"Casaco cintado, colarinhos engomados, a poupa do cabelo arranjada à força de brilhantina. Rogério, o Pipi, foi inconfundível. Só no Brasil encontrou um jogador que não suportava ter um cavalheiro a seu lado. A experiência no Botafogo foi curta. O Benfica foi sempre o seu destino.
Chelas. Uma cidade dentro da cidade. Vale de Chelas. E Marvila. E a freguesia do Beato, a antiga fábrica dos fósforos, no tempo em que se escrevia phósphoros, o Alto de São João lá em cima.
Foi aí que nasceu Rogério.
Precisamente no local onde viria a ser, mais tarde, o Bairro da Madre de Deus.
O irmão, Armínio França, jogava no Chelas. Rogério seguiu-lhe as pisadas.
Já o pai de Rogério fora fundador do clube.
Ainda estudou até ao 4.º ano do liceu. O Rogério, digo. Depois foi trabalhar, porque Chelas era lugar de gente de trabalho, de lojas e armazéns e indústrias que alimentavam os desejos incontidos da grande Lisboa. No Grémio das Carnes conheceu Fernando Peyroteo, vindo lá de Humpata, Angola, africano branco, avançado poderoso, goleador como quase nenhum.
Peyroteo viu-o jogar. Aliás, chegaram a jogar juntos. Peladas inconsequentes, de brincadeira.
Estavam destinados a ser adversários.
Houve a proposta do Sporting, claro. O Lumiar e os seus luxos.
Mas o Benfica foi mais longe: 10 contos de réis para o Chelas, que não nadava em dinheiro, e 16 para Rogério Lantres de Carvalho.
Mais mil escudos do que a oferta leonina, não tão leonina quanto isso, se nos ativermos ao adjectivo.
Rogério queria o Benfica. O Benfica queria Rogério.
Assim foi.
Nos seus primeiros jogos de camisola encarnada vestida, havia sempre um público especial a acompanhá-lo: os seus amigos de infância camaradas de Chelas, esse bairro com memória, que não esquece nunca. Ocupavam os seus lugares nas bancadas e só tinham olhos para Rogério e palmas para Rogério.
E Rogério oferecia-lhes, em troca, algum do futebol mais bonito, mais elegante, mais perfeito que Portugal já viu.
O dândi
Era moço apessoado.
Casaco cintado, colarinhos engomados, poupa encharcada em brilhantina. Um elegante. Um dândi. Um pipi.
Ficou Pipi: Rogério Pipi.
Esteve no Brasil, no Botafogo. Era tão bom, que até os brasileiros se dispuseram a gastar 40 contos nele. Muito dinheiro. Dinheiro forte. Rogério foi.
Tinha acabado de casar, suportou a vaidade de uma das maiores vedetas do futebol de todos os tempos, Heleno de Freitas, viciado em lança-perfume, em casinos, em mulheres, na adulação das pessoas que gravitavam em seu redor. Heleno de Freitas era pipi que chegasse para não querer um Pipi, ainda por cima português, perto de si. Morreu louco. Inevitavelmente louco.
Rogério regressou ao Benfica. Chegou a ser absolutamente, profissional, nessa altura. Isto é, vivia do futebol, só do futebol, o que não era grande coisa, convenhamos, o futebol não servia para pagar todas as contas lá de casa, mulher e filho e tudo.
Encontrou novo emprego, agora na Auto Boavista, como vencedor. Era sedutor, o Rogério Pipi. E famoso. Não havia quem não quisesse ter um carro comprado ao Rogério do Benfica. Do Benfica e da selecção.
Há um fotografia de Rogério que fica para sempre!
Ergue, orgulhoso, a Taça de Latina, ganha ao Bordéus depois de dois prolongamentos.
A única Taça da Latina que existe em Portugal.
É verdade que o capitão não era ele, mas foi capitão nessa tarde de glória do Jamor. O capitão era Moreira, mas Moreira caiu durante a batalha. Estavam Félix Antunes e Rosário. E Arsénio e Julinho e Corona. E Rogério Lantres de Carvalho.
O seu sorriso é contido, como se exige a um cavalheiro. Tem a taça, lindíssima, levantada ao ar, mãos ambas. A noite já caía no Estádio Nacional.
Quatro anos depois foi embora. Era outro Benfica. O Benfica do profissionalismo por completo, e Rogério já não tinha tempo para isso. Regressou a Chelas, e o Chelas já não existia. Misturava-se com o Fósforos e dera lugar ao Oriental.
Armínio, seu irmão, convenceu-o a continuar a jogar. Em boa hora. Em 1956, o Oriental voltava à I Divisão. Na frente do ataque, um homem bem equipado, na sua pose quase inconsciente de lorde inglês, os cabelos penteados a brilhantina e um fogo no olhar que pressagiava golos.
Era o Rogério.
O Pipi."
Afonso de Melo, in O Benfica
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