"Passadas que estão as desconfianças que muitos educadores, desde princípios do século passado, colocavam relativamente aos valores pedagógicos e educativos do desporto, o entendimento de que, no âmbito da disciplina de Educação Física, a educação desportiva deve fazer parte do processo de desenvolvimento motor das crianças e dos jovens é uma realidade que se tem vindo a afirmar ao longo dos últimos anos, muito embora, com frequência, surjam desentendimentos. Regra geral, os desentendimentos surgem porque os protagonistas argumentam em diferentes posições e/ou planos de análise que implicam diferentes conceitos, lógicas e discursos pelo que se torna impossível compreender aquilo que o outro está a dizer. Se quando se observa um sistema de dentro para fora ou de fora para dentro vêm-se dois sistemas diferentes, assim também quando se analisa um sistema na sua base de funcionamento, na sua estrutura intermédia ou no seu vértice estratégico têm-se diferentes maneiras de ver a questão. Posto o problema desta maneira o objectivo desta reflexão circunscreve-se à análise do ensino do desporto de dentro do Sistema Educativo e do seu vértice estratégico. Portanto, vamos olhar para o sistema de cima para baixo no sentido de estabelecermos o desenho daquilo que entendemos deve ser a sua superestrutura.
De uma maneira geral, as questões relativas à organização da educação física a partir da base do sistema há muito que são realizadas. Por exemplo, sobre esta problemática a primeira referência surgiu em 1762 com o livro intitulado “Dissertation sur l'Éducation Physique des Enfans, Depuis Leur Naissance Jusqu'à l'Âge de Puberté” da autoria do médico suíço de seu nome Jacques Ballexserd. Desde então, surgiram milhares de trabalhos de investigação que, podemos dizer, culminaram na vasta obra de Jean Piaget. As questões relativas à estrutura intermédia começaram a surgir desde 1958 com o trabalho seminal de March e Simon intitulado “Organizations” e, mais tarde, em 1979, com “The Structuring of Organizations” de Henry Mintzberg que permitiram estudar os sistemas educativos tendo como foco as suas estruturas intermédias, quer dizer, da organização escolar. Todavia, têm sido praticamente inexistentes os trabalhos sobre os sistemas educativos tendo em atenção a sua configuração superestrutural, ou seja, do desenho geral dos princípios, dos valores, dos objectivos, dos recursos, dos destinatários, dos fluxos, dos mecanismos de coordenação e conjugação do trabalho, tendo em vista apurar a eficiência e eficácia do seu funcionamento.
Após a queda do Muro de Berlim, devido ao declínio acelerado do estado-nação, os regimes de muitos países do mundo começaram a olhar para o desporto como um instrumento de afirmação do seu poder político, tanto interno quando externo, através da obtenção de resultados desportivos nas grandes competições internacionais. E, para o efeito, sem qualquer sentido estratégico no que diz respeito à educação desportiva que deve estar na base do desenvolvimento desportivo dos países e no completo desrespeitos pelos mais elementares princípios da psicologia infantil e da correspondente pedagogia, começaram a implementar programas de especialização desportiva dirigidos a crianças a partir dos seis anos de idade que atentam contra a Declaração Universal dos Direitos das Crianças ONU/UNICEF. Ora, esta declaração, no seu princípio II, diz: “A criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços, a serem estabelecidos em lei ou por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade”.
Considerando o caso português, o desporto, enquanto actividade física promotora de valores para a vida, no âmbito do sistema educativo, deve ser entendido no:
- 1º Ciclo do Ensino Básico (1º, 2º 3º e 4º anos de escolaridade); Um processo contínuo de educação motora curricular;
- 2º Ciclo do Ensino Básico (5º e 6º anos de escolaridade); Iniciação desportiva numa sistematização eclética da aprendizagem das várias modalidades, de acordo com as possibilidades de oferta dos estabelecimentos de ensino, através da execução rigorosa de programas para o ensino das diferentes modalidades individuais e colectivas, por ciclos de actividade em função dos espaços desportivos escolares existentes. O objectivo primordial, para além dos aspectos psicomotores, deve ser a aprendizagem dos gestos técnicos fundamentais e sua interligação nas situações de jogo bem como a aquisição do conhecimento das regras e sua arbitragem nas diferentes modalidades desportivas tendo em vista a compreensão prática e teórica do próprio jogo;
- 3º Ciclo do Ensino Básico (7º, 8º e 9º anos de escolaridade); Orientação desportiva possibilitando a escolha vocacional de um conjunto de duas ou três modalidades a desenvolver ao longo do ano lectivo numa progressão técnico-prática ao longo do Ciclo.
- Ensino Secundário (10º, 11º e 12º anos de escolaridade); Aperfeiçoamento desportivo em regime de livre opção para a vida e para a competição formal em função da oferta dos estabelecimentos de ensino. O aperfeiçoamento desportivo, deve ser realizado na Escola Secundária e complementado nos Clubes Desportivos, se estes tiverem instalações apropriadas e técnicos habilitados para o desempenho dessas funções. A especialização desportiva deverá ser a derradeira etapa da formação desportiva e, por esse facto, só deverá, abranger jovens com idade de acordo com as especificações técnicas das modalidades sob um rigoroso controlo pedagógico e médico-desportivo, por solicitação dos responsáveis técnicos e com a aprovação dos respectivos pais.
A especialização desportiva pode acontecer em regime opcional através de projectos especiais a articular numa perspectiva sistémica e protocolar com as organizações do associativismo desportivo onde o estudante está enquadrado e já a desenvolver a sua prática desportiva federada.
O Desporto Escolar deve responder à evolução da disciplina de educação física tendo em atenção o seu programa e o projecto desportivo da escola.
Do ponto de vista sistémico as competências e os conhecimentos a adquirir no âmbito da motricidade infantil nos cursos de formação inicial para professores do 1º ciclo do ensino básico, a fim de se cumprir o direito constitucional à cultura física e ao desporto, devem ser estabelecidos a nível nacional através de um programa plurianual para a disciplina de educação física que abranja o primeiro Ciclo do Ensino Básico a fim de poder ser objecto de monitoragem e controlo da eficiência relativa do funcionamento e da correspondente eficácia dos resultados conseguidos.
Em simultâneo, deve ser desencadeada a institucionalização de uma Carta Desportiva a produzir relatórios em tempo real que permita apurar as necessidades de recursos humanos, formação, instalações e apetrechamento.
A política desportiva de um país considerando que a educação desportiva deve começar no 1º Ciclo do Ensino Básico deve ser equacionada tendo em atenção ciclos longos de planeamento no mínimo de 12 anos correspondentes a três Ciclos Olímpicos. É tempo do desporto em Portugal numa visão estratégica do seu desenvolvimento, ao contrário daquilo que tem vindo a acontecer com fracos resultados, comece a ser equacionado e programado na sua base, isto é, nos locais e das organizações onde ele deve acontecer quer dizer, nas escolas do ensino básico e das famílias. Nunca nenhum país do mundo atingirá um nível desportivo decente com estratégias de especialização precoce que atentam contra os direitos das crianças."
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