"Quem luta para ter comida para pôr na mesa sabe que o fracasso não é opção e que as desculpas não matam a fome
A minha avó Rosa, benfiquista, tinha uma interpretação muito singular do papel do adepto. A cada jogo do Benfica, cada vez que abria a boca era para criticar os jogadores… do Benfica! A cada passe mal feito, a cada golo sofrido, a cada resultado negativo, a minha avó refilava com eles com a convicção que eles estavam mesmo a ouvir. «Cabaneiros», gritava, palavra que em criança desconhecia e que vim a saber poder ser «vadio, preguiçoso». Se fosse viva, teria havido sermão e missa cantada durante o jogo com o Inter e ninguém teria escapado. Já nos golos e vitórias do Benfica, era inexpressiva, do género não fizeram mais do que a obrigação deles. Aliás, se os adeptos que vão ao estádio fossem todos como a minha avó, a Luz seria um cubo de gelo a cada vitória das águias.
Subjacente a esta emotividade irracional estava uma convicção profunda: se para a avó Rosa o Benfica é o melhor e conta com os melhores, a antecipação de um jogo estava imune aos imponderáveis do futebol. Vencer era uma inevitabilidade. Logo, não havia ansiedade ou dúvida. No Totobola, as opções eram apenas «1» ou «2» consoante o Benfica jogasse na Luz ou fora. E quando o choque com a realidade a fazia confrontar-se com um mau resultado, a culpa era invariavelmente dos jogadores, porque não há sorte ou azar que possa contra a lei de quem é mais forte e dá tudo em campo. Nunca lhe ouvi uma reclamação contra os árbitros ou adversários.
Tentar explicar-lhe que o Inter é uma das grandes equipas europeias e que tem um orçamento superior ao Benfica seria ainda pior. Desculpas, diria ela, irritada. A vida numa pequena aldeia perdida do Minho, num Portugal então a preto e branco, tinha-lhe ensinado tudo sobre como fazer muito com pouco. No seu papel de matriarca, sabia que quando a luta diária era ter pão na mesa, o fracasso não era opção. E que as desculpas não matam a fome.
Retorcido? Talvez exagerado, mas, à maneira dela, o que falamos é de critério de exigência. Que me obriga a responder a uma simples pergunta: «Fiz mesmo tudo para evitar o insucesso?» Só depois posso cobrar os erros dos outros. O que nunca acontece, se formos verdadeiros no exercício. Há sempre culpas ou falhas nossas no insucesso, tornando inútil — e por vezes hipócrita — o exercício de atirar pedras ao telhado do vizinho.
Num outro patamar, mas igualmente singular, a minha mãe, também benfiquista, deve acreditar que receberá um dia o Nobel da Paz pela promoção da concórdia entre adeptos. Não insulta ninguém, compreende os jogadores e tem sempre uma palavra de conforto. A derrota dos adversários não lhe dá gozo nenhum, não raras vezes se junta aos netos a festejar as vitórias de Sporting e FC Porto. A minha avó nunca o disse, mas, avaliando a forma como olhava a minha mãe nestes momentos de concórdia, deve ter-se culpado de alguma falha na educação da filha, muito mole para o gosto dela.
Ser do SC Braga por 'nacionalidade'
Para o meu avô Adelino, ser adepto de um clube não era uma questão de opção, mas de, num certo sentido, de nacionalidade. Se ele era de Braga, o SC Braga era a sua nação e olhava de soslaio para mulher e filhos, que renegaram a nacionalidade para apoiarem nações estrangeiras…
Se ele tivesse visto a brilhante vitória do SC Braga em Berlim, haveria se estar orgulhoso. Feliz por presenciar um novo milagre de São Geraldo — padroeiro da cidade, foi arcebispo de Braga, morreu a 5 de dezembro de 1108 — que, reza a lenda, fez nascer fruta em terreno coberto de densa neve. O avô Adelino haveria também de se sentir guardião do espírito e da simbologia da Torre de Menagem. Depois, recolheria ao quarto para voltar à leitura. Talvez para reler as aventuras de Zé do Telhado, famoso salteador do século XIX, entretanto apelidado de Robin dos Bosques português. Guardo ainda hoje o livro de José Manuel de Castro sobre a vida de Zé do Telhado, edição no mínimo com uns 50 anos, como herança do meu avô. A quem estarei eternamente grato por ter incutido em mim o gosto pela leitura e por uma boa história, que ele me dava a conhecer pelos livros e pela forma exímia como as contava aos netos.
Chocolates à conta do FC Porto
O meu tio João, que viveu connosco até se ter casado, via o papel de adepto como o de afirmação de uma identidade. Seduzido pelo discurso de Pinto da Costa, adepto do FC Porto se consolidou. Cada vitória e cada título era bem mais do que um jogo de futebol, era a própria vida jogada em 90 minutos. Nas semanas europeias, cada vitória dos dragões era prenúncio de quintas-feiras, dia de folga do meu tio, mais felizes. Comprava-me uma tablete de chocolate ou uma sombrinha de chocolate Regina. Teria ficado triste com a derrota com o Barcelona, atenuada por ser com um clube que também gostava pelos pontos em comum no que à afirmação de uma região diz respeito. Haveria de ter reconhecido o esforço dos jogadores e algum azar num empate que esteve tão perto. Talvez isso lhe bastasse para manter a vontade de me comprar um chocolate.
Sportinguista não praticante
Na brincadeira, dizia que o meu pai era um sportinguista não praticante. Torcia pelo Sporting, à maneira dele e para ele. No futebol como na vida. Homem de pouquíssimas palavras, mas de grandes gestos e que está na origem da minha primeira zanga com Deus, tão injusto achei ter-mo levado quando ele tinha apenas 48 anos. Tudo o que aprendi do meu pai foi por aquilo que o vi fazer. Não dava conselhos, dava exemplos. E ensinou-me duas lições essenciais: como ser um Homem e como Amar uma mulher. Bastava estar atento ao que ele fazia. Confesso, fui um aluno medíocre, ainda hoje tenho de ir à oral, incapaz de dispensar logo no exame escrito.
A reação dele ao jogo de ontem do Sporting seria de absoluta serenidade. Quem, literalmente, tinha andado à luta em criança por um pedaço de pão de milho e aos 12 anos recebia as primeiras migalhas de salário a lavar pratos num restaurante, tinha colocado no topo a fasquia da gestão das emoções, abaixo da qual o sucesso e insucesso tem de ser relativizado."
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