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quarta-feira, 1 de julho de 2020

O ensurdecedor silêncio no abuso de menores: o caso da "Atleta A"

"A Netflix estreou na passada semana um documentário sobre o enorme escândalo que envolveu as atletas da selecção feminina de ginástica dos Estados Unidos, o médico Larry Nassar (osteopata que durante cerca de 29 anos acompanhou num registo quase diário as melhores atletas deste país) e a própria federação de ginástica.
Este processo culminou com a identificação de, pelo menos, 125 vítimas (suspeita-se que muito mais), a prisão do referido médico – figura proeminente (como não poderia deixar de ser) no desporto daquele país e o próprio presidente da referida federação, pela cultura de silencio que impôs, a qual, ao não salvaguardar os direitos e integridade física e emocional daquelas crianças, acabaria por ser não só conivente, como uma forte ajuda à perpetuação dos abusos por uma série de anos.
O documentário transporta-nos para uma dura realidade – a realidade que sempre surge quando a integridade das crianças e adolescentes deixa de ser a preocupação fundamental que mobiliza os adultos que, supostamente, deveriam ser a sua rede de suporte.
Mas comporta ainda, o discurso directo das vítimas que, aceitando testemunhar, acabam por se transformar numa enorme ferramenta de protecção e “empoderamento” para toda e qualquer criança e/ou adulto que possa, neste preciso momento, encontrar-se numa situação de potencial potencial abuso – a sua narrativa permite, por isso, o reconhecimento claro das características de uma situação abusiva.
Para toda e qualquer potencial vítima, a capacidade de reconhecer e significar uma dada situação como uma situação abusiva é, muito frequentemente, inexistente uma vez que, como mecanismo de defesa (pela idade, pela inexperiência e pela desvalorização dos técnicos e pais), recorrem quase sempre a dissociação para poderem suportar o insuportável (Xella & Belo, 2015).
Aliás, quando a dor de um atleta (física ou emocional) é repetidamente desvalorizada e vista como parte do processo para atingir um objectivo, o atleta pode incorrer numa espécie de “treino” dissociativo – o que termina com a instalação de uma crença de que a sua dor “não é nada” e um abuso (sexual) é só mais uma “dor”…
Também, por esta razão, muito frequentemente apenas resignificam este tipo de comportamentos como “abuso” alguns anos mais tarde, quando o evento traumático é activado por um qualquer estímulo (semelhante) contextual.
Este mesmo fenómeno aparece no testemunho da atleta olímpica Rachel Denhollander e, posteriormente, de Jessica Howard e Jamie Dantzscher quando se referem ao momento em que tomam consciência de que há uma investigação a decorrer sobre Nassar:

“Quando nos apercebemos que foi de facto abuso sexual, sem sabermos nem nunca termos pensado nisso, torna-se muito real, como se tivesse sido ontem, como se tivesse acabado de acontecer e tivéssemos 15 anos”
(“The Athlete A”, Netflix - Jessica Howard).

De facto, todas as memórias traumáticas estão sempre presentes no “background” do pensamento a qualquer momento. O trauma sobrecarrega o cérebro ao despoletar imagens, pensamentos, sensações físicas e emoções que são tão dolorosas que se tornam insuportáveis. De forma a evitar processar a situação, as experiências ficam congeladas no espaço e no tempo, dando origem a “cápsulas” de memórias cruas e não processadas. Assim, quando as memórias veem à superfície, são tratadas como informação nova que está a ocorrer no “agora” – pelo que a pessoa que lida com a situação é a mesma que a sofreu, e não a pessoa mais velha e experiente (por esta razão, muitos adultos parecem crianças indefesas).
É pois, aqui - quando se torna possível olhar para o passado e “dar-se conta” do que realmente se passou, dando um significado real ao que se viveu que sucede a retraumatização - ao contactar com o trauma de forma secundária pelo relato outra pessoa. Emerge então um quadro de stress pós-traumático com enorme prejuízo para a vida pessoal, social e profissional da pessoa que foi vítima de abuso, (as consequências, entendam-se “cicatrizes”, psico-emocionais que condicionaram toda a vida conhecida).
Por esta razão, seria de enorme importância que este mesmo documentário pudesse ser visionado em canal aberto e, por este motivo, este artigo foi redigido em colaboração com dois outros colegas, o Dr. João Lameiras Psicólogo especialista em Desporto que, tal como eu, possuiu uma vasta experiência neste contexto e a Dra. Assunção Neto, especialista em Psicologia Clínica, Trauma e EMDR que, por força da sua profissão, possui enorme experiência na área do abuso.

O Documentário - Uma Cultura Instituída de Abuso Em Prol dos Resultados
A sucessão de eventos documentada no filme “The Athlete A” documenta uma enorme diversidade de exemplos de situações abusivas, cruamente relatadas pelas protagonistas do documentário, a título de exemplo:
· Abuso verbal: “És uma vaca! Estás enorme, gorda...”
· Abuso Físico – quando o treino e/ou competição acontecem enquanto se encontram gravemente lesionadas (ex: fratura de coluna). O expoente máximo surge-nos com o desempenho que Kerri Strug para garantir uma medalha olímpica aos EUA finalizando a sua competição já gravemente lesionada 
(posteriormente considerada uma “heroína” pela sua “coragem” - como se tivesse tido qualquer tipo de possibilidade de escolha); · Abuso físico – maus tratos (agressões recorrentes por parte de Bela e Martha Karolyi, no centro de treino onde decorria a sua preparação);
· Isolamento Social e Familiar – encerradas num “campo de treino” onde treinavam 7h por dia e ao qual a família não tinha acesso e com a qual dificilmente conseguiam falar (a família “confiava” que estavam bem entregues);
· Abuso Sexual – perpetrado por alguém que, num contexto de grande adversidade, não só soube criar o contexto certo de vitimização (sedução, manipulação e condicionamento - Xella e Bruno, 2015) tornando-se próximo e amigo (entre 50% a 70% dos abusos são perpetrados por pessoas conhecidas que, muito frequentemente, são validadas pelos encarregados de educação e/ou comunidade como pessoas altamente credíveis – Snyder, 2000), como promoveu ainda maior isolamento do exterior reforçando as qualidades negativas de todas as outras pessoas que estavam no staff da selecção.
Decorrente da normalização do abuso, nas suas diferentes dimensões, nada mais haveria a esperar que não fosse a aceitação do mesmo e a impotência para se defender, tal como refere Jen Sey:
“A linha entre treino duro e abuso de crianças é muito ténue pelo que, quando o abuso sexual acontece, já não acreditam na sua própria percepção... porque quando pensam que tem fome ou que dói o tornozelo e que estão a trabalhar com afinco, dizem-lhes aos gritos que são preguiçosas, gordas e que o tornozelo não tem nada (...) daí que, quando estão com um médico proeminente que lhes coloca a mão sem luva na vagina, acabem por pensar que ‘é um grande médico, tenho sorte. Não vou dizer nada.”
(“The Athlete A”, Netflix - Jennifer Sey, ex-atleta).

O Abusador Scott Olson
Figura proeminente na comunidade desportiva e civil (médico) que fazia questão de exacerbar os seus feitos do passado junto das jovens atletas (todas as atletas medalhadas que já havia tratado aos longo da sua carreira), professor universitário, fundador de uma associação para o autismo, cómico, amigo, atencioso (levava frequentemente comida às escondidas às atletas), presente e, por isso, transformando-se naturalmente numa figura de um “aparente suporte” emocional face a um contexto onde, reforçando ainda mais no seu discurso as características negativas do mesmo, acabava por isolar ainda mais as atletas e estreitar os laços de dependência na sua direcção – afinal, o “cocktail” ideal para uma cultura de silencio e culpa.
Certamente que as características enunciadas já não surpreendem quem esteja mais familiarizado com o tema (no contexto desportivo ou outro), contudo, possuindo características de manipulação elevadíssimas, os “abusadores” muito dificilmente são reconhecidos no dia a dia do nosso quotidiano e, quando o são, por cumprirem eximiamente o papel do “bom cidadão e extraordinariamente dedicado e bom profissional”, recolhem das possíveis testemunhas (outros adultos no contexto), o benefício da dúvida que se torna conivente com a perpetuação dos abusos.
Este padrão de comportamento, com a vítima e a comunidade, trabalhando a cada detalhe uma espécie de inequívoco reconhecimento de qualidades (humanas e profissionais), como se de uma encenação teatral bem conseguida se tratasse, encontra-se amplamente caracterizado na literatura da especialidade que, frequentemente destaca “o segredo, a negação, a minimização e a racionalização” como elementos comuns que ligam agressores, vítimas e testemunhas (Xella & Bruno, 2015). 
Também este tipo de comportamento os faz, muitas vezes, sentir uma espécie de “intocabilidade” – que o meio valida com o seu silencio – tornando-os, muitas vezes mais impulsivos e descuidados, acreditando que nunca ninguém os denunciará.
O documentário em questão, evidencia este mesmo tipo de fenómenos, ao descrever os abusos (escondidos) de Nassar em consulta com os pais presentes, devolvendo à vítima a percepção e confusão emocional de que, se os pais estariam presentes, então, apesar de desconfortável, deveria ser um procedimento médico... (activação de nova dissociação e crença de que “eu estou errada”).
De facto, comportamentos como o envio de mensagens com conteúdos de assédio ou sexuais (acreditando que a vítima não os irá expor), a exibição de comportamentos verbais e não verbais que evidenciam um à vontade com conteúdos da vida privada do(a) atleta ou com o corpo da mesma de uma forma não natural (ex: os vídeos de Nassar), são factores que, muitas vezes, podem corroborar a presença de uma situação de abuso.

O Desporto Em Geral
Apesar dos reconhecidos benefícios do desporto podem igualmente ocorrer efeitos negativos na saúde, bem-estar e integridade dos atletas causados por “violência não acidental”, nomeadamente através de assédio e abuso – tal facto encontra-se amplamente comprovado na literatura científica da área.
Em Portugal, um estudo realizado em 2014 (Pinheiro et al., 2014) que recorreu a uma amostra de seis ginastas, concluiu que o abuso físico e psicológico de atletas jovens ocorre mesmo além dos limites do desporto profissional de elite e, portanto, um amplo espectro de atletas aprende a considerar essas formas de exploração e abuso como normais.
De igual forma, uma investigação realizada no Reino Unido com uma amostra representativa (Stafford & Alexander, 2015) concluiu que existia uma prevalência de 75% de abuso psicológico nos atletas participantes. Johansson e Lundqvist (2017), com uma amostra de atletas suecos, revelaram que estes reportaram a prevalência de 5.5% de comportamentos de assédio e abuso por parte do treinador, sendo estes comportamentos caracterizados como inapropriados ou contactos físicos ofensivos. Destes participantes, a minoria (13-19%) reportou dependência, influência substancial dos treinadores sobre a esfera pessoal de vida, contacto físico não-instrutório, comentários ou piadas sexuais e flirting.
De acordo com uma declaração do Comité Olímpico Internacional acerca do assédio e abuso no desporto (Mountjoy et al., 2016), a prevalência de assédio sexual no desporto varia entre os 19% e os 92%, variando entre 2% e 49% no que se refere ao abuso sexual. Ainda de acordo com o estudo deste organismo, os membros da comitiva em posições de poder e autoridade, são os comuns perpetradores de abuso, mas os pares são muito mais propensos a ser agressores sexuais do que os treinadores. Por último, refere que os homens são mais perpetradores de abuso sexual do que as mulheres, sendo que a prevalência de assédio verbal não-sexual e sexual varia entre os 18% e os 78%.
Uma recente meta-análise (Bjørnseth & Szabo, 2018) concluiu que a violência sexual contra crianças no desporto é predominante, sendo as meninas mais frequentemente vítimas do que os meninos, mas o género parece mediar a divulgação da ocorrência. Este estudo aponta também para que os grupos minoritários correm maior risco de violência sexual, sendo que os atletas em níveis mais altos de competição parecem ser mais vulneráveis ao aliciamento. De igual modo, e embora o treinador seja frequentemente visto como o autor, a investigação recente sugere que os pares podem preceder o treinador. A divulgação da ocorrência é um problema, devido a preocupações pessoais e interpessoais.
Fasting e colaboradores (2015), concluíram que as situações de assédio podem ser perpetradas por pares, treinadores e/ou outros elementos que enquadram a actividade dos atletas, logo que terão mais acesso aos mesmos (médicos, fisioterapeutas, preparadores físicos, massagistas, psicólogos e outros especialistas).
A prevalência de situações de abuso (verbal, físico e sexual) com crianças, adolescentes e mulheres é, ao que tudo indica, elevada e, não sendo específica do contexto desportivo, encontra nele igual dificuldade no que respeita a dar voz às vítimas.

Conclusão
No contexto desportivo, como em tantos outros contextos, a situação de abuso sexual (afinal, o tipo de abuso específico que o filme procura documentar) ocorre maioritariamente quando existe um claro desnível hierárquico (em prejuízo da vítima) e o perpetrador é, quase sempre, alguém com reconhecimento específico na sua área profissional (no clube, federação ou nacionalmente) ao qual alia características de personalidade de vincada manipulação, angariando o afecto positivo do contexto (logo, percepcionado pela vítima – e pelo meio, muitas vezes - com muito mais credibilidade do que a própria).
A vítima suporta mais um sacrifício, embrulhado como um doce, uma dor necessária ao processo para atingir os objectivos desportivos (“no pain no gain”).
As elevadas competências relacionais, permitem-lhe quase sempre “manobrar” o contexto de forma a que a sua reputação seja inatacável e, também frequentemente, denigre esse mesmo contexto e os restantes interlocutores por forma a isolar a potencial vítima de qualquer forma de apoio e/ou suporte.
Este quadro remete, quase sempre, a vítima para um clima de silencio e sensação de total impotência resultando, inevitavelmente, em estados de dissociação de consciência que, enquanto mecanismo de defesa, ajudam a suportar uma situação insuportável, criando muitas vezes percepções distorcidas de intenção (“é uma boa pessoa, não devo estar a interpretar bem...”) ou culpa (“se acontece só comigo, devo ser eu...”).
A incredulidade que, maioritariamente, as vítimas recolhem do meio quando “ousam ter voz” através de expressões como “Tens a certeza?” ou “Não deve ser bem assim.… ele é tão simpático e excelente profissional”, remete-as invariavelmente para novo silêncio e submissão.
Atento a este tipo de fenómenos o Comité Olímpico Internacional tem determinado um conjunto de políticas e procedimentos a serem instalados nos diferentes países, por forma a criar um ambiente seguro para os jovens (potenciais vítimas), através da criação de um conjunto de documentos orientadores (ver documentos anexos).
Mas estas, são as medidas institucionais.
Há todo um outro caminho a fazer, que passa não só por educar os jovens naqueles que são os seus direitos fundamentais enquanto pessoas e atletas, mas também a fazer o reconhecimento atempado das características de uma situação de potencial abuso (a que podem estar sujeitos e/ou que podem testemunhar) e a forma de a reportar aos seus “adultos de segurança” (os pais, por exemplo).
Importa também, dotar os diferentes especialistas que com estas populações trabalham, com competências de Escuta Activa - Saber (antes demais) Ouvir possíveis tentativas de denuncia que, tantas vezes, os jovens se atrapalham a comunicar. (por não confiarem no seu próprio julgamento)
E, saber ouvir, não é duvidar, instalar incerteza ou deixar que as nossas próprias percepções da pessoa interfiram no que estamos a ouvir (muitas vezes, desculpabilizando o comportamento da pessoa). Saber ouvir é só isso – Ouvir sem julgamento.
Importa também, favorecer a instalação de equipas multidisciplinares, com as adequadas competências emocionais, para que os jovens não se sintam “reféns” de um único “aparente” adulto saudável e, ainda, munir essa mesma equipa com o conhecimento necessário para que seja possível detectar um possível abusador antes mesmo do seu comportamento se materializar.
Por fim, é de extrema importância que o circuito da denuncia possa ser seguro e do conhecimento de todos, para que a vítima não sinta qualquer tipo de obstáculo ou insegurança quando toma a iniciativa de comunicar os comportamentos abusivos de que tem sido alvo – afinal, denunciar é um direito mas também um dever, nomeadamente, de quem tem conhecimento do que se possa estar a passar.
“The Athlete A” traz-nos a dura realidade da invisibilidade e do silêncio em que muitos jovens/pessoas se encontram encarcerados e da anestesia e alienação em que tantas outras (as ditas “testemunhas”) vivem e viverão enquanto não forem encontradas formas de responsabilização pelo seu silencio.
Não é um tema “dos outros” – dos Estados Unidos, da modalidade A ou B, das mulheres ou dos homens.
É nosso, está enraizado à nossa volta, muito provavelmente na nossa escola, na nossa universidade, no nosso clube ou empresa. É definitivamente nosso e só assim poderá ter “voz”."

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