"- Nasceu em Cedofeita, no Porto, os seus pais o que que faziam?
- O meu pai era metalúrgico e a minha mãe era dona de casa e lavava roupa para os hospitais. Não havia máquinas de lavar naquela altura, tinha que ser à mão, tínhamos dois tanques enormes em casa e ela é que fazia aquilo tudo.
- Irmãos?
- Um, mais velho, tem agora 72 anos.
- Como foi a infância?
- É muito simples, a minha vida começou descalço. Comecei a jogar futebol descalço, porque os meus pais não tinham dinheiro, ganhavam o salário mínimo, e eles apostavam era nos estudos. Gostavam que eu estudasse, mas nunca faltou nada para comer. Tínhamos um bocado de terreno, por isso havia batatas, cenouras, nunca faltou para comer. Agora para jogar com botas ou com sapatilhas isso era escusado, por isso aprendi a jogar descalço. Não era só eu, eram também alguns amigos da minha turma que moravam em Ramalde, mesmo em frente ao campo do Ramaldense.
- Era aí que jogava?
- Não. É curioso que naquela altura o Ramaldense tinha um campo pelado mas não deixava ninguém jogar. O campo estava fechado. Se saltávamos o muro para ir jogar, vinha o guarda e punha-nos de lá para fora.
- Saltou muitas vezes esse muro?
- Muitas vezes. Depois iniciei-me equipado nuns torneios que se faziam no Porto, no Salgueiros, no Boavista e no Coimbrões. A minha primeira equipa, de futebol de 5 (jogava-se num quarto de campo), era o Arsenal de João de Deus. Fomos jogar a um torneio no Salgueiros.
- Tinha quantos anos?
- Tinha 11 anos.
- O seu pai gostava de futebol?
- O meu pai era do Boavista. Ele só foi ver-me jogar quando eu já estava no Benfica. Ele e a minha mãe. O meu pai gostava de futebol mas não era um apaixonado. Ele jogava andebol de 11, no Ramaldense. Havia andebol de 11 naquela altura. A minha mãe era portista e o meu irmão não era muito aficionado.
- O seu irmão também jogava futebol?
- Ele jogava mal, eu nunca o escolhia para a minha equipa (risos). Nesse período em que tinha 11 anos, joguei com o Arsenal do Bessa e joguei pelo Sport Lordelo e Benfica num torneio em Coimbrões.
- O seu coração já sofria pelo Benfica?
- Não, mas também não era FC Porto. Como o meu pai era do Boavista eu também era mais boavisteiro naquela altura. Ia ver os jogos ao Boavista, tenho até uma história curiosa.
- Conte.
- Eu era muito miúdo, tinha uns 7/8 anos e fui ver um Boavista-Salgueiros que era um derbi do Porto. O campo do Bessa estava cheio, fui com o meu pai e como eu era muito miúdo, ele passou-me por cima das pessoas e fiquei dentro do campo, sentado. O polícia deixou-me ficar ali quase encostado ao poste. E há um livre marcado pelo Franco, que era o defesa direito do Boavista, quase do meio campo. O guarda redes do Salgueiros era o Adelino, o Franco chuta para a baliza, do meio campo, o sol está de frente e o Adelino deu uma frangalhada, mas uma frangalhada do arco da velha! Eu estava ao pé do poste e o Adelino veio para junto do poste e começou a chorar e eu fui ter com ele para o reconfortar (risos). E fiquei tão triste que depois também fiquei a gostar do Salgueiros (risos). Foi uma coisa que marcou-me para a vida. Desde miúdo que para mim o futebol era tudo.
- Essa paixão vem de onde?
- Não sei. Eu era um desportista por natureza. Na altura não havia internet e estas coisas, e nós fazíamos corridas de bicicleta sem bicicleta, só com o guiador. Fazíamos os guiadores em arame, punhamos as fitas e depois íamos a correr (risos) e fazíamos grandes corridas. Tínhamos de nos entreter. Jogava hóquei em campo porque o Ramaldense era campeão de hóquei em campo. Jogava futebol e depois fui jogar para os juvenis do Ramaldense. E foi aí que comecei a despontar e a chamar a atenção para, o que hoje se diz “scouting” e que naquela época eram os olheiros.
- Com que idade é que vai para o Ramaldense?
- Com 14, fiquei lá duas épocas como juvenil. Depois passo ali uma fase indecisa porque andava a estudar também. Estudava de noite, porque aos 13 anos fui trabalhar.
- Para onde?
- Fui para uma fábrica que era a Sifal.
- Porque foi trabalhar?
- Eu andava a tirar o curso de laboratórios químicos. Fiz o primeiro ciclo no Gomes Teixeira e depois fui para o Infante Dom Henrique. Aí estive de dia no primeiro ano, depois passei a estudar à noite porque não tinha dinheiro para ir ao cinema e pedi aos meus pais para ir trabalhar. Entrava às cinco da manhã.
- O que fazia?
- Era uma fábrica de tinturaria, eu entrava às cinco para fazer os ensaios das cores com que iamos tingir os fios. Fazia pequenos ensaios para quando a fábrica começava a trabalhar, às sete da manhã, fazer as toneladas de fio que se faziam por dia. Depois saía às quatro e meia e ia a pé para a escola Infante Dom Henrique. Todos os dias. Saía duas vezes por semana às 23h30 e as outras vezes às 22h30.
- E conseguia treinar e jogar no meio disso tudo?
- Treinava muito pouco, mas jogava porque tinha habilidade. Foi um período difícil porque a minha mãe gostava que eu tirasse o curso.
- Gostava de estudar e da escola?
- Gostava. Até porque jogava na escola com uma carica, com um pipo, um batoque dos pipos, a nossa bola era essa. Gostava porque adorava futebol e se não tirasse boas notas a minha mãe não me deixava jogar.
- Só trabalhou nessa fábrica?
- Não. Estive nessa fábrica durante um período e depois arranjei outra mesmo ao pé de casa, que era a fábrica de curtumes do Bessa onde eu entrava às oito e meia e saía às cinco e trinta. Aí já tinha mais tempo para a escola.
- Isso com que idade?
- Com 15/16 anos. Aos 16 anos vim para o Benfica, em 66.
- Já lá vamos. No Ramaldense quando começa jogar é logo defesa central ou vai variando?
- Eu entrei como avançado.
- E marcava muitos golos?
- Marcava alguns golos porque o Ramaldense era uma pequena equipa, não marcava muitos (risos). Mas fizemos um jogo contra o Porto B, em Ramal, onde eu marquei dois golos, depois vim para a defesa e ganhamos 2-1 . O António Pedro (o meu primeiro treinador foi o José Ciplas, no Arsenal João de Deus), que era o meu treinador do Ramaldense, punha-me à defesa e depois ao ataque, defendia e atacava, vinha à frente e ia atrás.
- Era pau para toda a obra.
- Era (risos) e depois, mais tarde, no Benfica, o Hagan também me pôs nessa situação.
- Antes disso, como é que vai parar ao Benfica?
- Através do Custódio Antunes, uma pessoa que tinha uma fábrica de conserva em Matosinhos, e que era olheiro do Benfica. Naquela altura fui treinar ao Foz e ao Leixões. O Óscar Marques que era o treinador queria que eu fosse para o Leixões e o Artur Baieta também queria que eu fosse para o FC Porto. A história é gira, porque o meu pai perguntou “então e algum dinheirito?”. A minha que era do FC Porto e gostava que eu lá ficasse. O Baieta disse:”Tiramos lá uma fotografia equipado à FC Porto para dar à sua mãe”. E o meu pai: “Então e a gente vai comer da fotografia?” (risos). Entretanto aparece o Custódio Antunes com o Benfica.
- O Benfica ofereceu alguma coisa?
- Sim. Aí foram 40 contos para o Ramaldense e 20 contos para mim, para o meu pai.
- O que é que fez com esse dinheiro?
- Dei ao meu pai, comprei uma casa. Comprei um apartamento para eles. Nós viviamos numa zona em frente ao campo do Ramaldense, que agora são só prédios. Mas curiosamente a casa que era nossa ainda existe. Fui ao Porto com a minha mulher há um mês e fomos lá ver. Estão quatro casas, que são pobres, no meio dos prédios. Numa delas foi onde eu vivi.
- Estava a dizer que comprou o apartamento para o seus pais...
- Comprei um apartamento na Rua da Boavista. Tinha 16 anos. Foi o primeiro dinheiro que ganhei. Estamos a falar de 1966.
- Como é que foi vir para Lisboa, sair debaixo das saias da mãe?
- Foi terrível. Eu era para vir em Junho mas a minha mãe não me deixava vir. Já tinha tudo assinado e a minha mãe não deixava. Precisava da autorização dos meus pais. Cada dia que passava era um sofrimento enorme. Só comecei a jogar no Benfica no 4º jogo da época do campeonato.
- Como é que conseguiu convencer a sua mãe?
- Um dia cheguei e disse ao meus pais: “Não quero mal entendidos. Ou eu vou amanhã ou nunca mais vou e vocês talvez se venham a arrepender e depois acabou, não quero mais futebol, não se fala mais nisso, acabou”. Fui para o quarto, o quarto dos meus pais era no outro lado, em frente, e de repente começo a ouvir a minha mãe e o meu pai a falar “Vai”, “Não vai”, “Temos que o deixar ir”, “Mas é tão longe” dizia a minha mãe...E de repente, a minha mãe entra no meu quarto, eu estou às escuras e faço que estou a dormir, e começo a ver a minha mãe a tirar a minha roupa para fazer a mala (risos).
- Acordou logo?!
- Nada, não disse nada, continuei a fingir. De manhã a minha mãe pôs-me no comboio, em Campanhã, a chorar. E cada vez que eu vinha ao Porto, ela chorava também, mesmo depois de já estar na primeira equipa do Benfica, continuava a chorar.
- Quando chegou a Lisboa foi para onde?
- Fui para a pensão “Pérola da Madeira”, no prédio onde vivia o ex-ministro Sócrates, entre a Braancamp e a Rua Castilho. A “Pérola da Madeira” tinha uma parte no 1º andar e outra no 4º andar. E estávamos lá sete jogadores do Benfica.
- Ainda se lembra quem eram?
- Lembro-me perfeitamente. Era o Elias, o Xarouco, o Teixeira, o Toni (não este Toni que todos conhecem, outro) e o Janota, todos juniores.
- Chorou com saudades dos pais?
- Nada, nada, adaptei-me e pedi a mudança da minha escola, da Infante Dom Henrique, para a escola Fonseca Benevides, que era em Santos, continuei a estudar, mas não consegui acabar o curso, era o 6º ano, o último do curso, mas depois ficou impossível porque tinha que treinar muito.
- Qual foi o impacto quando entrou na Luz?
- O primeiro impacto é antes disso, quando venho no comboio.
- Como assim?
- Senti que o meu sonho estava a começar. Estava a começar aquilo que eu mais ansiava, aquilo que eu mais gostava. Quando era miúdo eu percorria o meu quarto todo de cabeça a jogar contra a parede. Eu pegava na bola e percorria tudo, tum, tum, tum, aquilo tudo à volta. Depois punha-me de joelhos na cama e também jogava de cabeça. Eu só podia ter sido mesmo jogador, não podia ter sido outra coisa, vivia para aquilo. Ia ver os jogos do Ramaldense, conhecia os jogadores todos. Era uma paixão, ia ver como é que eles jogavam como não jogavam.
- Quem era a sua referência nessa altura?
- Era o Germano, um jogador que jogou no Boavista, era de cor e era de uma elegância a jogar... Uma coisa extraordinária. Deliciava-me com ele, tinha uma elegância, uma técnica. Ambicionava também jogar assim.
- Faz dois anos de júnior no Benfica.
- Sim, com o Ângelo que era o treinador, estreei-me contra o Oriental e ganhamos 4-1.
- Aí já como defesa central?
- Sim, como defesa central. Nesse ano ganhamos o Campeonato Regional, mas não houve final do Campeonato Nacional. Já não me lembro porque é que não houve essa final. E depois no ano seguinte ganhamos a final do campeonato nacional contra a Académica em Leiria. Ganhamos 1-0.
- Como é que se dá a passagem para a equipa principal?
- Havia outro Humberto (Fernandes) que jogava no Benfica e que também era defesa central. E o azar de um foi, foi a sorte do outro. Ele estava a negociar o contrato e nós fazemos uma digressão para a América do Sul. Íamos para o Brasil, para a Argentina, para a Venezuela e o Humberto Fernandes não foi. O Otto Glória escolheu-me a mim para ir e no primeiro jogo, em Belém do Pará, mete-me a jogar e nunca mais saí. Entrei nesse jogo, tive a minha oportunidade, sorte também porque se o Humberto Fernandes vai, já eu não ia. Talvez mais tarde poderia entrar na equipa, estou convencido que entrava, mas naquela altura era o único miúdo. Foi um momento de sorte, que também é preciso ter, é preciso procurá-lo. Na Argentina, o torneio era com o Boca Júnior, o Santos e o Nacional do Montevideu. O meu terceiro jogo foi contra o Péle. Tenho a camisola dele em casa, trocamos a camisola. A camisola número 10, do Santos, que está guardada com muito respeito.
- Faz esse jogo e a seguir o Otto Glória...
- O Otto Glória vai-se embora quando vamos jogar para o Jamor, porque tínhamos o campo do Estádio da Luz interdito.
- Porquê?
- Num jogo com o Belenenses tinham expulso o Jaime Graça, depois quando foi a expulsão do Malta da Silva as pessoas entraram dentro do campo, na altura não havia vedação, e o árbitro teve de fugir. Foi uma cena terrível. Foi o Toni e o Estevão que pegaram nos árbitros para os ajudar a ir até ao balneário, porque aquilo estava quente.
- É na sequência desse episódio que o campo fica interdito.
- Por seis jogos. Começamos a jogar no Jamor mas a equipa não estava bem e passou a ser o Cabrita e o José Augusto a tomar conta do Benfica até vir o Hagan.
- E é o Hagan que o põe a avançado outra vez.
- O Hagan punha-me a avançado quando estávamos a perder porque eu marcava golos, marquei muitos golos. Uma vez estávamos a perder em Hong Kong, a equipa avançada era o José Augusto, o Eusébio e o Simões e estávamos a ganhar 2-0, ao intervalo. Ele resolve trocar a linha avançada e põe-me a mim, ao Diamantino e ao Nelinho. Marquei três golos. Eu jogava bem de cabeça. Cá está, o tal treino que fazia no quarto às voltas, deu frutos, eu marcava golos de cabeça.
- Quais eram as suas mais valias?
- Era muito perspicaz. Quando avançava, avançava muito nos espaços. Quase sempre a bola vinha e eu aparecia para finalizar.
- Portanto estava confortável nessa posição.
- Sim, estava muito confortável. Mas tinha cada vez mais de valorizar essa posição, porque no Benfica há muitos jogadores, há muita gente atrás a bater nos calcanhares e se nós não trabalharmos…Por isso é que muitas vezes ficava depois dos treinos com o Carlos Manuel, o Chalana, o Toni, a fazer cruzamentos. O Bento na baliza e eu tumba, tumba. Tínhamos livres ensaiados, treinávamos especificamente os livres. Muitas vezes eu sabia que o Carlos Manuel punha a bola, dava um passo atrás e depois marcava logo e eu apanhava um metro à frente do defesa e a maior parte das vezes eras fatal. Era muito treino, com chuva ou com sol. Por isso é que a minha cervical de vez em quando dá sinal (risos).
- Tenho a referência de um jogo do Benfica em 72/ 73, em que o Humberto Coelho faz o golo da vitória numa reviravolta do jogo, que começou com o Victor Baptista e o Jaime Graça. O que é que aconteceu?
- Estávamos a perder 2-0 com o FC Porto e faltavam 15 minutos. Jaime Graça marca, o Victor Baptista também e depois já mesmo nos descontos, no cruzamento de um canto do nosso lado direito, vou lá acima e dou de cabeça para o outro lado. 3-2. Tenho 5 fotografias lá em casa tiradas pelo Nuno Ferrari em que se vê a sequência. É a bola a vir, eu no ar, eu a elevar-me ainda mais, eu a marcar e depois toda a malta a abraçar-me. Mas tenho uma nota curiosa com os meus pais, que iam ver todos os jogos do norte, os do sul só quando eram jogos grandes. No final do jogo, tenho a minha mãe muito chateada comigo. Perguntei-lhe porque é que ela estava chateada comigo, e ela: “Tu não me falaste”. “Não lhe falei?”. “Sim, eu estava ali junto do relvado e tu vieste roubar uma bola e eu chamei-te “ó Berto, ó Berto, ó Berto. E tu não me ligaste nenhuma” (risos). Eu não via nada, nem dei por ela chamar por mim e ficou muito chateada por eu não ter ido falar com ela. Marquei o golo e ainda levei nas orelhas.
- Falou do Victor Baptista, ele era aquela “personagem” de que tanto se fala?
- O Victor Baptista podia ter sido um dos grandes jogadores de futebol português. Tinha qualidades para isso, tinha potencial para isso, mas ele tinha um ego maior do que tudo. Era muito complicado. Esse ego que muitas pessoas têm, ele podia ter utilizado bem mas utilizou mal e por isso perdeu. Para se ser um bom jogador, para se ter uma boa carreira, para ser de facto um elemento que marque, é preciso muito trabalho e fora desse trabalho é preciso também ter um comportamento que nos permita quando vamos para o trabalho estar sempre a 100%. Eu via jogadores que tinham potencial, tinham capacidades muito maiores do que eu, só que não trabalharam tanto como eu, não se dedicaram tanto como eu e como outros colegas meus. Não éramos nenhuns meninos do coro, mas na altura certa, era a sério. As pessoas que vêm para o futebol são de um meio pobre e geralmente essas pessoas querem vingar, querem chegar lá acima. O Victor Baptista chegou lá acima e depois parou. E quando se para depois é muito difícil recuperar.
- Quando é que casa?
- Conheci a minha mulher, Laurence, em 1975, em Paris, quando fui para o Paris Saint Germain (PSG). Foi a primeira pessoa a fazer-me uma entrevista. E eu disse-lhe: “Tu est trés jolie” (risos). Foram as minhas primeiras palavras do meu francês arcaico da escola indústrial. “Tu est trés jolie” e ela ainda hoje cá está, já lá vão muitos anos (risos).
- Antes de ir para o PSG quais são as grandes conquistas no Benfica?
- Uma das grandes recordações que tenho é o meu primeiro campeonato nacional, em 1968. Logo no primeiro ano senior, fomos campeões em Tomar, ganhamos 4-1 no último jogo.
- Qual é a sensação?
- É uma sensação extraordinária. Para já porque a romaria foi de tal maneira grande... De facto o Benfica é uma equipa que leva muita gente, o Sporting e o FC Porto também levam. Mas em Tomar nunca tinha visto uma coisa assim. Era uma festa extraordinária. Os meus pais também estavam lá. Tudo isto marcou porque quando se vem para um grande como o Benfica, é para ganhar. Já vinha habituado dos juniores. Já aí o nosso espírito era esse, ganhar. E chegar à primeira equipa, em que todos eles tinham sido campeões europeus, tinham sido jogadores que vinham do campeonato do mundo de 66, eram os meus ídolos, e eu entrar, ser titular indiscutível naquela época, chegar ao fim e ganhar, era de facto um prémio.
- É uma sensação irrepetível?
- É, o primeiro é irrepetível. Depois ganhei oito campeonatos. Claro está que é sempre um objectivo, mas a sensação já é diferente. Aquela é uma sensação de euforia que até mexe cá dentro, depois os outros que começam a vir, começa a ser o objectivo.
- Faz a tropa?
- Três anos. Entrei em 13 de Julho de 1971 e saí em 12 de Julho de 1974.
- Continuou a jogar?
- Joguei e estive sempre a titular. Estive em Leiria, estive no Porto, em Arca de Água, em transmissões, e treinava no Boavista. Fiz a recruta em Leiria, treinava lá e ao fim de semana vinha para jogar. Depois fui para o Porto, e no Porto tinha que fazer um teste todas as sextas- feira e tinha que ter mais de que 90% para poder sair no fim de semana.
- Que tipo de teste?
- De morse, código de morse. Tinha que ter 90% para vir, treinava no Boavista com o António Teixeira e depois com o Mirinho. Treinava à noite. Depois o Hagan dava-me uma tareia no sábado para ver se eu estava em condições. Mas uma tareia! Era um treino individual para ver se eu estava apto. Ele dizia: “O senhor está bom, o senhor está bom” (risos). Joguei sempre, e estive três meses no Porto. Depois vim para Lisboa e fui para a Trafaria. Aí já tinha um comandante que era mais maleável e vinha treinar, fazia os estágios. Depois fui para o quartel general e ai também era fácil, mas isso já na parte final. Lembro-me que fizemos um torneio em Espanha, em Huelva, que ganhamos, e ainda fui fazer o dia de marcha da Marinha Grande a Leiria.“Eu dispenso-te mas tens que estar cá no dia da marcha.”, disse-me o comandante. O dia da marcha era a seguir à final do torneio. Ganhamos o torneio, meti-me num táxi e fomos direitos a Badajoz, onde estava um carro do Benfica para me levar a Leiria. Cheguei lá eram umas seis e picos da manhã, levaram-me de jipe para o campo e fiz o que tinha prometido, a caminhada até Leiria.
- Nunca chegou a ser chamado para ir para guerra colonial?
- Não, o meu pelotão nunca foi para a guerra.
- Como é que viveu a revolução de Abril?
- Eu devia estar de serviço no quartel-general, deveria ter ouvido a “Grândola Vila Morena”, mas tinha pago a um indivíduo para lá ir, porque isso se podia fazer. De manhã acordo às cinco e tal e ouço “Senhores militares apresentem-se no quartel” e eu vou. Na altura tinha um MGB e vou e de repente chego ao quartel-general e estão os militares todos no muro a gritar-me: “Eh pá não entres, se entras não sais!”. Ai é?! Voltei para casa (risos) e passada uma semana, estava a treinar e aparece um jipe da polícia militar para me ir buscar, porque eu era desertor (risos). Mas depois lá se resolveu a questão.
- Porque é que sai naquela altura para o PSG se era um jogador essencial para o Benfica?
- Saio porque o Benfica estava com dificuldades financeiras e era um bom contrato para o Benfica.
- E para si também.
- Para mim também. O Borges Coutinho que era o presidente veio falar comigo “Eh pá faz-nos jeito o dinheiro, gosto muito que estejas cá mas…”.
- Lembra-se qual foi o valor que pagaram por si?
- Não me lembro, aliás não sei, nunca soube.
- Foi contrariado ou queria ir?
- Eu queria ir, mas não era o clube para o qual devia ter ido. Tinha o Atlético de Madrid também interessado. O Fernando Martins tinha-me falado no Atlético de Madrid. O PSG era um clube que tinha cinco anos de existência. No Benfica estávamos habituados a um certo tratamento, e eu no PSG levava a roupa para casa para lavar, levava as botas para engraxar, eu é que tratava de tudo. Ainda não era um clube organizado, estava em vias de se organizar, e penso que também não era um clube de top na altura, estava no meio da tabela.
- Mas porque é que vai para o PSG e não vai para o Atlético de Madrid?
- Porque o PSG negociou logo com o Benfica e acabou por fechar com o Benfica.
- Voltando à sua mulher, é em Paris que a conhece.
- Sim, ela era freelancer da RTL, fez me a primeira entrevista quando cheguei.
- Foi amor à primeira vista?
- Foi.
Depois de dizer “Tu est trés jolie” e de dar-lhe a entrevista, como é que foi?
Combinámos jantar e depois teve seguimento. Namoramos mas a coisa ainda não estava bem assente, porque depois fui para Las Vegas jogar no Las Vegas Quick Silvers. O Eusébio estava lá e convidou-me. Fui eu, o Toni, depois foi o Abel, quase a trupe toda.
- Antes de irmos aos EUA, gostou da experiência em Paris?
- Gostei ao princípio. Fiquei a viver sozinho, primeiro num hotel extraordinário que ficava perto do estádio, do centro de treino e depois arranjei um apartamento.
- Adaptou-se bem à vida em Paris?
- Adaptei-me. Também tive sorte porque havia muitos portugueses que se tinham ido embora com a revolução e que eu conhecia, inclusive um compadre meu que é o padrinho da minha filha e eu sou o padrinho de casamento dele, que era o director comercial da TAP, hoje é o presidente da Atlantic Airways.
- E em relação ao clube e à forma de jogar?
- Era diferente porque o clube era muito mais pequeno, a equipa era mais fraca, logicamente. Mas mesmo assim no primeiro ano tivemos um bom ano e o treinador era o Just Fontaine, que foi um internacional francês, melhor marcador do Campeonato do Mundo, na Suécia. Depois veio um jugoslavo que tinha jogado contra mim, o Vasovic, quando jogamos com o Ajax e fomos eliminados. Quando ele começou entramos em atrito, porque ele queria que eu jogasse no meio campo e eu não queria. Depois fui operado ao joelho, menisco e ligamento, fiz duas operações.
- Em Paris ou cá?
- Fiz em Paris, em Lyon. Depois era para ir para o Internacional de Portalegre, ainda lá cheguei a ir, eles tinham tudo acertado com o PSG, para substituir o Figueiroa que era o defesa central chileno, só que não chegamos a acordo e vim embora. Houve logo um litígio com o clube e assinei outra vez pelo Benfica. Mas como havia um período de 7/8 meses de intervalo aproveitei o convite do Eusébio e fui jogar em Las Vegas nesse período.
- O futebol nos EUA não tem nada a ver com o futebol europeu.
- Não tinha, agora já tem. Mas sim naquela altura parecia a China hoje, convidavam jogadores para lá ir mas não havia base. Aquilo em Las Vegas, era sempre em festa, era uma coisa extraordinária (risos).
- Porquê?
- Porque éramos convidados para tudo o que era shows, o nosso patrão era dono do Caesars Palace. Tudo o que era combate de boxe, Cassius Clay, Frazier, Frank Sinatra, fui ver tudo. E depois íamos aos cocktails, aquilo era sempre em festa.
- A namorada aí... houve uma interrupção?
- Não estava, ficou em perigo, mas depois tudo se recompôs (risos).
- Gostou dessa experiência nos EUA.
- Gostei. No Las Vegas Quick Silvers joguei com o Eusébio que era um craque extraordinário lá. Esta história também é gira. Quando cheguei a Las Vegas, havia a final do torneio de ténis de Las Vegas entre o Jimmy Connors e o Ilie Nastase e nós jogávamos com o Cosmos, de Nova Iorque, onde jogava o Pelé e o Chinaglia e então fizemos uma conferência de imprensa conjunta, os seis. O Caesars Palace estava cheio de jornalistas. Nós jogávamos no domingo e no sábado andava um avião com o meu nome no ar, estava a haver a final de ténis e o avião com o meu nome a passar. E no domingo, quando entrei em campo, entrei num tanque de guerra, com as majoretes, tchu, tchu, tchu and now ladies and gentlemen, number 29, from Portugal… (risos).
- O Eusébio era uma pessoa divertida?
- O Eusébio era uma figura. Ele tinha jogado no México, a maior parte das pessoas adoravam-no. Os coupés dos casinos, os empregados dos restaurantes, eram quase todos mexicanos e o Eusébio era um deus para eles, um deus. Em Las Vegas quase ninguém ia ao futebol. Só iam os mexicanos e os jugoslavos. O Eusébio enchia os bolsos de bilhetes, chegava a qualquer lado e distribuía bilhetes pela malta toda, era muito giro.
- Regressa ao Benfica em 1977/78 e fica até 83, ano da final da Taça UEFA.
- Sim, com o Erickson contra o Anderlecht. Marcamos primeiro, o Shéu com um passe meu. Amparo a bola com o peito para ele e ele “tau” finalizou e depois o Lozano empata logo de seguida.
- Foi uma frustração.
- Foi uma frustração, talvez uma das maiores porque penso que tínhamos equipa para ganhar. Lembro-me do Estádio da Luz completamente cheio, a loucura que foi quando marcamos o golo. Tinhamos perdido lá 1-0. Penso que perdemos a final lá. Tivemos oportunidades para poder empatar o jogo e não o fizemos e cá tiveram mais talento que nós. Mas foi uma grande final.
- Como e quando reata com a sua mulher Laurence?
- Ela depois veio para cá, vem ter comigo. Quando eu voltei, um dia aparece-me aqui, sem eu saber. Ela também não desistiu (risos).
- Quando é que casam?
- Vivemos ainda muito tempo juntos. A minha filha mas velha nasce, ainda não éramos casados. Casamos em 1986. A minha filha mais velha nasce em 80 e a segunda em 86. Casamos no dia 30 de Outubro, já tinha nascido a segunda.
- Tem mais filhos?
- Não. Só as duas. Uma é advogada e está no Brasil. A outra está na Suíça e trabalha em relojoaria, mas vem agora para cá. Já está há muitos anos fora, formou-se nos EUA em Comunicação trabalhou em Miami seis anos, em Madrid e depois foi para a Suíça.
- Já é avô?
- Sou avô de um neto, o Frederico, da mais nova. Vai fazer dois anos no dia 18 de Janeiro. Juntamo-nos todos cá agora no natal.
- Quais são os jogos, os momentos que guarda com mais saudosismo ou mais carinho?
O terceiro golo que eu marco ao FC Porto é um momento extraordinário. São momentos em que pensamos que já não conseguimos e depois… O princípio com o Otto Glória foi de facto fundamental e a final do Campeonato da Europa, com o Anderlecht também foi um jogo fantástico. Depois há um jogo em que eu marco três golos contra uma equipa brasileira a “Portuguesa dos Desportos”, na Madeira. Ganhamos 5-3 e eu marco três, talvez dos melhores que marquei na minha vida. Também me lembro desse jogo. Era um jogo particular, mas foi um jogo que me marcou pelos golos. Depois há um jogo com o Ajax lá, que ganhamos 3-1. Tínhamos uma boa geração.
- Uma geração mítica...
- Mas não ganhamos nada. Ganhamos os campeonatos, ganhamos as taças de Portugal, mas internacionalmente faltou. É uma mágoa que tenho, faltou ganhar uma prova europeia, mas pronto quando eu vejo que até agora ainda não ganhamos...
- Quando é que sente que se tornou benfiquista?
- Nos juniores, quando vim para o Benfica. Ali é que se nasce, começa-se a sofrer, começa-se a trabalhar para defender um clube, isso logicamente vai morrer comigo.
- Termina a carreira de uma forma abrupta.
- Fui operado outra vez ao menisco, na mesma perna e não consegui recuperar. Fiquei sempre com uma dor. Aliás era no dia em que eu batia o recorde de internacionalizações do Eusébio, fazia a 65ª. Fui ser operado na Alemanha, porque me indicaram um especialista que me disseram ser o melhor, mas o que é certo é que nunca consegui recuperar, fiquei sempre com uma dor quando corria.
- Foi muito difícil colocar o ponto final?
- Difícil. É muito difícil. Porque ainda me sentia capaz de continuar. Quando não nos sentimos capazes as coisas são mais fáceis. Houve ali um período que foi difícil, mas depois passa. O futebol foi tudo para mim, foi onde me fiz homem, amigos, tudo girou à volta do futebol e talvez por isso ainda hoje esteja aqui num lugar de destaque no futebol, mas o que é certo é que vou sempre passando as barreiras, não fico para trás, parado, a penar. Gosto das minhas memórias, mas não me deixo influenciar por elas, parto para a frente, vivo o presente e o futuro. Mas gosto das minhas histórias e gosto de as contar às minhas filhas. Muitas vezes pego nas fotografias e começo a mostrar-lhes. É um prazer que tenho mas não é saudosismo, porque para mim o que interessa é o hoje e o amanhã.
- Quando terminou a carreira já pensava no que queria fazer no futuro?
- Não. Eu tinha tirado o curso de treinador e depois fui convidado pelo Salgueiros. Lá está, talvez por paixão, aquele golo do Avelino e por ser um clube que tinha uma certa afinidade com o Benfica, porque tinham ido vários jogadores do Benfica para o Salgueiros, um dos quais o meu ex-treinador dos juniores, o Ângelo, aceitei e fui treinador do Salgueiros.
- Segue-se o SC Braga.
- Sim. Talvez aí tenha dado um salto maior do que a perna. Devia ter ficado no Salgueiros mais um tempo, porque o Salgueiros tinha uma mística diferente, era um clube diferente. Houve algumas situações que não me agradaram no futebol e decidi acabar.
- Que tipo de situações?
- Não vou falar. Mas são situações que não têm nada a ver com o futebol e que me desagradaram. E depois decidi então criar a escola de futebol. Foi a primeira. Peguei num conjunto de ex-jogadores e criamos um grupo forte e ainda hoje de vez em quando nos juntamos para almoçar.
- A escola durou quanto tempo?
- 12 anos. Depois fui para fora também. Treinei a selecção.
- Vamos falar da selecção. Primeiro como jogador. Quantas internacionalizações?
- 64, sendo 30 vezes capitão de equipa.
- Enquanto jogador também foi chamado à selecção da Europa.
- À selecção da Europa e a uma selecção do Resto do Mundo. À da Europa fui jogar em Praga e depois joguei pela selecção do Mundo contra a América, nos EUA.
- Foi um processo natural ser capitão.
- Sim, é uma escolha natural dos jogadores. Há uma percentagem do mais velho, mas também há uma percentagem daquele que tem uma certa importância, que tem uma certa liderança.
- Sempre se sentiu líder?
- Criei-me. Um líder vai-se criando pouco a pouco no contacto com os outros. É isso que é fundamental, conhecer, conhecer melhor os outros que alguém. Conhecendo melhor os outros sabe para onde pode ir e para onde se pode levar. Depois com competência também naquilo que se faz.
- Na selecção não houve nada de grande realce.
- A nossa geração não...Eu penso que naquela altura havia alguns condicionalismos, porque nós éramos profissionais mas os outros eram muito mais profissionais. Era isso que fazia a diferença naquela altura, porque tínhamos talento, mas o outros eram muito mais profissionais, penso que foi isso que influenciou o facto de nunca termos alcançado nada. Os outros tinham mais equipa, mais conjunto, nós éramos mais individualidades e nunca conseguimos superar. Superávamos internamente, neste caso no clube, mas fora, quando nos juntávamos na selecção, não era a mesma coisa, como tinha sido por exemplo em 1966. Também ficaram poucos de 1966, daquela equipa houve muitos que desapareceram a seguir, saíram, e penso que a malta que entrou não tinha o mesmo estofo.
- Depois de treinar o SC Braga torna-se seleccionador nacional. Como é que isso acontece?
- Através de um convite do Gilberto Madaíl, presidente da FPF na altura.
- Surpreendeu-o?
- Surpreendeu, claro que sim. Eu já tinha saído de treinar, já há muito tempo, 12 anos, que não treinava, mas o que é certo é que depois...foi um desafio. Aceitei por isso.
- Preparou-se de alguma maneira especial para ser seleccionador?
- Preparei-me. Não só em termos físicos, mas em termos psicológicos e ao nível do conhecimento. Muitas vezes temos o conhecimento na prática do jogo, mas depois, transmitir aos outros, é completamente diferente. E foi isso que aprendi, muito rápido. Formei uma equipa também. Tínhamos um lote de jogadores extraordinários, uma geração fantástica, e fizemos um bom campeonato da Europa. Foi pena, podiamos ter ido mais além.
- E porque é que não fomos mais além?
- Acho que faltou qualquer coisa...Faltou mais ambição. Foi isso.
- Da equipa, dos jogadores?
- De toda a gente. Mas foi a partir daí que se começou a mudar esse paradigma e passamos a ter mais ambição. Muitas vezes fazíamos dois ou três resultados e ficávamos todos contentes, já chegava. Agora não. Agora é para ganhar sempre, até ao fim. Penso que o que faltou nessa seleção foi querermos ganhar até ao fim.
- Deixa de ser seleccionador porquê?
- Decidi sair.
- Porquê?
- Porque...não contei a minha mulher (risos)...não conto a ninguém. É uma coisa que fica comigo. No futebol aprendemos muita coisa e uma das que aprendi e continuo a defender é o respeito que temos de ter pelo futebol. O futebol fez-me crescer, fez-me viver, faz-me sofrer, se há coisa que nunca podemos deixar de ter é o respeito pelo futebol. E por todos aqueles que muito ou pouco fazem parte da família do futebol. E é esse respeito que prefiro ficar comigo, são coisas minhas, por respeito para com as pessoas e o próprio futebol.
- Sai pelo seu próprio pé, portanto.
- Saio, porque achei que era a altura. Tinha feito o meu serviço, o contrato tinha acabado.
- Como surge Marrocos?
- Fui contactado pelos marroquinos, que me pediram para ser seleccionador.
- A sua mulher foi consigo?
- Foi e as minhas filhas também. Andavam aqui no colégio francês e foram para o colégio francês de Rabbat.
- Gostaram?
- Gostamos muito. A minha mulher gostou muito e gosta muito de Marrocos. Tínhamos bastantes amigos que criamos lá, fora do futebol. Adaptamo-nos muito bem à maneira de viver dos marroquinos apesar de ser uma cultura completamente diferente da nossa, talvez por ter uma influência francesa muito grande ela tenha gostado tanto.
- A sua mulher entretanto parou com a actividade profissional que tinha?
- Exacto. Era freelancer, mas depois foi hospedeira da Air France. Quando ela veio ter comigo a Portugal já era hospedeira. Manteve-se como hospedeira uns anos e depois reformou-se, uma pré-reforma.
- As suas filhas também gostaram de Marrocos?
- Também. Nós gostamos muito até ao dia 11 de Setembro 2001. Vivemos lá o 11 de Setembro e vimos coisas que não se adequa com a nossa maneira. Vimos coisas que chocaram um bocadinho. A partir daí as coisas arrefeceram um bocado.
- Que tipo de coisas?
- Prefiro não dizer.
- Dali vai para a Coreia do Sul que é outra realidade completamente diferente.
- Sim, mas adorei. Fiquei com muitos amigos lá.
- Qual foi a melhor e pior surpresa da Coreia?
- A minha mulher ficou cá porque a minha filha já andava na faculdade. Fui sozinho, portanto custou-me muito. As nove horas de diferença faziam com que quase não houvesse comunicação entre nós. E isso custava-me muito. Mas gostei imenso de trabalho lá, porque eles são de uma disciplina extraordinária. É tudo muito certo, tudo à hora.
- Gosta de cozinhar?
- Sim. Só que eu sou um especialista, um mestre, ou seja, tudo tem que estar preparado e depois eu dou a arte final (risos). A minha mulher diz "Tu dás o toque final e a cozinha fica toda virada do avesso" (risos).
- O que sabe cozinhar?
- Sei fazer peixe no forno, peixe no sal, frango de cerveja, costeletas, e por aí fora. Sujo é tudo e não lavo nada (risos). Mas a minha mulher cozinha lindamente.
- Voltando aos dois anos na Coreia...
- Foram extraordinários.
- Já a qualidade do futebol...
- Sabe que não é tão má...e se virmos, a Coreia está sempre no Campeonato do Mundo, há muitos anos. Claro que o campeonato em si não tem a competitividade desejável, mas agora está muito melhor. Mas eu tive um problema lá. Tive uma arritmia crónica, depois tive também um problema da tiroide e tive que vir embora mais cedo. Tive de fazer uma ablação cá. Agora está tudo bem.
- Mas não esteve cá muito tempo porque vai de seguida para o Al-Shabab.
- Sim, a minha mulher não gostou. E eu também não.
- Foi um choque.
- Sim. Chocou-me uma vez que um indivíduo passa com uma chibata e bate na minha mulher porque ela não tinha o lenço. Ia-me chateando e não via o perigo em que me ia meter. Aquilo não é para brincadeiras. Ia tendo um problema muito grande. Porque não há ninguém que ao pé de mim dá uma chibatada na minha mulher, seja quem for. Isto marca. Depois também tinha o príncipe que queria fazer a equipa.
- Como assim?
- A história é gira porque é a história que leva a vir embora. Estamos num jogo, empatados, e o príncipe telefona para o meu adjunto/intérprete e diz: "Ele que meta fulano". Era um dos três que eu tinha posto a aquecer. Chamei o fulano e disse-lhe "agora senta-te que já não aqueces mais". No final o príncipe vem ter comigo e pergunta porque eu não tinha metido o jogador que ele tinha indicado. E eu disse-lhe: "O senhor paga-me para treinar a equipa, meter os jogadores a jogar e para dirigir. Se o senhor acha que não é assim...". "Então pronto, amanhã passa no meu escritório para receber e ir embora." (risos). E vim embora. É tão simples como isso.
- Para terminar as funções de treinador ainda tem uma aventura pela Tunísia.
- Sim. Aí fui com a minha mulher e foi uma boa aventura. Ainda hoje sou muito amigo do presidente da federação da altura, que também já foi ministro dos transportes.
- É mais difícil ser treinador do que jogador.
- Muito mais. Enquanto jogador dependemos de nós. Se fazes bem o teu trabalho o treinador mete-te a jogar. O treinador não. Depende dos jogadores. Portanto se os jogadores não quiserem não há treinador nenhum. Se não tivermos os melhores jogadores não ganhamos. Os treinadores que estão nas melhores equipas têm muito mais possibilidades de ganhar.
- Ou seja, aquilo que se ouve algumas vezes, que foi o balneário quem tramou o treinador. Isso é possível acontecer?
- É. Se os jogadores não quiserem...
- Isso já aconteceu em Portugal?
- Não sei. Mas é possível. Os jogadores são fundamentais. Se o treinador não tiver os jogadores com ele, não consegue. É impossível. Agora, o treinador tem que saber e ter competência para unir e gerir. O mais difícil é gerir.
- Sente que os jogadores portugueses evoluíram muito?
- Sem dúvida. Houve um crescimento muito grande dos jogadores portugueses. Também devido ao envolvimento financeiro que hoje existe, à melhoria da situação financeira. Os jogadores criaram mecanismos para se valorizarem. Vemos isso nos escalões de formação, há de facto comportamentos extraordinários, os jogadores têm uma disciplina não só de treino, mas também de vida, e isso é fundamental para o crescimento deles. E isso foi uma melhoria extraordinário em relação ao meu tempo.
- O Benfica nunca o aliciou para nada?
- Convidaram-me uma vez para ser presidente. Há uns anos largos.
- Em que altura?
- Penso que foi na altura do Vale e Azevedo, mas não tenho a certeza.
- Não aceitou?
- Não, não aceitei. Não estava nos meus horizontes ser presidente do Benfica.
- Nunca foi convidado para ficar na estrutura, como ficou o Shéu, por exemplo?
- Não.
- Como surge a FPF, em 2011?
- Foi o presidente que me convidou. Pensei e achei que era uma boa oportunidade para conhecer uma outra faceta. Fui jogador, fui treinador, fui seleccionador, faltava-me a parte directiva. E ainda bem, porque gosto daquilo que faço.
- É nesta função que se sente mais confortável?
- A coisa de que se gosta mais é de treinar. É o que gosto mais. Estava habituado a ver o jogo de dentro para fora e não de fora para dentro. Há cinco anos que estou habituado a ver de fora para dentro, é outra visão, completamente diferente. Mas não há dúvida de que o futebol em si é lá dentro. É mexer com aquilo, é mexer com o jogo, com o treino, e ver coisas a surgir. É tentarmos fazer com que as coisas aconteçam, com que os jogadores façam, acreditem, tenham confiança e joguem bem. Uma das coisas que gosto é de ver bom futebol, de ver jogar bem. Claro está que não se pode jogar bem sempre. Mas quanto melhor se joga mais hipóteses se tem de ganhar. Isso é uma regra que sempre segui, por isso desde o princípio que procurei jogar bem. Ser especialista no passe, jogo de cabeça, na posição, no controle.
- Gostava quando diziam que o Humberto era o Beckenbauer português?
- Nunca senti ser o Beckenbauer. Eu adorava-o, era um jogador extraordinário, conhecem-nos, jogamos golfe juntos, mas nunca me senti o Beckenbauer.
- Como, quando e onde surge o golfe?
- Surge no Golfe do Estoril. Tenho um amigo meu, o João Figueiredo, que nessa altura era o director do Golfe do Estoril e uma vez estávamos a almoçar na varanda do Estoril, ele vira-se para mim, eu estava a acabar a carreira de jogador, e diz “Eh pá, agora era bom começares a jogar golfe. Vais ver que vais gostar”. E eu: “Mas isso não tem esforço nenhum, eu gosto é de correr. Ainda por cima isto deve ser fácil?”. “É fácil? Vamos ali abaixo fazer cinco tacadas. Se acertares, eu pago um almoço, se não acertares, pagas tu. Mas é com as mãos como deve de ser”. Então lá fui e não acertei. Cinco vezes e não acertei. Fui ter com o Henrique Paulino que era o professor profissional e disse-lhe que queria 15 lições (risos).
- É daqueles que não gosta de perder nem a feijões.
- Exactamente. E agora é uma coisa extraordinária porque mantém a minha competitividade. Não posso jogar futebol que é uma coisa que eu gostaria de continuar a fazer mas não posso porque o joelho incha, mas posso andar e posso jogar golfe. Às vezes no verão levanto-me às seis da manhã para ir jogar. Agora a minha mulher também joga e joga bem. Tenho uma boa companhia.
- Ela começou há quanto tempo?
- Começou há uns 15 ou 20 anos, é uma óptima companhia, é uma óptima companheira, joga melhor do que eu já. Eu tenho o handicap mais baixo mas ela joga melhor.
- Participa em torneios?
- Não porque não tenho muito tempo. Gosto de jogar partidas com os meus amigos, gosto de jogar com a minha mulher, gosto de jogar com casais amigos. Agora qualquer destino de férias onde a gente vá, tem que ter golfe.
- Gosta de viajar?
- Não gosto de viajar de avião, mas viajo muito. Gosto muito de andar de carro. Vou de carro para qualquer lado. Mas gosto de conduzir, não gosto de andar de pendura.
- Qual o sítio que escolheria para viver fora de Portugal?
- Há duas cidades que adoro, Nova Iorque e Roma. São duas cidades que me enchem as medidas.
- Amizades no futebol, amigos do peito quem são?
- O Toni é um grande amigo, o Mário Narciso que é o nosso seleccionador, também é um grande amigo, o Shéu. Com a idade as pessoas separam-se. Agora de vez enquanto a gente junta-se. Esta semana tive um almoço com o Toni, o Simões, o Victor Martins... Mas faz-se pouco isso.
- E a relação com o Eusébio?
- Era muito grande e muito forte.
- Ele faz falta?
- Muita falta.
- Faz mais falta ao Benfica ou ao futebol português, à selecção?
- Aos dois. O Eusébio era um cidadão do mundo. Tive o prazer de jogar com ele e ver coisas extraordinárias que fazia nos treinos, nos jogos. E depois tive o prazer de ser amigo dele e de ele ser meu amigo. Era uma pessoa extraordinária, com uma bondade. Uma pessoa boa que gostava da vida à maneira dele. Vi as filhas crescerem, toda a família por quem eu tenho uma admiração enorme.
- Mas também se ganham inimigos no futebol.
- Claro, é normal. Quem é a pessoa que não tem um inimigo? Todos nós temos inimigos, alguns mais declarados, outros menos. Acho que isso é normal, especialmente as figuras públicas. Umas pessoas gostam, outras não. Temos de aceitar isso com naturalidade.
- Quando é que deixou crescer o seu mítico bigode?
- O bigode nasceu barba, depois cortei a barba e fiquei com o bigode que durou anos, uns 20 anos.
- Foi uma promessa?
- Não. Um dia disse: “Já estou farto do bigode, vou cortá-lo”. O melhor é que disseram que estava muito melhor assim e nunca mais tive bigode.
- Como vice-presidente da FPF assistiu por dentro ao Euro 2016...
- ...Um momento alto, porque acreditou-se no treinador, e o Fernando fez acreditar o grupo todo. O país. Ele fez com que toda a gente acreditasse que podíamos ganhar, que jogávamos para ganhar. Tivemos sorte, mas a sorte trabalha-se. Independentemente dos resultados que até não foram os mais favoráveis no início, acreditou-se, o grupo acreditava e isso foi fundamental para o desfecho final.
- E agora que vem ai o Mundial, o espírito mantém-se ou não por ser um mundial?
- Há uma coisa que temos de ver. Não vamos ganhar sempre. Portugal não ganha sempre. Mas há uma coisa que criamos, passámos um patamar e isso é fundamental. Estamos num patamar superior que pode levar-nos a que possamos ganhar. Nós acreditamos e os jogadores acreditam, que é parte fundamental.
- Quando é que se dá essa transformação?
- Depois de 2000. Tivemos um período em que não fomos a nenhuma fase final e depois de 2000 vamos a todas. É uma consistência que se vai tornando cada vez mais forte. Foi-se trabalhando para as gerações que vão passando, talvez umas já merecessem ter ganho...Podíamos ter ganho o Euro 2004… O que é certo é que sabíamos que ia acontecer mais dia, menos dia. Aconteceu no ano passado porque se reuniram todos os factores que vinham crescendo, os jogadores que vinham trazendo uma mística especial, uma mística diferente. Os jogadores hoje têm uma capacidade diferente, são mais fortes, têm mais objectivos. E o Fernando teve uma grande competência em reunir todos esses elementos e dar aquilo que de facto faz ganhar, a confiança.
- É um homem supersticioso?
- Não muito.
- Tinha alguma superstição enquanto jogador?
- Benzia-me quando entrava em campo.
- É crente?
- Sou.
- Praticante?
- Já fui mais praticante porque há coisas que se passam na igreja de que também não gosto. Mas continuo a crer, à minha maneira, agora um bocadinho diferente, com uma visão mais global das situações. Continuo a ser crente mas já não pratico como praticava.
- Ia à missa?
- Ia mas desde há dois anos que só vou de vez em quando.
- Porquê?
- Eu gostava muito de um padre do Estoril que faleceu. Quando vou à missa é para trazer qualquer coisa e se o padre não termina aquilo que começou, depois temos de terminar em casa. Gosto muito das homilias, para mim são fundamentais. Vivemos num mundo em que precisamos de crer e precisamos sobretudo na religião, como em tudo, de direção. Isso é fundamental para mim.
- O que faz um vice presidente da Federação Portuguesa de Futebol?
- O vice faz tudo. Estou sempre ao lado das selecções, dos treinadores, dos team managers. Uma vez por mês temos uma reunião de direcção em que se debate os temas fundamentais. Participamos nas discussões das respectivas decisões. Assisto aos treinos, assisto aos jogos, vejo o que está bem, o que está mal, o que é que se precisa, trato de orçamentos, etc.
- É uma espécie de conselheiro?
- Às vezes perguntam a minha opinião. Os técnicos têm que fazer o seu trabalho, eu tenho que analisar se fazem bem ou mal. Em função daquilo que eu vejo, dos resultados, do ambiente... É estar atento ao que de facto é importante para as pessoas estarem todas em sintonia com o modelo que se tem na Federação. Esse modelo está a ser implantado pela coordenação técnica e portanto é acompanhar.
- Vê-se um dia presidente da FPF?
- Não. A presidência está muito bem entregue neste momento. Gosto do que faço e gosto das pessoas com quem faço.
- Para além do golfe tem mais algum hóbi?
- Não. O que eu gosto também é de conversar com os meus amigos, e de estar atento aquilo que se passa no mundo.
- Foi aliciado por partidos políticos.
- Fiz várias campanhas. Fiz campanha do Sá Carneiro, do Mário Soares, do Cavaco Silva, mas não sou de nenhum partido. Sou daquilo que eu acho que é bom para o país. Não tenho nenhum partido, é o momento, em que decido o que é que faço, decido em função do que acho ser o melhor para todos, não é para mim só, é para todos.
- Ronaldo e Messi. Um comentário.
- São dois grandes jogadores. Especificamente diferentes. O Ronaldo é um finalizador extraordinário, tem uma capacidade de colocação dentro do campo fantástica, dentro do objectivo que ele pretende que é marcar golos e ganhar. O Messi é mais artista, é mais do género...
- ...Do Maradona.
- Do Maradona. É um jogador que gosta muito de ter a bola. Para o Cristiano a bola é dentro da baliza. Tem uma finalidade, ele não gosta de adornar muito e é nisso que ele de facto é exímio. O Messi gosta muito de ter a bola, gosta muito de correr com ela, de passar e receber. São dois jogadores com características diferentes mas são dois jogadores fantásticos.
- Se não fosse jogador de futebol, teria sido o quê?
- Não sei, engenheiro químico. Teria seguido os estudos, mas não era essa a minha vocação.
- Acha que o seu neto vai ser o seu seguidor?
- Dei-lhe logo uma bola e jogo com ele, mas estou a ver que ele vai ser músico porque ele só quer música, só quer tocar música. Dorme com a guitarra ao lado.
- Tem pena de não ter um seguidor?
- Gostava de ter um filho, mas não se proporcionou.
- Porque é que não teve mais filhos?
- Não sei, não sei. Ainda hoje não sei (risos). Mas tenho um neto que é óptimo, gosta de música. Comprei uma viola e vou aprender a tocar viola para tocar com ele, se ele for para a música. Já comprei umas aulas e já tenho uma aula. Se ele for para o futebol eu não preciso de fazer nada, mas se ele for para a música, quero poder acompanhá-lo."