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terça-feira, 30 de outubro de 2018

Sair a jogar: o princípio do fim da aleatoriedade dos duelos

"O treinador Blessing Lumueno escreve um texto que pretende pôr todos os adeptos e agentes do futebol a reflectir: "Como adepto do progresso e da democracia, caríssimos, penso que o pior amigo do avanço e da evolução é a inoperância e a reflexão inerte. Daí a falência das democracias actuais. É responsabilidade nossa, porque nos escondemos da nossa obrigação de analisar e criticar o conteúdo que nos é oferecido"

A nova ordem do futebol em Portugal define que há que separar quem analisa o jogo de quem faz uma crítica. Isto porque uma análise está despida de uma forma específica de ver o jogo e uma crítica tem na sua raiz um fundamento ideológico próprio. Essa separação quer fazer-nos pensar que todas as ideias para o jogo são válidas, e que quem gosta realmente de futebol consegue analisar, mas quem gosta do jogo que idealizou na sua cabeça só está capacitado para criticar. Isto é, quem elogia tudo e o seu contrário em função do sucesso circunstancial é que está mais próximo de amar o futebol e de o analisar de forma correta; os outros apenas gostam do jogo como o imaginam e, como tal, não podem dizer que analisam.
Esse pensamento tem três pressupostos profundamente paradoxais:
1. A ideia de que o futebol é um jogo democrático onde tudo pode ser considerado bom e que por força da maioria/do contexto todas as situações têm valor. É uma ideia falaciosa na medida em que o futebol é um jogo com regras e as regras constrangem. Não é um jogo onde vale tudo e esse constrangimento faz com que existam boas e más formas de o jogar. Por exemplo: nunca poderá ser considerado bem jogado alguém rematar contra a própria baliza. Isto porque o futebol tem uma regra que diz que vencerá o jogo quem marcar mais golos e rematando contra a própria baliza estamos a possibilitar ao adversário (sem que ele tenha feito nada por isso) a possibilidade de marcar um golo; 
2. A ideia que quem analisa é diferente de quem critica. Isto é, que quando alguém faz análise sai do seu próprio corpo, do seu rol de vivências, elimina as suas aprendizagens, transforma-se noutra pessoa e faz uma análise limpa sem qualquer influência do seu “eu” nos parâmetros e na forma como os aplica para avalizar ou reprovar as acções de jogo em causa. Pergunto-me: como é que é possível analisar ou criticar como se fôssemos outra pessoa, ou como se não fôssemos nós? Como é que se faz isso sem que se esteja a falar de uma análise com números de acções em grosso, sem qualquer margem para interpretação? É uma capacidade que, caso exista, gostaria de ter;
3. A ideia que a democracia em termos de aceitação do jogo é uma virtude, é de quem ama o jogo e é a característica essencial do analista; mas depois a separação e a exclusão do mundo da análise de quem faz uma análise com o critério mais apertado. Ora bem, ou se defende a democracia ao nível ideológico e não faz qualquer tipo de sentido separar em analistas e críticos, em quem ama o jogo e quem ama o jogo da sua cabeça, ou se defende que afinal há critérios que cada um utiliza para analisar baseados na sua experiência e diferente forma de olhar para o jogo; ou então mais vale dizer-se logo que há análises melhores e piores, análises simplistas e mais complexas, análises com reflexão crítica ou análises inertes, onde a democracia está na aceitação de todas sem que isso signifique que tenham o mesmo valor.
A saída de bola é um exemplo paradigmático das primeiras linhas deste texto.
Por força da nossa cultura pelo imediatismo, o elogio às equipas que tentam sair a jogar com passes curtos e de forma mais apoiada aparece sempre com a condição de ter jogadores com qualidade suficiente para fazê-lo. Por isso aceita-se que, com aqueles jogadores, por terem aquela qualidade, sair a jogar curto é o melhor início para o seu jogo. Para outras equipas, para outros jogadores, sair a jogar curto só se deve fazer se não existir pressão do adversário, para que não exista o risco de se perder a bola naquela zona.
Estes dois pressupostos partem do princípio que o risco de se perder a bola em zonas mais próximas da baliza é maior do que o risco de perder com a equipa toda organizada atrás da linha da bola. É um princípio certo, mas está incompleto. Falta-lhe informação complementar para que se possa fazer uma análise mais rica em termos de escolha entre uma e outra acção.
A saída de bola longa tem como grande vantagem em caso de perda a equipa estar toda mais ou menos organizada, e mais longe da baliza que defende. Se a equipa trabalhar para essas acções de jogo, em caso de perda, os jogadores estarão mais próximos uns dos outros e por isso com menos espaço para o adversário penetrar por entre as suas linhas. O risco nesse momento é menor, mas as consequências desse menor risco são a informação que falta e da qual normalmente não se faz uso. O passe longo é um passe de execução mais difícil que o passe curto, assim como também é de recepção mais difícil. E a dificuldade é ainda maior no caso de existirem adversários por perto. Ou seja, tudo isso resulta numa maior possibilidade de o adversário recuperar a bola.
E aqui voltamos às regras que constrangem o jogo: ganha quem marcar mais golos que o adversário. Isso significa que quanto mais vezes o adversário tiver a bola, mais possibilidades lhe estamos a oferecer para que nos marque golo. E mesmo em termos defensivos, uma vez que o jogo tem como regra apenas permitir uma bola em jogo, a melhor forma de impedir que o adversário nos marque é tendo a bola. A melhor forma de defender é esta: ter a bola o maior tempo possível, porque quando temos a bola eles não nos marcam. Portanto, é melhor ter bola do que não ter. Não há democracia na escolha do melhor, é apenas a lógica do jogo.
O passe longo tem também como condão resultar em duelos, e mesmo com jogadores fortes desse ponto de vista o grau de aleatoriedade é muito maior do que quando se executa um passe curto.
É sempre difícil de perceber quem vai ficar mais vezes com a bola nos duelos, e isso gera um pior controlo do rumo do jogo. Ora, estamos fechados na necessidade de se vencerem os duelos quando o objectivo deveria ser criar estratégias para os evitar. Quanto menos duelos tivermos que disputar maior será a nossa capacidade de prever para o jogo irá seguir, e com isso estamos a diminuir a aleatoriedade do jogo. Porque os duelos são maus para todos. São maus para quem ataca e são maus para quem defende. E para chegarmos aí basta olharmos para aspectos tão básicos do jogo quanto: é melhor para um jogador receber a bola sozinho ou com oposição? É melhor para quem ataca uma bola no ar que o faça sozinho ou em disputa com outro jogador? E quando falo em evitar duelos não estou a dizer que no caso de a situação aparecer se deva fugir deles, mas em como se criam situações no jogo para que os jogadores tenham mais tempo, mais espaço e menos oposição para decidir em função da situação. No fundo, falo em como se trabalha para se ter maior controlo sobre o rumo do jogo.
Quando se pensa no passe longo, também não se costuma dizer que são muito poucas as situações de jogo em que o passe longo é realmente vantajoso, e que a criação de uma saída para jogar longo (para quem tem a ideia de jogar curto) é perniciosa. Isto é, os jogadores encontram ali uma saída fácil para se livrarem da bola, para fugirem da possibilidade do erro, da responsabilidade, e para se entregarem também eles ao imediatismo do jogo sem pensar em mais nada. E isso normalmente leva a que eles optem mais pelas soluções mais longas, para eles mais seguras porque não os expõe no “foto finish” do que a opção por um maior controlo do passe curto. Veja-se, os jogadores do Manchester City, do Chelsea, do PSG, do Bétis, ou do Tottenham também cometem erros grosseiros. Não são poucos os erros que cometem, em posse, por jogo. E o número de erros comprometedores é grande. Mas, qual é a reacção dos treinadores ao erro? Incentivam ou reprimem? Mudam a ideia e o estilo de jogo? É essa convicção e essa força da ideia do treinador que dá ao jogador a segurança e a confiança para aceitar o risco, a responsabilidade, e para ficar mais confortável com um jogo que não está habituado a jogar.
Por tudo isso, a opção pelo passe curto, mesmo com pressão, tenderá a ser melhor do que a do passe longo. E os jogadores e treinadores que jogam desta forma estão cientes dos seus riscos, e são assumidos por eles. Já as equipas que jogam com o passe longo, e quem os aplaude, não costumam estar cientes dos seus pontos negativos. Quem joga em passe curto fá-lo em função de conquistar espaços, de conquistar mais tempo, de procurar colocar a bola em zonas de referência para definir o lance e de conseguir um maior controlo sobre o jogo. Joga-se curto para que o jogo proteja os jogadores, para que o jogo os sirva. Para que o jogo os beneficie, dando-lhes melhores condições para que possam executar. Os posicionamentos escolhidos são também para que no caso de perda se consiga rapidamente recuperar a bola, ou ganhar tempo para que se fechem os espaços vitais e cheguem mais jogadores para às zonas que são importantes.
Nem sempre se consegue, é certo. Mas o maior controlo do jogo garante, no mínimo, mais possibilidades de se criar situações para marcar e menos para o adversário, porque há uma melhor definição e previsão, uma melhor ligação, dos caminhos a seguir. Há menor margem de erro no passe, há menos duelos. Eu concordo com a ideia que cada treinador deve escolher aquilo que faz sentido para si, porque entre escolher o que sente como seu ou o que não faz sentido para ele a escolha é óbvia.
Sabemos que para converter os jogadores a darem tudo por ele, a darem o melhor deles, só se fazendo algo pelo qual se está profundamente apaixonado e determinado. Com as ideias limpas. Mas isso não faz com que tais ideias sejam avalizadas, ou que possam ser consideradas positivas para o jogo que é o futebol, para as regras do jogo de futebol. Damos por garantido que quando se diz que a equipa não tem qualidade para sair a jogar é porque o treinador quer ganhar, como se houvesse algum treinador a sair a jogar que jogue para perder.
E, se por acaso o treinador optar por tal, ao primeiro erro logo aparecemos a dizer “vês, é um risco que não compensa”. Como é que se percebe que uma equipa, que determinado grupo de jogadores, não tem condições para sair a jogar quando não são expostos constantemente a esse tipo de estímulos?
Mas o mérito ou demérito de uma ideia, o sucesso ou insucesso de uma forma de jogar não está num grande sucesso circunstancial nem num grande falhanço. É preciso tempo para se perceber ao longo do percurso se realmente há ou não condições para o fazer. É preciso que a regularidade venha e mostre de forma mais fidedigna o que é preciso melhorar, o que é preciso mudar, e o que se deve manter. Antes disso, antes dessa exposição consecutiva, é sempre demasiado cedo para se aceitar ou rejeitar uma ideia com o contexto como desculpa para não se fazer melhor.
Quando disse acima que se aceitava com relativa tranquilidade equipas que saiam a jogar com qualidade não referi que essa aceitação traz sempre, em surdina, um burburinho que sussurra o risco enorme que é sair a jogar e no momento em que se sofre um golo por isso logo se ergue a bandeira do imediatismo: “Eu bem disse que isto era um risco”. Porém, nunca ouvi nem em surdina uma voz a dizer que se sofreu um golo como consequência de se jogar em passe longo para o meio-campo do adversário. Afinal, os efeitos de uma perda de bola ali não são tão imediatos, e há por isso maior dificuldade em ligar-se a perda de bola, mesmo com a equipa organizada, ao golo que se sofre passados alguns momentos. Da mesma forma que todos falam da forma de vencer duelos e da importância que eles têm para o jogo, e ninguém debate sobre as formas de os evitar, sobre como ganhar mais controlo e diminuir a aleatoriedade do jogo.
Dizemos todos bem alto que o jogo mudou, que está mais evoluído, e que isso obriga a que se encontrem outro tipo de soluções para superar os desafios; mas depois aplaudimos de pé quem continua a formar equipas como no tempo dos Flinstones. É, no fundo, o mesmo que elogiar a evolução tecnológica e gabar quem ainda constrói carros à carvão, ou até defender a democracia mas aplaudir os méritos da ditadura. A história está lá para ser admirada pela forma como se foi desenvolvendo em função da informação de que se dispunha até então, e é uma ferramenta fantástica para nos guiar a não cometer os erros que lá vão. Porque no futebol, como na vida, há pontos positivos e negativos a retirar de tudo. Mas a evolução deu-se sempre que se percebeu o que é que tem mais pontos positivos do que negativos, e se escolheu trilhar esses caminhos fundamentalmente bons.
Como adepto do progresso e da democracia, caríssimos, penso que o pior amigo do avanço e da evolução é a inoperância e a reflexão inerte. Daí a falência das democracias actuais. É responsabilidade nossa, porque nos escondemos da nossa obrigação de analisar e criticar o conteúdo que nos é oferecido. Falta-nos análise crítica por termos ficado cómodos com o que temos e com as respostas que nos dão. Deixo então, democraticamente, que seja cada um de vós a decidir se este texto é do campo da análise e do amor pelo jogo, ou se pertence à crítica que existe apenas e só na minha cabeça."

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