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segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

5 Guardiões da Luz


"Numa fase em que o nome de Vlachodimos divide opiniões no seio do SL Benfica – apesar dos ratings portentosos que colecciona na Liga dos Campeões – é chegada a altura de fazermos exercício de apanhado geral em relação a um cargo de tamanha importância na equipa encarnada. Nomes como Oblak, Júlio César ou Éderson ficam excluídos automaticamente pela proximidade temporal e pela facilidade em nos lembrarmos dos seus feitos – o que queremos é relembrar os maiores que protegeram a baliza da nossa Luz e, na mesma proporção dos letais avançados, ajudaram o SL Benfica a ser o clube de dimensão mundial que é hoje.
Posição sempre dificil pelo peso mental, a responsabilidade de ser guarda-redes acarreta riscos que filtram grande parte dos candidatos logo à partida – e mesmo de elite, é fácil a um keeper sofrer escárnio de milhões de adeptos e simpatizantes: é ingrata a missão, que um erro monumental apaga milhões de defesas bem conseguidas. Não é mesmo para todos, e decidimos eleger cinco nomes que criaram rico legado nas balizas da Luz. Cinco nomes que souberam conjugar os altos e baixos mais inesquecíveis da História do clube e que por isso mesmo ainda hoje vivem no imaginário do Terceiro Anel.

José Bastos
12 épocas, 197 jogos
3 Campeonatos, 5 Taças de Portugal, 1 Taça Latina

Senhor José Bastos pode ser considerado, sem grande temor, o primeiro grande keeper benfiquista, o primeiro de nível internacional – apesar de nunca ter chegado à Selecção, meio que incompreensivelmente. Atentando à forma como se impõe nos séniores do Benfica e como marca toda a década, é realmente complicado encontrar explicação para não ter atingido essa valorização completa em solo nacional. Sobretudo se percebermos a meteórica ascensão até titular dos séniores: estreia-se na recta final de 1949/50, com 21 anos, quando tinha iniciado a época como titular das… reservas: e termina essa época como campeão latino, participando nos três jogos que o Benfica fez para se sagrar campeão – incluindo os abomináveis 143 minutos da final. Bastos marca uma geração e é um dos ‘padrinhos’ da seguinte, a dos campeões europeus, responsável foi sempre por uma postura correcta e paternal com os mais novos, primando por impecável índole na grande confronto que travou com Costa Pereira pela titularidade a partir da chegada deste, em 1954. Partilham essa temporada, dividindo minutos, Bastos fica para segundo plano – também por conta duma lesão – em 55/56, e volta à carga no biénio 56/58. Ingloriamente para ele, o ano em que chega Béla Guttmann e o decreta como “dispensável” – para permitir tranquilidade total ao jovem Costa Pereira. José não se ofende, até porque a história entre atleta e treinador não fica por aqui: conta-se que numa das vezes que volta à Luz com a nova camisola, Béla Guttmann se deixa enlouquecer pela exibição e pelo estilo sóbrio sob os postes – chegando, de forma caricata, a perguntar a um dos dirigentes como se chamava aquele keeper! 
Para se provar o amor de Bastos ao Benfica, atente-se que a sua transferência para o Atlético não o impediu de continuar a ajudar o clube: por exemplo, a sua saída possibilita a chegada de Germano de Figueiredo à Luz, o esteio que faltava aos futuros campeões europeus. E possibilitou estar ainda mais presente na História do clube, já que foi a Bastos que Eusébio da Silva Ferreira assinou os primeiros golos de águia ao peito – aquele hattrick num jogo de reservas frente, lá está, ao Atlético na Luz (4-2), na véspera da final de Berna.

Costa Pereira
14 épocas, 366 jogos
7 Campeonatos, 5 Taças de Portugal, 2 Taças dos Clubes Campeões Europeus

Tão constrangedor foi o seu derradeiro momento como completo titular benfiquista e tanto se escreveu sobre o assunto que aqui se tocarão noutras fases da vida de Alberto Costa Pereira, figura tão singular quanto polémica pelas qualidades invulgares na guarda das redes. Quando aterra em Lisboa vindo de Milão, aconchegado numa cadeira de rodas para lhe reconfortar a magoada autoestima, e de óculos escuros no semblante que tentavam a todo o custo afundar a vergonha perante milhares de benfiquistas, é todo um contrassenso em relação à imagem que sempre cultivou, fascinando e apaixonando adeptos por Portugal fora: a altura e postura de estrela de cinema sustentava-a com um atleticismo que lhe permitiu, na juventude, tentar a vela, o futebol, o atletismo e a … caça, na sua Nampula natal, a norte da Lourenço Marques – hoje Maputo. A esta condição acrescia o desejo de erudição, a tentação da cultura, o apreço pela curiosidade que o fizeram alguém diferenciado num balneário cheio de campeões europeus – para ele, então, não era frete nenhum se assumir como líder e negociar, por ele e pelos colegas, prémios e ordenados com os dirigentes. Foi uma das figuras mais mediáticas daquela famosíssima equipa, uma verdadeira imagem de culto, ídolo da meninagem e alvo dos olhares femininos.
Basquetebolista, depois definitivamente futebolista. A capacidade demonstrada no primeiro obrigou-o à baliza, ainda que o sonho fosse ser ponta-de-lança. Ninguém sabe que voltas daria o destino se assim tivesse continuado, mas como guarda-redes foi inimitável e muito se distanciou do estilo arcaico, mas seguríssimo de Bastos – e foi essa dualidade que marcou o triénio 1954-57 por entre a massa adepta, que se dividiam nas acérrimas opiniões entre um e outro. Não era necessário tanto desaguisado, a sucessão foi natural: e a Bastos campeão latino sucedia o keeper moderno campeão europeu, elegante como nenhum outro havia sido e com a propensão para as grandes noites – como Berna, naquela final dificil com o Barcelona, ou Amesterdão, onde Puskas só não fez mais estragos na primeira parte por culpa de Alberto, ou contra o Ujpest, ou no jogo de Londres contra o Tottenham – no frio inglês, o Benfica adiantou-se no marcador, mas levou remontada. Que só não se agudizou, lá está, pela estaleca de Costa Pereira.
Depois daquela noite de 1965, não mais foi o mesmo. Despede-se da Luz e do Benfica no princípio de 1967-68, numa festa onde o Real Madrid marcou presença e empatou (a duas bolas). Tentou ser treinador, na CUF, mas foi novamente infeliz.
Até ao final da vida, trabalhou no Instituto Nacional de Estatística.

José Henrique
13 épocas, 299 jogos
8 Campeonatos, 3 Taças de Portugal

Zé Gato, alcunha já ganha dos tempos de… Atlético (sim, onde terminou Bastos, daquelas coincidências) onde se evidenciou pelo estilo felino de evitar as finalizações certeiras, foi um dos históricos guarda-redes do Benfica e da Selecção e a sua fama só não alcança ímpeto nacional pela concorrência que teve de suportar durante a carreira com um monstro como Vítor Damas, a lenda leonina que granjeou mais fama mas talvez menos proveito – que José Henrique, aos títulos conquistados pelo clube, esteve presente como titular no único grande feito daquela excepcional geração de futebolistas portugueses que teimou em falhar todos os objectivos a que se propôs. Na única grande montra que conseguiram, a Minicopa brasileira de 1972 (chegou-se à final contra os anfitriões e só se perdeu porque Jairzinho desempatou perto do fim) , José Henrique foi principal opção e esteve seguríssimo na defesa do ‘gol’, saindo de racruz com estatuto reforçado enquanto ‘goleirão’. Isto numa fase em que o Benfica de Jimmy Hagan dominava em solo interno, o que possibilitou a José Henrique remeter Damas para o banco numa sequência de 14 jogos seguidos, ali entre 1971 e 73.
Aos oito campeonatos conseguidos em onze anos – a hegemonia benfiquista foi suportada pela eficácia defensiva para a qual contribuia largamente José Henrique – junta-se-lhe uma final da Liga dos Campeões, a de 68 perdida para o United de Charlton e Best. Já era Zé Gato que assumia titularidade, precocemente.
Definitivamente ultrapassado por Bento em ’76 – apesar de ficar mais duas temporadas na Luz – José Henrique teve a dignidade de passar o testemunho corajosamente, nunca revelando qualquer má intenção para com o colega. Pelo contrário, construíram relação de grande amizade, um dos factores que levou José Henrique a voltar ao Benfica depois de arrumar as luvas. Ao futebol de formação se dedicou, no treino de guarda-redes se focou: e o produto mais famoso saído das suas mãos foi Moreira, o que atesta bem a qualidade do treino.
Como ponto final, outro ponto de ligação a Bastos, provando a teoria duma linha sucessória quase propositadamente pensada: foi Zé Henrique que destronou o recorde de invencibilidade fixado pelo primeiro – seis jogos sem sofrer golos -, chegando aos oito em 1971-72.

Manuel Bento
18 Temporadas, 466 jogos
8 Campeonatos, 6 Taças de Portugal, 2 Supertaças

É tentador repetir a velha laracha de ter tão pouco corpo para tanta alma. Manuel Galrinho Bento, além dum enorme guarda-redes que estropiou muitas das velhas concepções em relação à baliza – tinha 174 centímetros de altura, saía da baliza sem qualquer complexo, gostava de se aventurar com a bola no pé – era um verdadeiro homem da luta: o bigode era a cereja no topo daquele bolo de coragem, justiça, e sangue revolucionário. Um exemplo: quando adolescente, o Sporting ouviu falar dele e foi buscá-lo à Golegã natal, oferecendo-lhe estadia de três meses no Lar do Jogador. Por lá se treinou, por lá convenceu, mas os dirigentes, num vaipe de preguiça ou desleixo, mandaram-no ir ele, sozinho, à sua própria cidade pedir a carta de desobrigação. Que ofensa aquela personalidade forte, senhores! Ouviu, arrumou as malinhas, apanhou a camioneta e voltou ao clube de origem, jurando nunca mais considerar qualquer possibilidade leonina.
Há muitos mais. Este foi a primeira grande demonstração da gigantesca alma de Bento. Da Golegã vai para o Barreirense, leva os da margem Sul a um histórico 4º lugar em 1969/70, que possibilitou inédita vaga na Taça Uefa. A meio dessa época (em Dezembro), há a despedida de Mário Coluna – em plena Luz, Benfica contra Resto do Mundo, que estava combinado alinharem com o lendário Yashin na baliza. A Aranha-Negra, porém, impossibilitado ficou de ir à última da hora. Solução? Digam ao Bento para passar a 25 de Abril. Sem complexos o fez, sem complexos se apresentou com a mesma indumentária de Yashin – todo de preto – só para apicaçar a coisa. Assinou aí, depois duma vistosa exibição, virtualmente, o seu contrato com o Benfica, consumado definitivamente em 1972.
Até 1976 deu honras da casa a José Henrique, numa competitividade sempre saudável: porque era justo Manuel Bento, e homem que sabia esperar pela sua oportunidade, espera paciente ao ritmo de muito treino e muito trabalho. A partir de 1976 é Benfica e Selecção por uma década, sempre líder dos dois conjuntos. A fibra que o fazia levantar-se às 4 da manhã para ajudar a familia no negócio de peixe e depois, às 8, começar a recolher a malta daquela zona – Diamantino, Carlos Manuel, Chalana, Frederico – na mesma Ford Transit, que fazia chegar intacta ao Estádio da Luz, era a fibra que o fazia opor-se aos regimes autoritários ainda instalados no sistema nacional – réstias do pré-74. «O sr. Resende ainda não percebeu que o tempo da ditadura acabou» foi assim que reagiu às acusações de Silva Resende, presidente da Federação, aos jogadores em Saltillo. Tornou-se o porta-voz de todo um conjunto de jogadores já de si fragmentado pelas animosidades entre Benfica e FC Porto. Quando Veloso é impedido de ser seleccionado para esse México 86, por estranhos resultados em testagem antidoping, foi Bento que veio a terreiro defender o colega. Como foi Bento a denunciar a falta de profissionalismo de Pal Csernai, treinador húngaro que não deixou saudades na Luz. «Não foi Csernai quem fez a linha para a final, por isso ganhámos. Carlos Manuel e Pietra é que lhe abriram os olhos» disse Bento sobre a final da Taça 84-85, na qual o Benfica venceu o FC Porto como salvação duma época tristonha.
E como todos os grandes heróis doutras mitologias, justificou bem a glória com boas doses de fracassos épicos, com muitas peripécias a saltear os falhanços inadmissiveis para alguém com o seu talento. Para chegar ao Euro84, Portugal teve que eliminar do Grupo 2 de qualificação uma estrondosa União Soviética. No jogo de Moscovo, Bento encaixou cinco golos: que o próprio disse serem poucos dada a fome que a equipa passou em solo russo. «Não havia líquidos, não havia leite, não havia fruta» supostamente, no hotel do estágio. Conta-se que os comunistas do Barreiro, ouvindo-lhe a má propaganda, lhe foram pôr fardos de palha à porta de casa – anedota que Bento disfarçou, argumentando que eram acessórios para as montras das suas lojas de roupa…
Fica mais uma, para exaltar o carácter do gigantesco Galrinho Bento, daquelas que valem por mil defesas e mil títulos, que a qualidade humana ultrapassa qualquer estatística ou avaliação técnica: em Março de 1984, Eriksson tentava levar o Benfica à final da Taça dos Campeões (conseguiria-o em 1990), depois de chegar à da UEFA no ano anterior – só que pelo caminho havia o Liverpool de Ian Rush e Dalglish, de maneiras que as hipóteses não eram as melhores. Mas até que não começou mal, com um sóbrio e maneiro 1-0 em Anfield, que augurava noite épica na Luz – que não aconteceu (porque ficou 1-4!) devido às trapalhadas de Manuel Bento, infeliz como só tivera sido em Moscovo. Dignamente, tentou-se explicar… «Assumo o fiasco, mas continuo a dizer, sem utilizar isso como desculpa, que no primeiro golo fui encadeado pelos holofotes. Depois, tudo desabou ali, os erros surgiram, a cabeça ficou quente de mais, acabei por sofrer um dos maiores frangos da minha vida, com a bola a passar-me, estupidamente, por baixo das pernas»… tal e qual Costa Pereira, 19 anos antes. Triste sina!
Para acabar surfando onda positiva, é autor dum dos recordes de imbatibilidade em Portugal – 1065 minutos sem sofrer golos, ou 11 jogos, batendo o tal (de 8 jogos) de Zé Gato. O recorde durou mais seis anos, até 1992, quando Baía conseguiu 1191.

Michel Preud’homme
5 épocas, 199 jogos
1 Taça de Portugal

O talento era tão monstruoso que o palmarés chega a parecer poucochinho. É campeão belga três vezes, ganha duas taças, duas supertaças, e com o Malines, por estes dias chamado Mechelen – já depois de ter representado o Standard Liége – é campeão europeu – da Taça das Taças – em 1988, trofeu conquistado depois duma vitória frente ao Ajax. Uns meses depois, é a vez do PSV – que tinha vencido o Benfica na final da Taça dos Campeões – levar de frente com PreudHomme e companhia na Supertaça Europeia. E Michel, mesmo assim, continua pela Bélgica, apesar de convites de toda a Europa: inclusive de Portugal, que Pinto da Costa bem tentou, entre o eclipse de Mlynzarckyk e o fenómeno Baía. Mas só aos 35 anos, em 1994, é que Preud’Homme se atreve a sair de casa. Só precisou, primeiro, de ser coroado melhor guarda-redes do Mundial norte-americano, onde participou com a selecção dos diabos vermelhos e levou para casa o prémio Yashin – o Benfica, já de Artur Jorge, chegou-se à frente e fechou aquela contratação bombástica, a única certeira daquele reinado.
Michel olhou para o Benfica como um grande clube, uma oportunidade única. Mal sabia ele que seria um dos primeiros passageiros do comboio do Vietname, que é como se normalmente se chama à hecatombe desportiva dos finais dos anos 90 para os lados da Luz. No meio dum pantanal de erros de casting e humilhações, foi PreudHomme um dos únicos a tentar fazer parar a locomotiva – ele, Nuno Gomes, Poborsky, João Vieira Pinto. Ganhou uma Taça de Portugal apenas, muito pouco para quem tanto defendeu e tanto sofreu com colegas de outro calibre. No vídeo exposto, dá para ter uma noção do reconhecimento que a massa adepta, quase sempre justa, teve (e continua a ter) em relação ao contributo de Michel nos cinco anos que por cá passou. Num dia em que Benfica defrontava o Bayern de Munique, a Luz ignorou o que se passava no relvado para prestar uma última homenagem a alguém sempre pronto a ajudar, sempre cavalheiro e sempre disponível."

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