"“Explicar uma coisa, é retroceder facilmente aos seus antecedentes;
conhecer uma coisa, é prever facilmente as suas consequências.”
(William James, 1842-1910)
A criança é irrequieta: vai para o judo. O jovem não colabora com os colegas: vai para o basquete. O miúdo é hiperactivo: vai para o karate. A criança tem uma má postura: vai para a natação. O petiz é indisciplinado: vai para o aikido. O jovem é obeso: vai para o futebol. Não se mexe: vai para o atletismo. É desatento: mais um para o karate. Afinal o desporto acaba por ser uma clínica… devido a acreditar-se em generalidades.
Vem isto a propósito daquilo em que se acredita sobre o desporto, estando sempre à espera de benefícios por parte deste sem nos interrogarmos se o desporto é neutro ou se o desporto é inócuo.
E se a maioria das pessoas ainda possuem crenças positivas e fundamentadas em relação ao desporto durante a fase de formação de jovens desportistas (mas atenção à deformação!), essas mesmas pessoas e talvez muitas mais possuem crenças erradas em relação ao desporto profissional qualquer que seja a modalidade, dado o actual estado de mercantilização do mesmo.
– Mister, acredita que ainda vai a tempo de ganhar o campeonato? - pergunta o jornalista ao treinador.
– Claro que sim, temos de acreditar sempre que estamos sempre a tempo - responde o treinador.
– Com esta sua vinda, acredita que a prestação da equipa vai melhorar?
– questiona o comentador desportivo à recente aquisição. – Sim, eu vim para ajudar o clube e prometo trabalhar, trabalhar muito para ajudar o clube a ser campeão. E acredito que vamos ser campeões!
Mais uma vez, a propósito de crenças de jornalistas, de treinadores, de comentadores e de desportistas…
Vivemos desde os primórdios da nossa espécie sujeitos a crenças. A nível social em termos de superstições, de rituais e de opinião pública, a nível individual em termos de convicções. Nos tempos actuais essas crenças são ainda mais instiladas na nossa consciência pelos ‘mass media’.
As crenças são opiniões formadas, interiorizadas, provenientes da nossa educação, das nossas vivências, da nossa formação… ou são o impulso para tendências que seguimos devido aos nossos modelos, aos líderes em que depositamos confiança, ou graças à acção da publicidade, do marketing ou da propaganda… Está nos manuais.
As crenças influenciam os nossos valores, que por sua vez se reflectem nas nossas atitudes e que se demonstram nos nossos comportamentos. Também vem nos manuais.
Somos influenciáveis e manipuláveis, e mesmo que estejamos a isso atentos as pressões podem ser tantas que delas não conseguimos escapar. E sem darmos conta vamos construindo as nossas crenças, quer sejam baseadas em factos fundamentados quer nos sejam inculcadas pela repetição da apresentação de arquétipos quer de estereótipos.
Em tempos idos havia os que acreditavam na Santa Inquisição, hoje em dia há os que acreditam que a Terra é plana. Havia antigamente os que acreditavam no poder absoluto e agora há os que não acreditam na ciência. Havia os que acreditavam nos ideais da Revolução Francesa agora há os que acreditam nos ‘reality shows’. E ainda há aqueles que acreditam que o desporto é o remédio para todos os males.
Segundo Maria Luísa Soares (1), “submetemo-nos às crenças – como seguimos as regras –, sobretudo a essas crenças práticas sobre as quais se funda toda uma forma de vida e de conduta. E aqui dá-se a submissão: à regra, ao hábito, à nossa ‘imagem do mundo’, que não é uma teoria construída por nós, mas que nos é conatural, de certa forma herdada, pertence-nos e possui-nos, dominando-nos inconscientemente.” Há neste pequeno conteúdo três noções fundamentais: a) a nossa submissão àquilo em que acreditamos (porque só vemos aquilo que queremos ver), b) a noção de fazermos nosso aquilo que nos foi inculcado por outros (a nossa disponibilidade para sermos enganados sempre que haja alguém com disponibilidade para nos enganar); c) a noção daquilo que nos domina inconscientemente por não estarmos (nem sermos) preparados a equacionar a realidade dos factos e das suas interpretações por não termos (não nos ter sido) desenvolvido um espírito crítico.
O desporto, submetido às leis do comércio, apresenta-se apenas como espectáculo mas os seus fins últimos são económicos ou políticos. Basta um olhar atento sobre o mesmo e analisarmos criticamente quais os seus efeitos na sociedade e nos indivíduos. Basta não nos esquecermos das elevadas quantidades monetárias que movimenta e pensarmos nos interesses imobiliários dos clubes, no ‘namimg’ dos estádios, na publicidade ostentada pelos competidores, na presente nos painéis publicitários e nas conferências de imprensa dos treinadores de futebol, nos direitos de imagem e nos direitos televisivos. Basta interrogarmo-nos sobre o que produz um jogador de futebol por exemplo!
Como nos diz Manuel Sérgio (2), é necessário reorganizar os fundamentos do Desporto (e repare-se no “D” maiúsculo) através de uma séria crítica epistemológica, lógica e axiológica. E ética e moral, acrescentaríamos nós. De salientar que, segundo o mesmo, na mesma obra, “o Desporto só pode concorrer à transformação do mundo se, primeiro, se transformar a si mesmo.” Para isso não pode ser só um promotor da quantificação do sucesso, da exaltação exacerbada dos mais aptos ou mais capazes, ou do desportista-mercadoria, ou da simples hierarquização meritocrática. Nem da subserviência ao vil metal onde só o lucro interessa. Ainda estaremos a tempo?
No dealbar de um novo ano, que todos nós esperamos que seja melhor que aquele que termina dadas todas as vicissitudes por que ainda estamos a passar, nada melhor do que nos determos um pouco nas palavras de Augusto Curry (3): “quem não critica aquilo em que crê não lapidará as suas crenças, quem não lapida as suas crenças será servo das suas verdades. E, se as suas verdades forem doentias, certamente será uma pessoa doente.” Com a implícita consequência de poder fazer outros doentes…"
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