"Morreu primeiro como jogador, vítima de doença estranha e implacável, e depois como homem, na flor da idade... Foi, dizem, um talento único.
NÃO é «A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água», de Jorge Amado, mas é também a história de uma morte seguida de outra morte. Estas são as mortes de Álvaro Gaspar, uma das figuras mais marcantes dos primórdios da história do Benfica.
Nasceu no dia 10 de Maio de 1889. Morreu a 3 de Setembro de 1915. Essa foi a sua morte de papel passado. De atestado de óbito.
Mas já tinha morrido antes. Ou, vamos lá, tinha 'morrido', assim com aspas.
A morte dolorosa de não poder voltar a jogar futebol. No dia 15 de Fevereiro de 1914. Menos de três anos após a sua estria, em Novembro de 1911.
Que aconteceu a um rapaz tão jovem, conhecido pelo seu azougue? Ninguém parece saber ao certo. Foi ficando fraco, doente. Sentava-se na bancada contemplando entristecido o esforço dos seus companheiros. Nada conseguiu contra a maleita.
Escreveu, quem o viu jogar, que era um fenómeno. Alegrava o povo com a sua rapidez e a sua técnica apurada, algo raro para essa época de futebol-de-baliza-às-costas que nem o peso das botas ajudava o que quer que fosse.
Álvaro Gaspar, Paiva Simões, Homem de Figueiredo, Henrique Costa, Cosme Damião, Artur José Pereira: nomes que já não se usam sobre os relvados. A ditadura da rádio encurtou-os.
O Benfica ganhava hábitos de Campeão. Na época de 1913/14 ganhou os Campeonatos das quatro categorias. Chamavam-lhe o 'Chacha'. Ainda não conseguiu perceber porquê. Mas não desisto.
Aquela tarde inesquecível!
O 'Chacha' faz parte da história, mas houve sobretudo uma tarde que ficou para sempre marcada na história.
Dia 27 de Março de 1913: o Benfica recebia o New Crusaders, de Inglaterra. Acredito que, hoje em dia, o nome New Crusaders diga zero a quem faz o favor de me ler. Não lamente a ignorância. Nunca o New Crusaders foi uma potência do Futebol inglês. Mas, ao tempo, distinguia-se (e bem!) o Futebol profissional do amador, e enquanto em Portugal se jogava dentro do mais puro amadorismo, nas ilhas britânicas já havia profissionalismo à séria. Convenhamos: jogar contra as poderosas equipas profissionais inglesas estava fora de questão. Ninguém estava para passar vergonhas nem os ingleses, com o seu complexo de superioridade, se predispunham a defrontar pobres latinos amadores dos confins da Europa. Não se esqueçam que esse complexo de superioridade fez com que se recusassem a participar no Campeonato do Mundo até 1950...
Vinha então o New Crusaders, considerada o mais forte conjunto amador da Velha Albion, então mais pérfida do que nunca.
Pela primeira vez o Benfica está frente a frente com os mestres ingleses, criadores do jogo, considerados de um mundo à parte em relação aos clubes do continente.
A imprensa rejubila: «O New Crusaders FC vai mostrar, pela primeira vez, ao povo lisboeta, o jogo de Futebol como ele se pratica nos clubes ingleses de primeira categoria. As suas duas últimas 'tournées' ao continente foram um verdadeiro triunfo, pois nunca conheceram a derrota. Em 1912, o clube inglês venceu o campeão de França, por 2-0, e o Barcelona, por 2-0 e 3-1». O Benfica perde, como não podia deixar de ser. Duas derrotas aceitáveis, 0-6 e 0-3 (sobretudo se pensarmos que o Sporting perdeu, por 0-12).
Melhoras significativas no segundo encontro. 'Os Sports Ilustrados' gritavam em manchete: «A formidável equipa inglesa esmagou literalmente os nossos 'teams'». No 'Vida Desportiva', pela pena de João Veloso, o Benfica recebe um elogio de truz pela sua segunda exibição face aos ingleses: «O Benfica teve a glória de, jogando com um 'team' de tal classe e respeito, ter sido vencido apenas, por 0-3. Foi, nessa tarde, grande e monumental, para o nosso orgulho de jogadores e portugueses que assistimos ao espectáculo, nunca presenciado, de vermos ao colo, em gesto apoteótico, pelos jogadores ingleses, até ao balneário, o imortal jogador de bola que se chamou Álvaro Gaspar, o célebre 'Chacha'. A multidão, emocionada, delirava de pasmo. Este facto há-de ficar na história do Futebol português como um dos mais memoráveis». A exibição de Álvaro Gaspar foi, segundo rezam as crónicas, formidável.
Impressionados com a técnica do franzino benfiquista, os adversários rodearam-no e felicitaram-no no final do encontro. Depois, como nas touradas, levaram-no em ombros. Era assim o 'fair-play'. Era assim Álvaro Gaspar.
Dois anos depois estava morto."
Afonso de Melo, in O Benfica
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