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sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Cabo Verde, finalmente no mapa


"Foi em 2002 que percebi o que era viver fora do mapa. Literalmente.
Era um miúdo com dois anos de profissão e ia fazer a primeira viagem ao estrangeiro em trabalho. Para começar, arranjaram-me uma coisa modesta: acompanhar o Leixões a Strumica, numa pré-eliminatória da Taça UEFA.
Onde fica Strumica, perguntou?
Pois bem, antes de mais convém dizê-lo devagar, como quem tenta convencer o cérebro de que é um destino: Stru-mi-ca. Depois, fica na Macedónia, onde não é mais do que uma nota de rodapé.
Na realidade parecia o cenário de um filme do Kusturica, com homens de bigode espesso, casas construídas até meio e crianças a correr atrás do autocarro. Dizem que 40 por cento da população estava no desemprego e que 20 por cento vivia abaixo do limiar da pobreza.
Para lá chegarmos, tínhamos de aterrar na Grécia, no aeroporto de Salonica, e atravessar a fronteira de autocarro, rumo ao desconhecido.
Foi nessa travessia que descobri o que é o absurdo em forma de burocracia. Estava eu em trânsito desde Salónica, de malas feitas para os Balcãs profundos, quando o autocarro parou numa fronteira com uma poça de água suja e cheiro a frio metálico, que só não estava deserta porque tinha dois guardas daqueles que parecem ter nascido já desconfiados.
Dois minutos de espera. Dez. Trinta. Uma hora. Duas.

What’s the problem?
O problema tinha um nome e número de camisola: chamava-se Brito e era um avançado cabo-verdiano do Leixões. Ou pelos menos dizia ser. É que para a Macedónia, Brito era um fantasma, que vinha da terra do nunca.
Sim, isso mesmo. O sistema não reconhecia Cabo Verde. A máquina não mentia: para a República da Macedónia, não havia Cabo Verde, não havia Brito, não havia nada.
Tentaram explicar que sim, Cabo Verde existia, era um arquipélago no Atlântico, com música de mornas e gente de sorriso fácil.
Que não, que não havia ali nenhum país assim.
Uma hora, duas horas, até que no fim, talvez convencidos pelo cansaço, aqueles dois guardas - com olhar de quem acha que Cesária Évora é um vírus tropical -, lá nos deixaram passar. Com um carro da polícia atrás da comitiva do Leixões, e sobretudo de Brito.

Entretanto passaram-se 23 anos e Cabo Verde vai ao Mundial.
Um país que já foi invisível para os registos da fronteira da Macedónia vai estar no maior palco do planeta, com VAR, GPS, Big Data e tudo aquilo que um guarda fronteiriço de 2002 jamais poderia imaginar.
Não haverá polícia atrás de Brito, nem dúvidas sobre o país. Cabo Verde vai estar nos álbuns de cromos e nos palpites do Mundial. Vai haver gente a pesquisar onde fica, turistas a querer descobrir as praias, jovens a aprender o que é a morabeza.
E eu, quando isso acontecer, vou lembrar-me daquele autocarro parado entre dois mundos.
Com Brito à janela, sem imaginar que um dia Cabo Verde atravessaria a fronteira do impossível. Para entrar definitivamente no mapa."

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