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quinta-feira, 18 de maio de 2017

No coração vermelho do Inferno do Marquês

"É a crónica de uma festa anunciada. Um gajo do Vitória de Setúbal, a ver o seu benfiquismo florir em plena febre primaveril do Tetra. Cheiros, outfits, futurologia pintada a encarnado vivo e umas imagens da celebração.
Saí de casa ao intervalo do jogo, o que até podia ser irresponsável face a todas as reviravoltas possíveis num jogo de futebol, só que há resultados que parecem indestrutíveis. Era o caso deste. O Benfica ia ser campeão, estava mais que visto. Não tinha dado grandes hipóteses ao adversário de adiar a festa. Eu vestia à civil, não tenho camisola do Benfica, nem costumo usar vermelho. Ponderava se ia dar muito nas vistas lá no Marquês, se me iam barrar a entrada, ou se me iam confundir com um espião do Bruno de Carvalho.
Assim que saí do meu prédio encontrei o vizinho de baixo, um tipo simpático que veste fato de segunda a sexta, tronco nu ao fim-de-semana e, pelos vistos, camisola do Benfica em dias como este. Disse-me logo: "Vai já para o Marquês? É que já cá canta!". Concordei, até gritei Ben-fi-ca! para entrar no mood, mas quando já descia a rua, chamou-me com um assobio e franziu o nariz ao mesmo tempo que me perguntou: "Olhe lá, mas o meu amigo não é do Vitória de Setúbal?".
Sim, sou. Não estou habituado a celebrar campeonatos nacionais. Também não sou louco pelo glorioso (costumo dizer que gosto de viver em Lisboa, tem é muitos benfiquistas), mas a grande verdade é que adorei os jogos que vi no Estádio da Luz. Ainda assim, acredito que não ser portista ou sportinguista me podia ajudar a conseguir este trabalho de campo. Quando me mentalizei de que iria ao Marquês assistir à festa, tinha planos de fazer um levamento sociológico deste evento – atraía-me o quanto era mediático, a sua má-fama.
No café do bairro havia um clima de felicidade geral, regada a imperiais. Uma carrinha Renault Traffic transmitia o relato para quatro betos já equipados.
Para alguém como eu, que gosta mais de literatura do que de futebol, impressiona a importância do desporto-rei no nosso dia-a-dia, na nossa vida em sociedade. Dou de caras com os comentadores (prefiro o termo paineleiros) em qualquer um dos canais, ouço os dilemas da Liga Record através dos meus colegas de trabalho, acredito que estejamos viciados em apostas desportivas.
Segui pelo Rato, reparando em quem fazia o mesmo caminho que eu. Vestidos a rigor, pontilhavam a cidade de encarnado. Carros passavam a buzinar, cachecóis sacudios à janela. Quem ia a pé respondia à chamada, gritavam Benfica, campeões e glorioso S.L.B. Já devia estar na Brancaamp quando dei por dois turistas que pareciam congelar face a toda aquela actividade. Não resisti a perguntar-lhes se também iam para o Marquês.
"É o Benfica, certo?" – perguntou-me o pensionista, em francês. Respondi-lhe em português que sim. Apontei para o Marquês onde tocava We Are The Champions. Ele continuou com o mesmo ar de enjoado com que estava, a sua senhora suspirou. Perguntou-me qualquer coisa que não percebi de todo e tive de lhe pedir para o repetir em inglês. Queria saber qual seria a duração da festa. Disse-lhe que ia durar toda a noite. Ficou a olhar para mim como se a culpa fosse minha até me ter ido embora. 
Quando virei para a enorme fila de polícias onde fui revistado, não consegui evitar a ideia de que estes não são tempos pós-terroristas, são os tempos do terrorismo. Barricadas interrompiam algumas das principais artérias da cidade, faziam-se revistas demoradas a cada um destes festivaleiros benfiquistas. Para além de evitar atentados, também podiam estar a evitar as oito detenções que aconteceram nas celebrações do título passado.
Ainda mais absurdo que isto, foi a simpatia das forças policiais. Eu sou do tempo dos ACAB's e das cargas policiais à porta da Assembleia. Calhou-me um polícia sorridente, mas não era o único. Alguns deles até tiravam fotografias ao Marquês, cada vez mais cheio. Apercebi-me que deviam ser polícias e benfiquistas, tal como há padeiros benfiquistas, economistas benfiquistas, um país inteiro de adeptos do Benfica.
Quando cheguei à rotunda do Marquês do Pombal, fui confrontado com a conclusão de que este é um evento popularucho. Desculpem, é o que é. Não sei porque é que apresentei isto como uma grande conclusão - quem ainda não tem a certeza, já deve suspeitar.
Estes são alguns dos detalhes do quadro geral:
Vou começar pelas fragrâncias. Há benfiquistas que cheiram a transpiração e há benfiquistas que cheiram a 1 Million do Paco Rabanne. É natural, são muitos, uma nação é feita de pessoas muito diferentes. Um dos primeiros colocou o braço sobre mim para cantarmos We Are The Champions numa das dezenas de vezes que passou. É claro que não o ia deixar mal, eu próprio me sentia algo contagiado por tanto benfiquismo. Ainda assim, tentei despachá-lo o mais rápido possível. O cheiro a pessoas, no entanto, não era o mais intenso no Marquês, predominavam as notas de cerveja entornada, os cigarros e os cigarros de haxixe de qualidade duvidosa.
Também havia uma amplitude estética considerável: vi benfiquistas vestidos à benfica dos pés à cabeça e vi benfiquistas vestidos como se fossem sair à noite. A verdade é que se estiverem à procura de uma alma gémea obrigatoriamente benfiquista, é muito provável que a encontrem aqui.
A música não podia ser mais ecléctica. Ouvi temas que iam da pop mais rádio (Calvin Harris) ao hit de bairro (DJ Télio), passando pelo reggaeton (inevitável "Bailando", incontornável "Despacito"), até ao hip-hop ("All I Do Is Win No Matter What" – os benfiquistas que o digam). O próprio espectáculo de variedades que se sucedeu incluía alguns grandes nomes da música popular portuguesa, ainda melhor se fossem afectos ao Benfica, como Carlão ou os AmorElectro. Houve canções que era obrigatório cantar em uníssono, o que não só foi arrepiante, como também belo.
A verdade é que os benfiquistas costumam ser vocais acerca das suas vitórias, mas no Inferno do Marquês são ensurdecedores. Achei que ia ser aterrador, mas foi um espectáculo digno de se ver.
No meio de tanta gente é impossível não reparar em toda a chungaria que dizem estar sempre presente no Marquês, mas estaria a ser injusto se não dissesse que eram largamente ultrapassados por famílias "normais", famílias felizes. Pais e filhos, mães, avós, cães, uma grande celebração familiar. O próprio Luisão o disse. "O Benfica é família, isso não é cliché". Senti uma profunda alegria quando reparei nisso. Pensei que fosse um local mais propício a assaltos do que a celebrações familiares. 
Afinal de contas, o que somos nós senão portugueses, um povo de amores e desamores, paixões e desilusões, vitórias e derrotas; para muitos de nós há uma certeza épica, chama-se Benfica e é uma águia que sobrevoa as nossas vidas, uma certeza que se mantém sobre nós, enquanto a vida é feita de altos e baixos, de épocas de melancolia – é esta paixão encarnada que aqui se ouvia, se via, se celebrava de braços no ar. Há anos melhores, há anos piores e, pela primeira vez na história, há quatro anos seguidos a vencer o campeonato. Até parece que é condenável criticar um feito destes, uma massa de gente tão radiante.
Pelos comportamentos a que assistia, também parecia ser um bom sítio para beber copos.
Fui interpelado por uma família estrangeira (pai, mãe e três filhos) que queria saber onde se comprava cerveja. Eram britânicos. Perguntei-lhes: "Vieram celebrar o título do Benfica" e a resposta foi "of course" – disse-me logo ele – "estamos de férias em Lisboa, não podemos perder a vitória do grande Benfica!". Fui apanhado de surpresa, nem me estava a lembrar de que, para além da febre nacional, há esta ideia de que o Benfica é um símbolo de Portugal pelo Mundo fora.
Ainda assim, comecei a sentir-me aborrecido, o autocarro ainda estava a caminho e eu algo perdido ali no meio. Uma senhora simpática, que me devia estar a achar tristonho, perguntou-me: "Já sabe do Festival da Canção?". Disse-lhe que não sabia e ela disse-me qualquer coisa como "o Salvador está em primeiro!", tinha a filha, sportinguista, a mandar-lhe os resultados por mensagem. Não demorou muito até que esse fosse o assunto por entre toda a multidão. Sim, entretanto já éramos uma multidão – o espaço reduzia a olhos vistos, cotovelos perdiam espaço de manobra. Adeptos não paravam de chegar.
Depois de algum tempo no meio das famílias "normais" (algumas zarparam antes da equipa chegar) a olhar para os adeptos mais bizarros (que também são os mais divertidos), lá chegaram os jogadores. Subiram ao palco a pé e eu comecei a furar o mais possível até chegar à fila da frente, cruzando espessas nuvens de ganza e do fumo vermelho que se associa a estes dias de Marquês.
Estes adeptos, que em qualquer lugar do Mundo diriam que são do Benfica, aqui mostravam o quanto eram do Benfica. Senti que se a estátua não tivesse sido barricada, correríamos todos a trepá-la também. Ouvi os discursos de vários jogadores, aceitei uma das cervejas que o Cervi distribuía e fiquei fascinado com algo que o Rui Vitória disse a todos: "Queremos prolongar este momento". 
Como? É que eu só tinha visto uma coisa parecida e foi porque ganhámos um Euro. Isto não pode ser algo que acontece todos os dias. É a espera que cria este momento. São quase 40 jogos, 40 períodos de 90 minutos com a águia ao peito. Há paixões e ódios ao longo de uma época. Há grandes surpresas e profundas desilusões. Sim, eu sei que ele estava a falar de um possível penta-campeonato, mas esta foi uma catarse de cor e som, uma das maiores demonstrações de alegria colectiva a que alguma vez assisti.
Até porque julgava que ia assistir a um grande peixeirada, pancadaria geral e acabei mais um benfiquista, cheio de vontade de comprar um daqueles fatos de treino à tropa do bairro.
E foi aí que aconteceu, a música do Salvador Sobral começou a tocar no Marquês. Grande parte do público já a sabia de cor. Sei que já devem estar fartos de piadas com o mantra dos três éffes, mas tive de pensar nisso quando o Papa estava em Fátima, Portugal vencia o Festival Eurovisão da Canção e eu estava a celebrar o campeonato do Benfica.
Quando me vim embora, tive a certeza de que para o ano lá estaríamos todos outra vez. Podia ser futurologia despassarada, ou uma demonstração precoce do meu novo benfiquismo. A verdade é que, se não há duas sem três, também não deve haver quatro sem cinco."

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