"Hu Xijin é chinês, nasceu em 1960, deu-lhe para se versar e formar em literatura russa e esteve na Bósnia, a palavrear de lá a sua visão sobre a Guerra dos Balcãs. Hu é jornalista e tem direito a página de Wikipédia, da qual se espreme o resumo sintetizado de uma das não muitas pessoas autorizadas a terem um perfil de Twitter na China, onde a rede social está bloqueada à população em geral. Mas, na sua página e em baixo do nome, escrito em alfabeto latino e caracteres chineses, está o símbolo de um púlpito.
O "China-stade affiliated media", escrito mesmo ao lado, é obra da empresa do passarinho azul que assim etiqueta certas contas ou pessoas quando as considera "meios em que o Estado exerce controle sobre o conteúdo editorial por meio de recursos financeiros, pressões diretas ou indiretas e/ou controle sobre produção e distribuição". Este domingo, Hu Xijin, cuja foto de perfil o mostra sentado à beira de uma estrada, ainda jovem, com tigelada capilar e a escrevinhar num bloco de notas (diz ele) em Sarajevo, dedilhou a última de uma série de nesse formato de papel digital:
"Desde que o que a Peng Shuai diga não tenha correspondência na expetativa dos media ocidentais, eles não vão acreditar. Só acreditam na história sobre a China que imaginarem. Estou surpreendido que não tenham dito que a senhora que apareceu nestes dois dias seja uma falsa Peng Shuai, uma dupla 😃"
Sendo editor do Global Times, tabloide chinês ligado ao Partido Comunista Chinês, a etiqueta surge no perfil de quem, por essa internet fora, é comum ser descrito como um megafone ressonante do governo do país. Escrevendo em inglês, o pedaço opinativo de Hu Xijin incidia sobre a foto e o comunicado partilhados pelo Comité Olímpico Internacional (COI) no mesmo dia: numa sala luminosa e com uma planta jovialmente verde ao fundo, o seu presidente Thomas Bach aparecia de perfil, a olhar para o ecrã de uma televisão onde está uma mulher ao centro da imagem, sorridente, diante de uma fileira de peluches virados para a câmara e uma moldura do que aparenta ser uma fotografia dela própria.
Era Peng Shuai, supostamente em casa, alegadamente "segura e bem" e vagamente pedinte de que "a sua privacidade seja respeitada durante este tempo".
Ao vigésimo dia contado desde a sua denúncia de ter sido assediada sexualmente, em 2018, por Zhang Gaoli, antigo vice-primeiro-ministro da China, a tenista, de 35 anos, foi revista em público, mesmo que à distância. Sobretudo e simplificando, alguém do lado de cá da simplória divisão entre ocidente e oriente pôs a vista em cima da jogadora cujo silêncio, desde 2 de novembro, e silenciamento na Weibo — rede social chinesa onde publicara a denúncia, prontamente apagada pela empresa — levou os EUA, o Reino Unido, a França, as Nações Unidas e a WTA, entidade que manda no ténis feminino, a exigirem respostas ao governo de Pequim.
Não só o desporto e a política se misturam, como existem braços de ferro com diplomacia férrea a ser bombeada nas veias. As potências do ocidente foram-se pronunciando em dominó sobre o tema, encadeando-se à semelhança das respostas da China, ou vindas da China, sobre o paradeiro de Peng Shuai.
Na sexta-feira e sempre pelo Twitter, a CGTN Europe, outro meio com direito àquele símbolo de púlpito, partilhara um suposto e-mail enviado pela tenista à WTA, logo tido como dúbio na veracidade; ao longo de sábado e domingo, Hu Xijin e Quing Chen, outra jornalista chinesa, publicaram vídeos de Peng Shuai a jantar com amigos, a assinar bolas de ténis gigantes a crianças e a pousar numa suposta cerimónia de abertura de um torneio juvenil em Pequim. Todos foram encarados como barrentos e descredibilizados por não mostrarem datas, nem serem verificáveis.
A foto e os três parágrafos escritos pelo Comité Olímpico Internacional foram a primeira prova de contacto oficial entre a tenista e algum dirigente desportivo não chinês. A videochamada durou meia-hora, Peng Shuai terá dito que tem estado na sua casa, em Pequim e jogo feito, nada mais. O comunicado nunca a cita, não explica o que foi conversado e jamais refere, sequer ao de leve, talvez a única coisa que é factualmente inegável no salsifré cada vez mais ruidoso que é este caso — as alegações de assédio sexual publicadas no perfil da jogadora na Weibo contra um antigo governante da China.
Escolher o silêncio ou o não pronunciamento é uma forma de tomar posição e o COI, que teve Peng Shuai como atleta olímpica em 2008, 2012 e 2016, optou por nem mencionar ao de leve a génese do que o levou a falar com a tenista. Quem acordasse de uma sesta de cinco anos e lesse o comunicado, pensaria que ao presidente da entidade simplesmente apeteceu, naquele dia, conversar com uma tenista chinesa. E a explicação estará nas amarras não palpáveis, nem visíveis, mas que têm a força do comprometimento: em fevereiro, Pequim recebe os Jogos Olímpicos de Inverno onde há contratos, publicidade e acordos de milhões já firmados.
O dinheiro fala onde não há palavras e a "diplomacia silenciosa" que, na sexta-feira, o COI garantira estar a fazer é o que o presidente da WTA, por contraste, está disposto a perder.
Steve Simon manda numa organização representativa de uma só modalidade, de muito menos atletas e de ainda menor número de países, só que já disse e repetiu poder retirar o circuito mundial de ténis feminino da China, incluindo o lucrativo World Tour Finals, evento de final de ano previsto para Shenzen, até 2028, com um prize money superior ao do torneio masculino. Feito o anúncio da videochamada, a WTA voltou a lamentar ainda não ter conseguido falar com Peng Shuai: "Isto não muda o nosso pedido por uma investigação total, justa e transparente, sem censura, à alegação de assédio sexual, assunto que motivo a nossa preocupação inicial".
Mas a WTA não tem, nem colocou um dos maiores eventos desportivos do mundo, nas mãos organizativas da China, país onde caem acusações de supressão de protestos contra o regime (Hong Kong), de genocídio de minorias (os muçulmanos uigures) e de silenciamento de críticos do regime. Omitindo o que levou à necessidade da sua manobra de apaziguamento, nem mencionando o problema tão gritado de tantos sítios, o Comité Olímpico Internacional fez figura de refém com as mãos atadas nas costas. Porque já as tinha, e assim fica difícil bailar."
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