeiro em Viena e o Arsenal arranjara-lhe um cargo de chef num hotel de Londres. O profissionalismo no futebol ainda não era assunto consensual. E as autoridades da emigração estiveram-se nas tintas para a falta que um austríaco, por mais bem parecido que fosse, fazia na baliza do clube de Highbury.
Margaret Bondfield foi a primeira mulher a ocupar o lugar de ministro no Reino Unido: Ministério do Trabalho. E fez aprovar uma leia bastante inequívoca: «The Ministry of Labour states that professional foreign footballers are not to be allowed to play for English teams. This ruling has been promulgated in the view of the unemployment throughout the country».
O Arsenal desistiu de Hiden. Aproveitou um estrangeiro que já vivia em Inglaterra, o holandês Gerrit Keizer, dono de uma mercearia em Brixton Hill e que se plantava entre os postes dos amadores do Margate aos sábados à tarde. Em Highbury, continuou como amador. Ele e Charlie Preedy, um indiano natural de Neemuch, filho de um antigo militar no território, empregado nos correios de Mayfair. O Department of Labour suspirou de alívio. Receava que Hiden pudesse abrir um precedente na muralha anti-estrangeira que, pelas ruas de Londres, se via representada pela British Brothers League, levando uns grupos de calhordas a marchar, gritando desalmadamente: «England for the English».
O nosso Eça, que também viveu em Inglaterra, escreveu certa vez: «O alemão detesta o russo; o italiano abomina o austríaco; o dinamarquês execra o alemão. E todos aborrecem o inglês que os despreza a todos». Há muitos episódios que exemplificam esta sensação de superioridade que os ingleses acham tão própria da sua idiossincrasia que a entendem como virtude e não como defeito. Recordei-me, de repente, de um e aqui o deixo, na linha debaixo.
Certo milionário francês que comprou um yatch em Inglaterra, requisitando a respectiva tripulação, viu-se obrigado a juntar à sua equipagem de trinta e cinco homens dois cozinheiros. E justificava-se: «Se eu tiver só um cozinheiro francês, os meus marinheiros ingleses não comem. Se tiver só um cozinheiro inglês, morro…».
A resposta não tardou em forma de coluna num jornal: «Nós, os ingleses, achamos repulsiva a ingestão de animais que, em vez de se deixarem caçar, se deixam simplesmente apanhar, não revelando qualquer respeito pela sua própria sobrevivência. Ora, isto exclui liminarmente qualquer possibilidade remota de um verdadeiro súbdito de Sua Majestade deglutir seres como ‘escargots’ ou ‘grenouilles’ que deveriam ter como finalidade habitar charnecas e pântanos e não contribuir para o requinte da cozinha francesa».
Já Rudi tornou-se francês. Mudou-se para Paris, jogou no Racing, foi à guerra como o Marlbrough da cançoneta, atribuíram-lhe a nacionalidade por serviços prestados e ainda teve tempo de ser internacional pela França. Em Inglaterra foi desprezado. Como todos os outros."
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