"Neste rápido traçado, acerca do último livro de Vítor Serpa, não deverá estranhar-se que, com os seus juvenilíssimos 67 anos de idade, eu veja nele um dos mais notáveis jornalistas da sua geração e um escritor com lugar de relevo, no contexto da cultura portuguesa. Tenho para mim que o Desporto é o fenómeno cultural de maior magia, no mundo contemporâneo, o que alguns, numa incompreendida teimosia mental, ainda desconhecem, incluindo uma juventude burguesa avelhentada e “blasé”. E portanto os problemas que a prática desportiva suscita, a diferentes níveis, ficariam, largo tempo, por estudar e esclarecer, sem os registos hermenêuticos de intelectuais militantes, como o Vítor Serpa. Intelectuais militantes? Sim, intelectuais in-conformados, in-submissos, in-quietos, diante dos muitos mortos-em-pé que lideram o nosso desporto, designadamente o nosso futebol. Mortos-em-pé? Sim, sem força, nem saber, para vincar, gravemente, decisivamente, na sua obra, um constante aspirar à verdade desportiva, à transcendência que é movimento intencional em direcção, não ao “ter mais”, mas ao “ser mais”. Vítor Serpa, ao invés, é, hoje, um dos mais puros exemplos de independência crítica que as nossas Letras (onde o jornalismo se integra) podem orgulhar-se. Como José Régio, ele pode clamar, com altivez:
“(…) Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam os meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: “vem por aqui?” (…).
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada”.
Eis o que o Vítor Serpa quer fazer, eis o que o compromete, eis a promessa que tantos escolhos acabará por criar-lhe. Eis, afinal, o segredo do fascínio, da luz cintilante que emanam do seu último livro Há Vida Nas Estrelas (Livros FPF, 2019). E também a causa mais profunda da sua extraordinária capacidade de comunicação. De facto, só quem é livre pode ser libertador…
Este livro começa, com o ousado propósito do seu autor de aceitar como benfazeja a própria adversidade que a sua independência crítica inevitavelmente lhe traz: “Este é um livro de homenagem ao futebol. Portanto, é uma obra que obriga a uma certa coragem do autor e a uma certa firmeza de carácter do leitor. Bem sei que seria mais fácil e expectável ir na enxurrada que leva, de uma vez, o futebol e todo o seu povo. Trata-se, porém, de uma escolha consciente. Se alguém cavar uma trincheira, saibam, pois, que eu decido ficar do lado do futebol. Poderemos não ser muitos, mas trata-se de uma questão de gratidão e de comprometimento com muitas das emoções que também deram sentido à minha vida de quase cinquenta anos de jornalista. Perdoem-me a imodéstia, mas já não tenho idade, nem paciência, para a humildade dos súbditos. Pretendo que este seja um livro realmente necessário, para contar a história do futebol português, nestes últimos cinquenta anos” (p. 5). E encerra assim a sua apresentação: “Não será, garanto, um livro de ajustes de contas, um livro feito de vingança das feridas de guerra que durante todos estes anos também me foram infligidas. É um livro factual, mas intimista. Um livro de retratos de gente famosa. Não está toda a gente. Está quem eu consegui estar mais perto de poder fotografar”. E, porque o actual presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na sua infatigável expressão de palavras contidamente fraternas, é também um adepto do futebol, Vítor Serpa ainda escreve: “A última história é uma homenagem ao adepto. Peguei na figura tutelar do presidente da República, também ele um adepto de futebol e, em especial, da Selecção Nacional. São, como as outras, histórias de vida, histórias reais e inéditas. Achei que era uma boa maneira de terminar este livro, com afecto”. E terminar bem, pois que todo o livro se distingue, pelo brilho das ideias e pela elegância da forma.
No livro Há Vida Nas Estrelas, o seu autor timbra em honrar os laços da solidariedade mais pura, com algumas das figuras maiores do futebol português, mostrando que é nas horas difíceis que melhor se avalia o penhor da amizade e que a sua profissão de jornalista, exercida com ciência e consciência e finura de trato, permite-lhe hoje evocar factos saudosos donde pode visionar-se uma exemplar devoção pelos mais belos valores desportivos e, sobre o mais, humanos. A sua culta inteligência, o seu senso prático, a sua exemplar devoção ao trabalho, a sua lealdade no convívio, o apoio constante da família – fizeram dele um profissional que prima por não preencher a ausência de Deus com a mentira, a balbúrdia e o artifício, como salienta George Steiner, referindo-se a certo jornalismo hodierno. Há nele uma cautela em não aguçar arestas, em encontrar zonas amortecedoras entre antagonismos em liça. E assim Fernando Gomes, Pinto da Costa, Luís Filipe Vieira, Bruno de Carvalho, Jorge Jesus, José Mourinho, Jorge Mendes, Eusébio, Futre, Maradona, Messi, Cristiano Ronaldo, entre outros mais, são figuras humanas, profundamente humanas, com qualidades e defeitos portanto, mas todos eles estrelas, ou seja, todos eles emitem luz própria, em todos eles é possível encontrar as raízes da especificidade, do progresso do nosso futebol. Mas uma questão de fundo poderá levantar-se ainda, através da leitura deste livro: possuirá o futebol português traços de originalidade, de genialidade tais que nos permitam realmente falar da existência do “futebol português”? Ou descobre-se, no nosso futebol, o fenómeno para que já Eça de Queirós nos alertou, n’Os Maias, que a cultura nos chega de Paris, pelo comboio, embalada em caixotes? Resumo o problema, em poucas palavras: há “futebol português”, ou “futebol em Portugal”? Se me permitem uma resposta, faço minhas as palavras de José Régio: “toda a universalidade depende, em primeira instância da autenticidade das obras e do génio do seu criador, acrescendo ainda que é o português quem não sabe valorizar as suas produções, nem tem oportunidade de o fazer, apesar da existência de grandes génios, na nossa Cultura” (in Maria Manuel Baptista, Estudos – Eduardo Lourenço, Vol. I, Ver o Verso, 2006, p. 37).
Vi jogar, na minha frequência assídua dos campos de futebol lisboeta, na companhia do meu saudoso Pai, alguns verdadeiros talentos do futebol português, tais como: Rogério, Coluna, Germano, António Simões (Benfica); José Travassos, Manuel Vasques, Fernando Peyroteo, Yazalde (Sporting); António Oliveira, Paulo Futre, Pinga, Hernâni (F.C. Porto); Jaime Graça, Emídio Graça, Jacinto João (Vitória de Setúbal). E dois génios que faziam jogadas como um repentino acordar do espírito: Matateu (Belenenses) e Eusébio. Há, aqui jogadores, no seu tempo, recheados de vitalidade, onde esfuziavam os clarões de uma “classe” autêntica, mas não beneficiaram nunca do profissionalismo, no futebol, a medicina desportiva era incipiente e, acima de tudo, vivendo num país desafecto à inovação - que o mesmo é dizer: quase todos eles nunca foram o que poderiam ter sido! Os nomes escolhidos por Vítor Serpa, bem ao contrário, são (ou foram), quase todos, jogadores com remunerações e prémios principescos, tendo a seu favor uma ciência médica de prevenção/reabilitação e das várias “performances desportivas”, que os estudou, investigou e tratou, e renomados juristas que lhes apontaram deveres e defenderam direitos, como é do interesse de qualquer cidadão, numa sociedade democrática. Os demais (presidentes, treinadores e o empresário Jorge Mendes) também são (foram) eles e a sua circunstância – mas, em todos eles, Vítor Serpa descobriu qualidades e defeitos, como em qualquer outro ser humano e… talento! Alguns deles foram mesmo verdadeiramente inovadores. No Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 22 de Maio a 4 de Junho, o meu colega e amigo, Gonçalo M. Tavares, escreve com agrado (e eu sei bem como ele se delicia, com a leitura dos filósofos): “Recebo o calhamaço As Passagens de Paris de Walter Benjamin, traduzido por João Barrento. Mais um dos grandes livros inacabados. Praticamente toda a obra de Benjamin está agora traduzida, um grande acontecimento. Em Benjamin, sempre essa luminosidade acima da média: “O que é verdadeiro não tem janelas. O verdadeiro nunca olha lá para fora, para o universo” (diz Benjamin)”.
No mesmo jornal, colabora o escritor Afonso Cruz: “Não me lembro de viagens que não sejam pessoas ou animais, não me lembro de viagens que não sejam histórias. A viagem, como a vida, é uma cardiognose. Se não bater no peito, vale muito pouco”. Tanto o Gonçalo, como o Afonso, têm como Jano um rosto bifronte: de um lado, um juízo límpido, uma filosofia arrumada do concreto; do outro, o estilo próprio de dois dos melhores narradores atuais de língua portuguesa. O Gonçalo é um racionalista, mas de uma razão que o torna único e diferente, como acontece com a “teoria crítica” em Walter Benjamin. Tão único e tão diferente que o Gonçalo M. Tavares, que tanta gente conhece, eu não sei quem é. Acrescentarei que é um escritor junto de quem nos sentimos inteligentes, por contágio ou patetas, por contraste. O Afonso Cruz é um humanista, com todas as letras. Talvez um renascentista, talvez um discípulo do sofista Protágoras, para quem “o homem é a medida de todas as coisas”. Mas um humanista que sofre de “cardiognose”, quer ele dizer, no meu entender: é principalmente pelas “razões do coração” e não pelas “razões da razão”, que ele manifesta possuir “sabedoria”. Vítor Serpa, entre os jornalistas portugueses que se ocupam (e já se ocuparam) do Desporto, é certamente dos mais significativos. Pelo seu racionalismo, em primeiro lugar. A verdade do que a tradição ensina e a autoridade impõe só deverá tomar-se por verdadeira mesmo, se chegar à consciência, com clareza e distinção. E também pelas suas “razões do coração”. Vítor Serpa é, de facto, um racionalista, mas ao serviço do progresso, da ciência e de um mundo mais fraterno e mais justo. Não há só epistemologia, no seu racionalismo, porque, para ele, como para Levinas, “a ética é a filosofia primeira”. Aliás, a razão respeita, com naturalidade, a filosofia e a própria teologia, quando verifica que é mais do que razão. Há Vida Nas Estrelas, de Vítor Serpa, é um livro que, mais do que lido, deverá ser estudado, designadamente nos cursos superiores de Desporto. Dele desponta documentação fundamental para uma compreensão da história do nosso futebol. É o esquecimento do Passado e não o culto do Passado que nos tornará prisioneiros do Passado. Parabéns ao Vítor Serpa, o seu autor, à Federação Portuguesa de Futebol que o editou e a todos os que o escolherem para uma investigação histórica do futebol português."
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