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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Direito à informação versus direito à privacidade ?

"Há casos em que a fronteira entre o que deve ser mantido em privado e o que pode ser publicitado não é evidente.

O ponto de partida para o processo judicial foi uma noite de 2014 em que um conhecido actor nacional saiu de uma discoteca embriagado, e quatro desconhecidos, aproveitando-se desse seu estado de falta de discernimento, o filmaram, incluindo dentro de sua casa e cederam essas imagens ao Correio da Manhã, que aceitou publicá-las, e à CMTV, que as exibiu em inúmeros blocos noticiosos. Durante cerca de quatro minutos podia ver-se o actor na sala da sua casa com um ar totalmente perdido, atordoado, a cambalear, com uma linguagem quase incompreensível, a gesticular com uma garrafa de cerveja de um litro na mão, de joelhos, deitado no chão, com a camisa aberta, num estado de manifesta embriaguez. Fotogramas desse vídeo foram, ainda, publicados em sucessivas edições do Correio da Manhã, da revista Correio da Manhã TV e do suplemento Domingo.
O actor recorreu aos tribunais, não pela divulgação do seu problema de alcoolismo, que já tinha assumido publicamente e já fora referido por outros órgãos de comunicação social, mas porque, no seu entender, fora ultrapassado aquilo que a comunicação social podia noticiar sobre o assunto. A quantidade e qualidade das imagens consubstanciavam uma desproporcionada e injustificada interferência na sua vida privada e uma clara violação do seu direito à imagem.
Defenderam-se os réus, jornal, canal de televisão e jornalistas, argumentando que o actor era uma figura pública e o seu alcoolismo um facto público e notório, tendo as imagens em causa sido enquadradas numa reportagem sobre figuras públicas e dependências, com entrevistas a outros artistas e a médicos, havendo, assim, um interesse público nos trabalhos publicados. E, por outro lado, o actor aparecia a olhar para a câmara, pelo que tinha evidente conhecimento de que estava a ser filmado, consentindo, assim, nas filmagens. A nossa privacidade é, seguramente, garantia da nossa integridade, da nossa identidade e da nossa dignidade. Num mundo em que todos nos estão constantemente a roubar informação pessoal, convém distinguir o que é para ser público e o que é para ser privado ou íntimo. É evidente, por exemplo, que não é privado o que se discute no julgamento criminal do reitor da Universidade Fernando Pessoa, Salvato Trigo, que decorre, de forma assaz suspeita, no Porto à porta fechada. Mas há casos em que a fronteira entre o que deve ser mantido em privado e o que pode ser publicitado não é evidente.
As doenças são uma das áreas onde a questão da privacidade é fulcral. Mas, mesmo aí, há numerosas circunstâncias que justificarão a divulgação de doenças de pessoas públicas, já que, por exemplo, a saúde do Presidente da República não interessa só a ele. E se um artista fala publicamente dos seus problemas pessoais, tais como a dependência do álcool ou das drogas, tem de aceitar que essas questões sejam matéria informativa de interesse público. Mas até onde vai o direito à informação? Quando se justifica a compressão do direito à privacidade, uma vez que estamos perante direitos de geometria variável?
Em 2011, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deu prevalência à privacidade, considerando que não violara a liberdade de expressão a condenação pelos tribunais ingleses do jornal Daily Mirror por ter publicado fotografias, captadas à distância, da modelo Naomi Campbell a entrar numa clínica de reabilitação de dependência de drogas.
Desta vez, nem o tribunal de primeira instância nem a Relação de Lisboa no passado dia 20 de Dezembro de 2017 tiveram grandes dúvidas: as imagens tinham sido captadas ilicitamente — dado o estado de embriaguez do actor — e a sua profusa difusão a nível nacional em nada contribuía para um debate sobre o alcoolismo, no âmbito da liberdade de informação, antes contribuindo “para o vexame, aniquilamento da imagem e profunda descredibilização” do actor, pondo em causa o seu processo de reabilitação. E os réus foram condenados a pagar uma indemnização de 50 mil euros e proibidos de voltar a publicar as imagens em causa, bem como de publicar informações sobre os tratamentos médico-terapêuticos do actor.
Parece claro que as doenças e dependências de cada um devem, em princípio, ser protegidas pelo direito à privacidade."

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