"É altura do regresso a uma cidade onde Eusébio foi sempre feliz. Em 1961 o Mundo aprende finalmente a soletrar o seu nome. Estava lá o Santos, de Pelé. E também este Anderlecht de reencontros...
PARIS, cidade da luz, onde o Benfica soube quase sempre ser feliz e onde Eusébio viveu alguns dos monumentos mais brilhantes da sua tão brilhante vida de jogador de Futebol.
Lembrem-se: foi em Paris, no Parque dos Príncipes, que Eusébio nasceu para o grande Futebol, o Futebol do Mundo.
Estávamos em 1961: Junho de 1961. O Benfica é Campeão da Europa, acabara de vencer o Barcelona, por 3-2, ainda sem Eusébio.
Mas em Paris, no famoso Torneio Internacional de Paris, no qual participaram também o Racing de Paris, o Anderlecht e o Santos de Pelé, o Benfica já tem Eusébio. E Eusébio está pronto para abraçar o seu destino.
O próprio Eusébio recordou, uma vez, em conversa comigo: «Paris seria, se jogasse, o local do meu grande exame. Se jogasse, claro! Senti que o meu futuro se decidiria ali. E não me enganei. Contra o Anderlecht, joguei no luar do Coluna, que adoecera com anginas. Foi complicadíssimo! O Anderlecht era uma gande equipa em formação: veloz, combativa, com força. Uma surpresa para nós, que contávamos com facilidades. Eu estava cheio de nervos, não joguei muito bem, mas ganhámos, 3-2, e marquei um golo.»
A minha memória já não é o que era. Já não dá para desenhar aqui, com letras certas, tudo o que se passou. Permita-me o leitor, que tanta paciência costuma ter comigo nestas páginas, que recorra à cábula de um livro meu, «Viagem em Redor do Planeta Eusébio». Sobre Eusébio tenho lá tudo o que sei, ou quase.
Permissão dada, vamos a isto!
No outro jogo, o Santos vencera do Racing de Paris. Final luso-brasileiro, portanto. Eusébio e Pelé, frente a frente pela primeira vez.
Estávamos no dia 15 de Junho.
Um Eusébio inesquecível...
ANTES do jogo frente ao Anderlecht, Béla Guttmann chamou Eusébio: «Eusébio, você vai jogar hoje. Tenha calma. Faça tudo como de costume...»
E Eusébio fez golo e tudo...
Dois dias depois, a Final. O Benfica entra em campo com a linha avançada de Berna: Coluna, Santana, José Augusto, Águas e Cavém. Eusébio fica no banco. Terá de esperar pelo seu momento. E que momento!
O Santos entra em campo com a linha avançada que soa como uma letra de samba: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Aos 20 anos, Pelé está no auge do seu jovem esplendor. Derrama-o em campo: ao intervalo, já os brasileiros vencem, por 4-0, com golos de Lima, Coutinho, Pepe e Pelé. O público do Parque dos Príncipes delira com a gala da melhor equipa do Mundo.
E Eusébio, perguntarão vocês? Calma! Calma! Está quase!
Deu-se, então, um daqueles episódios extraordinários que faz do Futebol um passo fértil para lendas.
Exaustos por um final de época alucinante, os jogadores do Benfica parecem desistentes. Logo no início do segundo tempo, Pepe marca o quinto golo. A hecatombe é, tudo leva a crer, inevitável.
Eusébio entrara para o lugar de Santana. Ergue-se no centro de uma equipa em destroços com o vigor de um Deus antiquíssimo: é Hércules e os seus doze trabalhos!
Eusébio: ninguém mais esqueceria este nome.
Durante meia hora foi verdadeiramente avassalador. Absoluto: é capaz de ser esta a palavra certa. Ao minuto 63 marca o seu primeiro golo; no minuto seguinte, inventa um «penalty» que José Augusto desperdiça; três minutos depois reduz para 2-5.
O Parque dos Príncipes entra em delírio. De dentes cerrados, absorto na bola, no jogo, nos movimentos próprios e alheios, Eusébio é maior do que Pelé, rouba-lhe o protagonismo, força-o a um papel secundário, subalterno. Milhares de pessoas, encantadas, enfeitiçadas, gritam o seu nome. Ele não as ouve. A sua obra está ainda incompleta. O seu esforço é monstruoso: por si só, reconstrói um conjunto em seu redor, carrega-o consigo no trilho de uma recuperação espectacular. A luta pode ser desigual, mas ele ignora-o. É um vendaval de músculos, tendões, ossos e cartilagens que desaba sobre um opositor entontecido. O seu entusiasmo desperta a rebeldia dos companheiros. O Benfica domina, agora, os acontecimentos. Eusébio marca mais um golo, faltam dez minutos para o final do jogo, há quem acredite ainda no impossível. Dez minutos não chegam. Pelé é Pelé e teima em recordá-lo àqueles que, por momentos, o esqueceram: faz o 6-3 final.
Dia 15 de Junho de 1961: o Benfica-Santos ficará riscado a giz na lousa dos acontecimentos inesquecíveis.
«Eu respeitava-os, mas não lhes tinha medo», disse Eusébio, mais tarde: «Eram bons, eram fantásticos, mas também eram homens como nós. Alem disso, entrei com a equipa a perder por 0-4. Deu-me uma certa tranquilidade: vendo bem, não poderia fazer muito pior nem estragar o conjunto. E estava alegre por ir defrontar o Pelé, o mestre do Futebol. Contaram-me que o público gritava o meu nome. Não dei por nada. Estava entretido com a bola. Acho que Paris me deu sorte».
Uma luz negra e inesquecível tinha iluminado Paris!"
Afonso de Melo, in O Benfica
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