"Fará em Outubro 21 anos desde que um surfista português venceu pela primeira vez um heat do campeonato do mundo de surf, e logo na primeira etapa alguma vez realizada em Portugal. Antes chamava-se World Championship Tour, mas a lógica já se aplicava: os melhores atletas do mundo competiam nas melhores ondas e o Kelly Slater ganhava que se fartava. Bom, foi mais ou menos isso. O mar naquele dia no Cabedelo não estava propriamente épico, nem isso interessou para nada. A primeira vitória de um português tem um nome: Bruno Charneca, Bubas para os amigos, para os rivais e para os adolescentes como eu que devoravam a SURF Portugal e a Surf Magazine, ou viam o Portugal Radical e sonhavam com a Rita Seguro. Se estiveres a ler, Rita, olha, muááá.
A vitória do Bubas não foi coisa pouca. O local da Caparica eliminou nem mais nem menos que Kelly Slater. Não era este Kelly Slater quarentão cheio de travadinhas (um génio ainda assim). Era um Kelly Slater que nessa temporada ganhou 7 das 14 etapas disputadas e conquistou o quarto título mundial da sua carreira e o terceiro consecutivo, lançadíssimo para ultrapassar o tetracampeonato de Mark Richards. Fez o penta duas épocas depois e ganhou o sexto título da carreira. Talvez não tenha sido esse Kelly Slater sedento de vitórias que naquele dia competiu no Cabedelo, uma vez que se sagrara campeão mundial antes da prova arrancar devido à ausência de Shane Beschen.
Não sei se foi esse o motivo da falta de comparência do Slater na primeira ronda da prova - estava no papo - ou se perdeu mesmo os aviões, mas o facto é que o melhor surfista de todos os tempos começou a prova na segunda ronda. Entrou na água, surfou de forma desinteressada e fez o dia ao Bubas e ao surf português. Chamam-lhe ronda de repescagens ou dos perdedores (losers round), o que é precisamente o que estou a fazer e/ou sou. Sou só um espectador anónimo do surf português, confortavelmente à espera do set na ronda dos perdedores. Uma pessoa aprende a viver com essa inaptidão e às tantas já se dá por satisfeita se molhar o rosto com água salgada na companhia dos amigos. Mas dizia, hoje repesco pelo melhor dos motivos. Hoje fez-se história. O Frederico Morais, Kikas para os amigos e para os adultos como eu que têm saudades da SURF Portugal e da Surf Magazine, o Frederico Morais quase ganhou.
O tanas. O Frederico Morais foi à final em J-Bay! Aviou três campeões mundiais pelo caminho! Surfou que se desunhou! Conquistou o mundo inteiro com a linha de surf mais elegante e entusiasmante de toda a prova, John John, Jordy ou Toledo incluídos. Há muitos anos que os surfistas da bancada gerem as suas vidas pessoais e profissionais de acordo com o fuso horário em que decorrem as etapas do Mundial de Surf, e hoje não foi excepção. Acordei ligeiramente atrasado para as meias-finais e já o Kikas encostava o Gabriel Medina às cordas. 24 horas antes tinha feito o mesmo com o John Johh Florence nos quartos de final, pela segunda vez em dois dias. Nas últimas horas, vi amigos e conhecidos comparar este feito à vitória portuguesa no Euro, o que é compreensível. Mas permitam-me a correcção: nós fomos campeões europeus de futebol depois de jogar contra Hungria, Islândia, Polónia, Croácia e País de Gales e finalmente a França. O feito do Kikas é de facto menor em termos absolutos, mas muito maior na cabeça do adepto de surf. O Kikas ganhou duas vezes à Alemanha de 74, passeou frente ao tiki-taka espanhol, dizimou a Holanda do Cruyff e só perdeu na final com o Brasil de 2002.
O que é que tudo isto tem a ver com o Bubas? Simples. Na cabeça de um adepto de surf que há mais de 20 anos anseia por vitórias portuguesas numa modalidade para a qual nascemos poeticamente destinados, isto é algo que há muito merecíamos. Não por um atleta, mas por todos os atletas e todas as praias. O Bubas mereceu limpar o sarampo ao Slater porque estava a surfar em casa e a minoria de adeptos pediam essa vitória, mas mereceu ainda mais pela beleza e benção de ter nascido português, numa terra que os melhores poetas descreveram quase sempre virados para o mar. Quem diz o Bubas diz o Dapin, o João Antunes, o Rodrigo Herédia, o Marcos Anastácio, o José Gregório ou o Ruben Gonzales que foram espoliados de inúmeras vitórias no EPSA ou em qualquer etapa do WQS. Eu sei lá. Ainda me lembro de comparar o Miguel Fortes ao Tom Curren. Estes tipos que eu não conheço de lado nenhum e me propinaram bastantes vezes foram o meu clube, como são hoje o Kikas ou o Vasco Ribeiro de licra vestida, o Nicolau von Rupp ou o Hugo Vau quando surfam heats contra ondas mutantes na Irlanda ou na Nazaré, ou o Miguel Blanco e o João Kopke quando estão simplesmente a viver vidas mais interessantes do que a minha, quase sempre dentro de água. Se um adulto com dois filhos diz isto de pessoas mais novas do que ele, imaginem um miúdo que começou a surfar há 6 meses. Só quem já esteve dentro de água sabe o quão inspirador ou intimidante é ver esta gente no line-up.
Este adepto sabe que as coisas em competição têm uma explicação quase sempre lógica, mas não sabe se está assim tão interessado nisso. Certo, existiram factores estruturais que impediam a primeira geração de surfistas de competição de vingar lá fora, talvez os primeiros não fossem animais de competição como hoje vemos surgir, e sim, hoje os miúdos estão mais bem artilhados para os 30 minutos de um heat, bem como para as agruras e deslumbramentos de uma vida passada a viajar e a competir. Mas talvez, aliás, quase de certeza que nada disto seria exactamente assim se em 2000 um miúdo chamado Tiago Pires não se tivesse sagrado vice-campeão mundial júnior no Guincho, isto numa altura em que os tais factores estruturais ainda pareciam uma barreira insuperável. O tanas, disse ele com uma gana e talento só superados pelo Dean Morrison. Quis o destino que nesse dia ficássemos novamente em segundo lugar, e mais uma vez ganhámos. Demos uma abada à aparente sina do surf português. Afinal não era impossível. O Tiago Pires continuou a sua carreira brilhante ao longo dos 16 anos seguintes, com uma vitória inesquecível em Ribeira d’Ilhas em 2005 que o deixou à porta do World Tour. Dois anos depois qualificou-se para a primeira divisão do surf mundial e por lá ficou, fruto de talento e trabalho, durante oito anos em que as madrugadas a olhar para um ecrã se tornaram ainda mais interessantes, algumas quase comoventes, porque finalmente tínhamos lá um português. Os anos foram passando e o Tiago tornou-se um surfista como nenhum outro no panorama competitivo português. Hoje, depois dele e de sei lá quantos resultados notáveis dos que vieram a seguir, as coisas alinharam-se de tal forma que o resultado do Kikas, ainda que possa surpreender alguns, não é mais do que o corolário natural do trabalho de quem nasceu num país abençoado. Que ninguém celebre menos à medida que os portugueses forem conquistando vitórias num desporto para o qual nasceram.
Entretanto, fui ver o que é feito do Bubas. Encontrei-o no LinkedIn. Tem trabalhado na área da informática. Não sei quantos de vocês se lembram, mas o Bubas tinha um dos cutbacks mais bonitos do surf português. Os dois empregos mais recentes que teve tinham escritório no Havai e em Santa Bárbara, na Califórnia. Talvez a profissão e a vida o tenham afastado um pouco mais do surf, mas os melhores surfistas são os que procuram obsessivamente uma forma de permanecerem próximos do mar. São peixes que aguentam umas horas fora de água. Quanto a mim, adepto na ronda das repescagend, já lá vai o sonho de um verão sem fim. Esse morreu, mas não me esqueço dos verões ou invernos passados junto ao mar. De cada vez que o Kikas surfar, esperarei o impossível: que regressemos todos ao verão para buscar os instantes que ainda não vivemos junto do mar. Nós e o surf português."
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