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sábado, 13 de abril de 2024

O Benfica encheu o coração de Eriksson em vida. E podia ter retirado mais vida ao Marselha


"Na noite que uniu a Luz na apoteose a Sven-Göran Eriksson, homenageado ao intervalo quando o Benfica já ganhava, o estádio acabou a despedir-se da equipa com assobios. Sem grande rasgo, os encarnados venceram (2-1), mas, quando pareciam encaminhados para um resultado mais gordo, abrandaram e do relaxamento surgiu o erro que deixou o Marselha levar um golo da 1.ª mão dos quartos de final da Liga Europa

É de louvar o Benfica, vendo o exemplo dado pelo Liverpool, ter aprontado uma homenagem a Sven-Göran Eriksson com o sueco vivo, contrariando o tão humano hábito de conceder louros, explanar elogios e recordar virtudes quando já há enlutados. Parece tarefa dificílima fazer um preito em vida, quando se pode desenhar felicidade, por mais tímida, na alma dos visados, a poeta Ana María Rabatté y Cervi escreveu “nunca visites panteões, nem enchas tumbas de flores, enche de amor corações”, esses que ainda batem, e “em vida, irmão, em vida”, quando ainda cá estão os recipientes das palavras honrosas, dos elogios sem fim.
Num caminhar mecânico e esforçado no leve coxear, o sorriso a segurar-lhe as bochechas, a feição tímida perante a ocasião, Eriksson pisou o relvado do Estádio da Luz ao intervalo, passinho em passinho, a demorar o seu tempo no meio do corredor de antigos jogadores do clube que treinou entre 1982 e 1984, depois de 1989 a 1992. Eram muitas as lendas grisalhas, cada uma vestida com a camisola do Benfica do seu tempo, todas vermelhas e ora com “Shell” ou “Fnac” estampado no tecido. Rui Águas, Shéu, Valdo, Humberto Coelho, João Alves, Carlos Manuel, Vítor Paneira e outros vários e, claro, Toni, ele e o seu bigode e os olhos empapados quando deu um abraço ao homem também de lágrimas escorridas, frágil mas feliz, de quem foi adjunto.
Estava-lhe na cara rosada e avermelhada pelo calor primaveril. “Estou a chorar. É bonito. Muitas felicidades e muito obrigado”, ouviu-se de Sven-Göran Eriksson, a lenda-maior da noite, o beneficiário do decoro mais elogiável ao Benfica fosse qual acabasse por ser o resultado do jogo aproveitado pelo clube para ter casa cheia. A sábia Ana María Rabatté y Cervi escrevera-o, “se desejas dizer: ‘Te quiero’ às pessoas de tua casa, ao amigo próximo ou longínquo, em vida, irmão, em vida” e os encarnados reservaram o intervalo com o Marselha para o sueco dos três títulos de campeão nacional e da última final da Taça dos Clubes Campeões Europeus que arrancou gritos pelo seu nome nas bancadas.
Foi o momento áureo da noite, que ainda não tinha futebol nem os preparativos para esta cerimónia e Eriksson, cheio no coração, já sorria no seu lugar do estádio.
Revolucionário no seu tempo quando os tempos eram de meter os jogadores a darem maratonas no pinhal, a correrem à volta do campo ou a subirem escadas, o sueco, visionário na década de 80 por tornar a bola protagonista no treino, pouco rasgo viu até chegar o momento que lhe tocava. Com os mesmos jogadores pelo terceiro jogo seguido pelo argumento das “boas exibições” feitas, ouvido de Roger Schmidt, no pré-jogo, o Benfica demorou a não ser pachorrento na saída de bola, pondo-se a jeito da primeira pressão feita pelo Marselha dentro da metade encarnada. A intenção era enganadora, um débil fogo de vista.
Essa alguma ousadia dos franceses, subidos no posicionamento campo mas amorfos a de facto pressionarem, não escondia a cratera de espaço aberto dos médios e atacantes para os cinco defesas, deixados à sua sorte caso um mero passe vertical entrasse em Rafa. O pequeno e barbudo exemplar de frenético futebolista esperou mais de 15 minutos até João Neves entender que estar na mesma linha de Florentino na construção das jogadas era facilitar a vida aos adversários. O médio avançou um par de metros, Florentino deu-lhe a bola e ele logo a passou a Rafa que desengatilhou o desenho com o toque subtil que desequilibrou o Marselha. Nem cinco segundos depois, o próprio estava a receber o ouro de Tengstedt na área e a marcar com o bico da chuteira (16’).
O rasgo de futebol contemporâneo para o vanguardista sueco que treinou o Benfica esteve no marcador do golo, de certa forma um microrrevolucionário do seu próprio âmago. Sem se destacar propriamente a correr com a bola à conhecida velocidade de Rafa, frenético nos sprints em que a cola ao pé direito, o português centrou-se em pincelar o meio-campo do Marselha com toques artísticos e ao de leve nas jogadas. Um ligeiro roçar do exterior da chuteira na bola para soltar João Neves depois um beijo de calcanhar que a deixou de novo no médio para ele rematar, de longe, às mãos de Pau López.
A distribuição de súbitas intervenções de Rafa nos últimos 30 metros do ataque, atraído pela bola, combinavam com as frequentes corridas de Tengstedt, sempre esforçado a ameaçar as costas dos defesas, para o Benfica, quando acelerava o ritmo dos passes, aproveitar o buraco do desorganizado Marselha. Sofrido o golo, os franceses mais desconchavados ficaram, indecisos entre tentarem manter a equipa junta ou lançarem-se na pressa da pressão que abrir buracos por todo o lado.
Reluzente na luz a findar na carreira de Pierre-Emerick Aubameyang e sem coesão possível para que Kondogbia e Veretout, médios de valor, existissem para lá das ajudas que prestavam à vigia dos jogadores que o Benfica tentava juntar por dentro, o Marselha voltou arisco do balneário. O brusco contraste foi óbvio: ainda o estádio se comovia e mãos iam aos bolsos buscar lenços que secassem as lágrimas já os franceses, com mais vontade do que plano, intensificaram o ritmo das suas ações. Queriam reagir, agindo, e saíram a pressionar a saída de bola do Benfica, expondo-se à sorte de confiarem na organização que já lhes faltava antes de arriscarem assim.
A segunda parte cedo partiu o jogo em repelões e trocas de contra-ataques. O gáudio do Benfica também prontamente se viu. Uma transição das que suga a energia que Di María, é parcimonioso a conservar à direita do ataque, cada vez mais forreta a movimentar-se para outras freguesias, convenceu o argentino a correr veloz com a bola, trocar passes com David Neres e fazer um último, à baliza, para o 2-0. Havia 52 minutos no relógio, parecia o espreguiçar de um resultado mais gordo ainda, a vincar as diferenças individuais e coletivas do Benfica para um Marselha sem tino dos três centrais a controlarem a linha defensiva, nem noção posicional nos restantes jogadores para não partirem a equipa após cada perda de bola.
A ter de coexistir com a confusão marselhesa, o Benfica teve Tengstedt a rematar sem pontaria na área, Di María ainda tentou outra das suas, mas pouco demorou a amolecer na corda bamba que abanou mais por letargia dos encarnados do propriamente pela competência imparável do adversário, mero 8.º classificado da liga francesa. Após uma disputa de bola que Florentino, é notícia, não ganhou, Aubameyang foi pronta e previsivelmente lançado a correr, intenção que António Silva anteviu sem espinhos.
Mas, corpo reto e postura descontraída, o central tentou apenas desviar a bola para sair a jogar com ela e o astuto avançado gabonês, esculpido noutra nada do futebol europeu (Milan, Borussia Dortmund, Arsenal ou Barcelona) pôs o pé direito no que remataria mais à frente, em jeito (67’), para castigar o relaxamento do português. Foi o décimo golo de Aubameyang nesta Liga Europa e o 34.º na história da prova, onde é o melhor marcador da sua história. E em noite festiva pela homenagem à lenda de Eriksson, que um cancro no pâncreas finda, os assobios que nunca hibernam e têm sono leve revisitaram a Luz. Pouco depois, de Roger Schmidt veio um sinal do banco ao trocar João Neves por João Mário, a irrequietude pela calma. A eletricidade na bola pela bola pausada no pé.
Não foi por isso, mas também com isso, que o Benfica cumpriu os minutos que restaram de volta às lides pachorrentas. Outra vez sem rasgo, a abrandar o ritmo das posses de bola, incapaz de desenhar perigo nas jogadas, os encarnados foram um corpo inerte, a contar o tempo frente a um Harit que sambava na cara deles, sem efeitos práticos, e as conduções de bola rápidas com que o marroquino Azzedine Ounahi, entrado para o meio-campo, tentou levar o Marselha para a frente. Pouco pôde o Marselha, mesmo contra um Benfica minguante com a passagem dos minutos. Ao último apito, ouviu-se um coro considerável de assobios.
Às tantas cansados por ser abril e a sucessão de jogos pesar, também não ajudados pela inatividade de Roger Schmidt a reagir à volatilidade do jogo a partir do banco, o Benfica acabou amorfo e inoperante, limitado a esperar pelo relógio. Quando o segundo golo se festejou na Luz, parecia embalado numa vantagem sem entraves para engordar. Baixou o ritmo, relaxou e acabou encolhida num resultado infiel à balança que guarda as equipas após serem pesadas as carências - e várias há - de cada uma. Ao contrário dos encarnados, que jogarão no domingo para o campeonato, o Marselha terá agora uma semana livre de jogos até à 2.ª mão para ver da sua vida até lá.
O Benfica deixou a sua bonita homenagem a Sven-Göran Eriksson em vida, com os seus a rejubilarem para quem já foi um deles. “Tu serás muito, muito feliz se aprendes a fazer felizes a todos os que conheças”, poetizou Ana María Rabatté y Cervi, insisto porque se deve insistir com as coisas bonitas e ela bem escreveu “em vida, irmão”. Na vida que o Benfica poderia ter levado, em maior dose, e vivida com outro futebol, para Marselha. E em noite de comunhão na apoteose a uma lenda, a Luz despediu-se a assobiar."

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