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quarta-feira, 18 de julho de 2018

Sempre o melhor de sempre – parte V

"Esta é a 5.ª e última semana em que me debruço sobre os Mundiais de Futebol. Tenho escrito como quem faz radiografias ao torax do planeta, não para explicar uma doença, mas para explicar uma saúde. Estes campeonatos arrastam o mundo para períodos excepcionalmente saudáveis; nem ocidentalizado, nem orientalizado, trata-se dum sadio mundo futebolizado.

Talvez pouca gente compre esta ideia de que a vida é melhor durante a competição rainha da FIFA. A minha teoria do “ar mais respirável de 4 em 4 anos” é mesmo uma subjectividade difícil de encarar quando, por exemplo, se tem de engolir o monóxido de carbono da Av. da Liberdade em dia de jogo. Admito ainda que a tese de que se vive um “clima de armistício” durante o Mundial enfrenta novas dificuldades, e esta recente final entre a França e a Croácia bem o provou – nas redes sociais foi a politização do costume (às vezes boa, mas geralmente perversa); depois a intervenção do VAR parece ter desumanizado a justiça e a injustiça.
Não é fácil falar de “armistício” quando a tecnologia nos oferece uma infalibilidade opressiva – purga o erro como uma bactéria nos purga as entranhas, e passamos da justiça salomónica para a justiça salmonélica. Não alinho em revisionismos históricos, nem em negacionismos. Alguém que desminta a existência do Holocausto, por exemplo, não é bem-vinda a minha casa. Mas nisto do futebol encontro um regime de excepção. Sou um revisionista dos Mundiais, e digo que foram sempre os melhores independentemente de o terem sido ou não. Mesmo admitindo que nem todas as edições da competição contribuíram para uma existência melhor, forço-me a dizer que sim, que contribuíram. Não se trata tanto de analisar o passado, mas de disciplinar o futuro.
Mesmo que um honroso embate entre selecções seja insuficiente para tornar o mundo melhor, porque não haveríamos nós (o mundo) de aproveitar esse pretexto para nos melhorarmos? É por isso que o meu revisionismo não se resume à vontade de ver os Campeonatos com bons olhos; é mais a vontade de aguardá-los com bons corações. Se os Mundiais fossem o meu Museu dos Descobrimentos, não havia cá colonialismos sangrentos, nem culpas esclavagistas – retinha o bem para melhor fazer (mas, repito para que não haja equívocos, tenho no futebol um regime de excepção).
E assim de rajada, vou concluir o meu périplo pelos Campeonatos do Mundo dos últimos 30 e tal anos. 2006, 2010 e 2014 são, respectivamente, a melhor edição de sempre, a melhor edição de sempre e a melhor edição de sempre. Em cada um destes Verões, o ar estava mais respirável e vivia-se um clima de armistício.
Na Copa de 2006, o melhor futebolista duma geração acabou a carreira enquanto enterrava violentamente a careca no peito do melhor sarrafeiro duma geração – o primeiro foi expulso, o segundo foi campeão do mundo. Cristiano Ronaldo perdeu a corrida para Melhor Jovem Jogador da competição por ser considerado “batoteiro”. A partida entre Portugal e a Holanda bateu o record de cartões vermelhos num só jogo de Mundial, e igualou o record de cartões amarelos. O jogo que opôs Suíça e Ucrânia pode muito bem ter contido os 120 e tal minutos mais aborrecidos do séc. XXI. Então estamos a falar do pior Campeonato do Mundo de sempre, certo? Errado.
A Copa de 2006, decorrida na Alemanha, foi mesmo a melhor de sempre. Para já, tornou-se palco de justiça poética, e justiça com poesia de Pavese, Dante, Boccaccio, Petrarca ou Ariosto (pseudónimos de Buffon, Cannavaro, Gattuso, Zambrotta ou Pirlo). Mesmo que o futebol italiano não fosse o melhor (e mau não era de certeza - basta ver os nomes que acabei de recordar), a Squadra Azzurra merecia esta título nem que fosse pelos infortúnios e injustiças passadas: a tragédia de Roberto Baggio em 94 e a roubalheira frente à República da Coreia em 2002. O Campeonato do Mundo da Alemanha é recordado também pela mescla de gerações dentro das grandes potências - as que desvaneciam e as que se estabeleciam - apurando assim os paradigmas futebolísticos dos últimos 10 anos. Foi ainda um dos mundiais mais competitivos de que tenho memória, no sentido em que eram muitos, e muito fortes, os candidatos ao título (e talvez tenha esta noção vincada porque Portugal tinha um pé neste lote).
Já a edição do Campeonato de 2010 decorreu de forma diferente, embora neste ponto convergisse com as anteriores: será recordada como a melhor de sempre. E, acreditem, para um evento infestado de vuvuzelas ser o melhor de sempre é preciso ter muito a seu favor. Para começar, estamos a falar do primeiro mundial realizado no Continente Africano, mais propriamente na África do Sul. A localização do evento não é apenas o primeiro motivo que invoco, é mesmo o mote fulcral para termos uma boa memória do campeonato. É que, apesar dos grandes jogos e grandes jogadores que desfilaram nos relvados, e apesar de Maradona ter regressado a um Mundial, desta feita no comando técnico da Argentina (numa versão irrequieta de treinador, a lembrar um Paco Fortes da alta roda), apesar de todos estes factos, é no próprio país de Mandela que está a grande virtude da competição.
O que se passou na África do Sul em 2010 corrobora inteiramente os penosos, mas benfazejos, primeiros parágrafos desta crónica. O país com uma das mais aterradoras taxas de criminalidade, com cidades onde a violência extrema impera, foi o mesmo país que quis superar-se por intermédio do futebol. Respirou-se o ar melhor, viveu-se o armistício, e pouca importa se foi o espírito do Mundial quem levou a paz, ou se foi a paz quem se chegou à frente para acolhê-lo. Saudemos tal ideia: os mundiais favorecem o melhor do planeta, e o melhor do planeta favorece os mundiais. Esta cultura do “ser-se melhor” deu inolvidáveis frutos na África do Sul, e ainda melhores sementes plantou.
Vou fermentar por 4 anos a minha vontade de falar acerca do Rússia 2018, acerca de Modric, Coutinho e Hazard. Assim sendo, a última abordagem desta série recairá sobre o Campeonato do Mundo do Brasil em 2014 - aquele que, como devem suspeitar, foi o melhor de sempre. Tratou-se tanto duma competição quanto dum axioma, uma vez que valeu sempre o “11 contra 11 e no fim ganha a Alemanha”.
Há vários motivos celebráveis sobre este Brasil 2014, mas estou (com alguma mesquinhez, admito) tão apegado a só um deles que vou despromover os restantes para depois. Ora, toda a gente gosta de ver um charlatão desmascarado, e para mim foi isso que aconteceu no jogo em que o Brasil concedeu 7 golos à Alemanha. Lição dura para a canarinha, mas é o preço a pagar quando nos deixamos deslumbrar pelo carisma casmurro de Scolari. Felizmente, a tareia revelou-se pedagógica, e neste Mundial de 2018 os brasileiros já levaram para a competição um treinador a sério.
Não tenho embirração desmesurada com o Felipão. Nem tampouco é pessoal. O embuste Scolari até me parece ser mais fruto do desleixo e da credulidade em torno dele que das fracas qualidades técnicas do próprio. É que, por exemplo, enquanto cá andávamos a acenar bandeiras e a endeusar o sargentão por nos ter conduzido a uma final, quase ignorámos que a selecção derrotada tinha Figo, Ronaldo, Rui Costa, Deco e Ricardo Carvalho. Perdemos. Em casa. Contra a Grécia. Pode ter sido só um dia mau, mas foi mau o suficiente para justificar desconfiança eterna, e para não nos hipnotizarmos pelo encanto supersticioso e tacanho do Gene Hackman brasileiro.
Scolari tem, obviamente, os seus méritos. O mérito de transformar selecções em plantéis herméticos, vedando as equipas a experimentações desnecessárias (mas também vendando as equipas a craques com quem foi embirrando). O mérito de tornar o nosso país numa claque (ou melhor, numa torcida). O mérito de, nem ele, ter conseguido estragar a canarinha de 2002 – Ronaldo Nazário, Ronaldinho Gaúcho, Roberto Carlos ou Rivaldo transformaram o Brasil numa equipa de rainhas, e não era preciso ser-se um Garry Kasparov para movimentar razoavelmente tais peças.
Há mais méritos a reconhecer a Scolari, e mais justiças a serem-lhe feitas. Ainda assim, é impossível conter certa indignação quando um treinador destes – mediano, tecnicamente atamancado - granjeia estatuto e currículo que ultrapassam as suas reais capacidades. Já que passámos mais de uma década a bater continência ao sargentão, e a ser encandeados por aparições da Nossa Senhora do Carvaggio, estávamos mesmo a precisar de 7 golos alemães para abrir a pestana. É que tínhamos ignorado outros sinais: Felipão foi campeão do mundo no mesmo ano em que morreu Michael Young, o inventor do termo “meritocracia”.
Talvez esteja a acabar esta série com uma nota mesquinha. Que seja. O ar anda menos respirável e enfraqueceu-se o clima de armistício. O Mundial acabou há uns dias."

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