"Com Benfica campeão europeu, não viu Ângelo à beira da morte; O chapéu queimado e o medo dos 'pitons' e da relva
1. Raúl, o pai, fora de Lisboa para Luanda - e, no boxe, notoriedade por lá ganhara: «Batia-se bem, até com estrangeiros». Morreu cedo, porém - por uma crueldade do destino: na festa de anos da fábrica de açúcar onde trabalhava fez-se competição de jogo da corda - e excedendo-se mais do que devia foi parar ao hospital. Dias depois, hemorragia interna que sofrera na luta matou-o. Zeca, o filho que lhe nascera em Luanda, ainda não tinha quatro anos - e para o criar (a ele e aos três irmãos) a mãe passou a lavar roupa que, arranjava a rol nos navios que ancoravam no Lobito. (Disso fez negócio, pelo caminho abriu casa que recebia hóspedes, servia refeições).
2. Na escola depressa se percebeu no Zeca o tino para os estudos - e o jeito com que ele, de bola no pé, deixava o recreio em frenesim. Quem o viesse nos seus malabarismos (no recreio ou no areal da praia...) corria a desafiá-lo para «coisa mais séria» - e ele não ia, a razão revelou-a assim: «A minha mãe achava-me fraco para tais andanças - não queria que a má sorte voltasse a atacar-nos, era o que mais temia. Por isso, só aos 15 anos me deixou calçar pela primeira vez botas de futebol».
3. Pelos 15 anos tivera de atirar-se ao trabalho para dar ajuda à casa. Como dactilógrafo se empregou na Robson Hudson, empresa de vendas da Ford - e foi na equipa da firma que começou a jogar. Mas não só: «O meu chefe era vice-presidente do Lusitano Sports e passou a exigir-me que jogasse pelo seu clube também. Às vezes, fazia-me de cábula - e dos 16 jogos do campeonato não alinhava em mais de seis. Às segundas-feiras, o chefe ralhava-me, eu voltava a faltar...»
4. O destino não deixou de atacar, terrível, a família: meningite matou-lhe Aníbal, o irmão: «Jogava muito melhor do que eu». A caminho dos 17 anos, morreu-lhe a mãe: «de coração cansado». Tinha dois ídolos: Rogério e Julinho, após vitória do Benfica na Taça Latina, jornal angolano publicou poster com a equipa - ele correu a colá-lo na parede do seu quarto. Achou que não bastava, comprou outro - e pendurou-o no escritório onde trabalhava. Dias depois, digressão de mês e meio que o Benfica fez por Angola, Moçambique, Transcaal e Congo Belga, passou pelo Lobito - e mudou-lhe o destino...
5. Com o Zeca primeiro a avançado centro e depois a extremo direito, a selecção do Lobito ganhou ao Benfica da Taça Latina por 3-1, com dois golos dele. O primeiro foi deslumbre: «Fugi ao Jacinto, recebi a bola pelo ar, parei-a com o peito - e zás: o Contreiras nada pôde fazer». No fim do desafio, Ted Smith pediu-lhe que passasse essa noite pelo hotel do Benfica, passou...
6. O FC Porto convidara-o a teste na Constituição - e já nem lhe respondeu: Para que ficasse vincado que se tornara ali jogador do Benfica - Smith deu-lhe o seu próprio casaco (por ser fracalhote ficou a nadar dentro dele - assim segui o caminho do futuro...)
7. O Benfica regressou de África, ele veio também. Mal chegou a Lisboa, os companheiros notaram-lhe gosto que criara em Angola: ir para os jogos, de chapéu de aba larga - na tradicional partida de caloiro, queimaram-no. Foi antes do jogo com o Sporting que abriu o campeonato de 1950/51 - nessa tarde Smith ainda o deixou a suplente (e o Benfica perdeu na Luz por 3-1).
8. Oito dias após, coube ao Benfica o Atlético - foi a sua estreia: «Quando me deram as botas com pitons foi uma surpresa. Nunca tinha visto tal. Só com travessas. Mais surpreendente foi jogar na relva. Senti-me desorientado, tive vontade de chorar e pedir que me mandassem de volta ao Lobito».
9. Oito dias após o 2-2 na Tapadinha, abriu-se-lhe, enfim, a eternidade aos pés: nos 8-2 ao SC Braga marcou quatro golos - e, nessa época, conquistou o seu primeiro título: a Taça à Académica (na vitória por 5-1 em que José Maria Antunes pôs, ao intervalo, os seus pupilos a receberem oxigénio - e o truque de nada lhe serviu...)
10. (O resto é o que se sabe...) Com ele a capitão, o Benfica ganhou duas Taças dos Campeões. A segunda não a pôde receber porque com o campo invadido por adeptos em frenesim, o presidente da UEFA atirou-a, de escantilhão, para as mãos de Costa Pereira (Seguiu a festa - e virou drama para Ângelo: nas escadas de acesso aos vestiários foi derrubado por eufóricos benfiquistas. Pisado, desmaiou. Polícia apercebeu-se dele inerte na vala, retirou-o de lá, embrulhou-o num cobertor e abriu à cacetada o caminho para o balneário)."
António Simões, in A Bola
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