"Ruas desertas. Filas indianas e obedientes à porta dos supermercados (só falta um árbitro munido de spray para marcar a distância regulamentar). Milhões de desempregados ou lay-officializados em todo o mundo, aviões em doca seca, autocarros da Carris cheios de lugares vazios a cruzar a cidade como fantasmas rodoviários, turismo de massas com atum, surto de padeiros domésticos em furiosas experimentações, massa-mater dolorosa, cruzeiros tomados pela peste a navegar nas águas territoriais do desconhecido, um louco bolsobravo a jurar que é só uma gripezinha e que, seja como for, o brasileiro não pega nada, tráfico de ventiladores, morcegais maldições, negócios da China, curvas exponenciais, achatamentos, tabelas de mortos em vez de índices dow-jones, curas cubanas, serenatas à varanda, clubes riquíssimos a reduzir custos e, no meio de tantas novidades, surpresas e temor, há coisas que não mudam: lá está o Rodrigo Guedes de Carvalho a apresentar o noticiário, a RTP insiste no Preço Certo para que os grupos de risco, sem sino da aldeia que lhes valha, não se percam no tempo, e, no mundo do futebol, ainda há alguém, há sempre alguém, a caminho do Real Madrid.
Não tenham dúvidas. Quando, neste mundo que julgávamos dominar, não sobrarem mais do que uns milhões de baratas, vírus protegidos por uma fina camada de gordura e os pangolins voltarem a passear pelas ruas de Wuhan, é certo e sabido que uma dessas baratas, um único e coroado vírus ou um atónito pangolim estará a caminho do Real Madrid. Quando as repartições fecharem e os porcos pedalarem livres e as vacas voarem, haverá ainda um funcionário zeloso num gabinete subterrâneo do Santiago Bernabéu a atender a chamada de um agente em teletrabalho e a ultimar os pormenores de uma transferência que “poderá ser confirmada a qualquer momento”.
Cientistas unem esforços para desenvolver uma vacina e, enquanto isso, no gigante espanhol, há quem se dedique à humanitária tarefa de resgatar Luís Maximiano da baliza leonina, preparando uma oferta estrondosa em máscaras, gel desinfetante e paracetamol.
Pois é, meus amigos, podem os jogadores distrair-se a dar toques em rolos de papel higiénico ou, como o defesa do Manchester City, Kyle Walker, mitigar a solidão com acompanhantes que servem ao domicílio, que na linha da frente do futebol estarão sempre esses soldados desconhecidos que encaminham futebolistas para o Real Madrid. Ninguém sabe quando é que os campeonatos recomeçarão, quem serão os campeões, que competições europeias teremos na próxima temporada. Só sabemos que não sei quem está a caminho do Real Madrid.
Como não recordar Roberto Severo, a.k.a. Beto, central-símbolo do Sporting e protagonista da maior não-transferência, ou quase-transferência, de sempre? Todas as noites de todos os defesos, Beto adormecia vestido de branco e, no dia seguinte, lá acordava de leão ao peito.
De todos os jogadores que nunca jogaram no Real Madrid, Beto foi o que mais não-jogou. Foram épocas espectrais, de quase jogos e quase títulos, em que no lugar que deveria ser o de Beto víamos usurpadores como o vetusto Sanchís, o eterno Hierro ou até aquele perna-de-pau chamado Woodgate. Beto está para o futebol como Peter O’Toole estava para o cinema. O actor irlandês teve oito nomeações e nunca ganhou o Óscar, até que, por caridade ou cansaço, lhe atribuíram um Óscar honorário. Beto merecia uma camisola honorária do Real Madrid.
E enquanto escrevia isto, aparece-me a entrevista de Carlos Secretário à Tribuna, magnífica entrevista. E não é que Secretário vestiu mesmo a camisola do Real Madrid? Mais. Toda uma carreira foi reduzida praticamente a essa passagem desastrosa pelos merengues.
Eu lembrava-me disso – e do que, na altura, nos rimos com a transferência – e daquela assistência para Acosta num Sporting-Porto que quase entregou o título aos leões (quem é que era um dos defesas-centrais do Sporting nesse jogo? Beto.) e nem sabia que, no dia em que Secretário se estreou pela seleção nacional, num jogo contra o Liechtenstein, eu estava lá no Estádio da Luz, com um grupo de amigo debaixo de uma chuva torrencial a aproveitar o desconto do Cartão Jovem. E o que a entrevista fez, e bem, foi lembrar-nos, a todos nós, que no peito de um jogador desafinado também bate um coração, atrás de um atleta que se tornou uma espécie de anedota nacional há um homem e há sombras e negrume.
Secretário, tantas vezes lembrado como o infeliz sortudo que um dia, sem que soubéssemos como, se viu a caminho do Real Madrid, teve a coragem de falar desses tempos negros, do demónio do meio-dia a que chamamos depressão e, de repente, todas as piadas, todas as situações caricatas, as declarações deselegantes de Capello (diz que Secretário treinava bem, mas que antes dos jogos se borrava), soam a uma maldade gratuita de quem facilmente se esquece que somos frágeis, todos nós, que por trás do biombo da fama há uma pessoa e que essa pessoa pode sofrer enquanto nós nos rimos no sofá.
Foi tragicómica a passagem dele pelo Real Madrid? Foi. E então? Para ele, a vida continuou. Com altos e baixos aprendeu o suficiente para, já no fim da entrevista, dizer isto: “permitam-me, antes de mais questionar-vos: antes de se tornarem profissionais, seja de que área for, perguntaram-se qual foi o vosso principal papel quando nasceram?
Pois eu lembro-me, todos os dias, foi o de filho. E antes de ser jogador de futebol, um atleta de alta performance, porque a profissão assim me obrigou, fui filho, fui uma criança como qualquer um de vocês.” Sim, há sempre um não sei quem a caminho do Real Madrid, e isso tem graça. Mas esse não sei quem é, antes de tudo, filho de alguém. Esta entrevista de Secretário foi a melhor exibição que lhe vi fazer com a camisola do Real Madrid. Perdão, com a camisola de ser humano."
Se o Secretário chegou lá, e nesses tempos o Mendes ainda não deveria ser "Super Mendes", não seria de desprezar considerar que o Max também poderia calçar!
ResponderEliminarAté porque devem haver 3 lugares para guarda-redes!
P.s.-Consegui escrever isto tudo sem me rir!