"António Simões viveu a experiência dez vezes e não esconde a vaidade. Também sentiu o peso da responsabilidade, por culpa da dimensão do Benfica. 'Muito mais do que jogadores, passamos a ter que ser exemplos'. Entrevista à maior lenda viva do clube, que vê traços de antigos companheiros em alguns dos heróis do tetra, a quem se diz grato. 'Apetece-me quase dizer: faltava-me isto'
Festejou os dez títulos de campeão nacional em privado, muitas vezes com companheiros de equipa, a maioria com Eusébio e as famílias de ambos. 'Não havia Marquês de Pombal nem nada disso'. Mas já havia a sensação de grandeza do Benfica, que António Simões e a sua geração, nos anos 60 e 70, fizeram crescer ainda mais.
- Como é ser campeão nacional pelo Benfica?
- Só mais tarde me dei conta do que representou e ainda hoje representa. Quando jogamos e vamos ganhando campeonatos, nem nos apercebemos do impacto. Aquilo é mais um, depois mais outro. Quando hoje ouço dizerem que o Simões tem dez faixas de campeão, penso: 'São muitas, realmente'. Tive o privilégio de ganhar 10 em 14 épocas. É uma coisa diabólica. Não é só uma carreira. É uma parte que fica e nos deixa até um pouco vaidosos. Claro que o Benfica vai buscar quem sabe jogar, mas quantos sabem jogar e não conhecem este sabor de ser campeão?
- O facto de ser no Benfica multiplica esse efeito?
- Ainda hoje dizia e um amigo que o que acontece no Benfica tem uma dimensão maior. Porque, de facto, é o maior clube de Portugal. Jogar e ser campeão no Benfica torna uma pessoa mais importante devido à grandeza do clube. Por isso é importante não esquecer nunca que há uma parte que a gente deve ao clube. Ser do Benfica é ser um pouco português. O clube tem essa raiz, até porque durante muitos anos não teve estrangeiros. Não tenho nada contra estrangeiros, eu próprio fui emigrante e vivi no estrangeiro. Mas nunca joguei com um estrangeiro no Benfica. Tudo isso faz com que represente mais o País do que os outros clubes. Não tem nada a ver com ser superior, apenas representa mais do que os outros. É histórico, não há nada a fazer.
- Foi três vezes tricampeão nacional. Ganhar tornou-se uma rotina banal?
- Sim. E às vezes essa é a principal razão para não se ganhar mais e mais. As pessoas ficam fartas de ganhar. Tornar-se tão normal que desvalorizam as vitórias. A noção de que se sabe jogar bem e se pode ganhar tem de ser conciliada com o desejo do sucesso. Quantas vezes uma equipa está a jogar bem e, de repente, deixa de o fazer? Fartam-se. O ser humano tem este lado. É fundamental nunca se perder o entusiasmo de competir. No mundo em que vivemos, toda a gente tem acesso ao conhecimento, não como antigamente, que era só para alguns. Mas apetece-me perguntar: e sabe competir? No futebol, saber jogar não chega. É preciso saber competir.
- Algum dos dez títulos de campeão nacional que conquistou foi mais marcante?
- Há dois. No primeiro, o FC Porto do Pedroto estava na frente, a poucas jornadas do final, mas depois perderam em casa com a Académica e a partir daí foi o descalabro para eles. Nós fomos por ali fora e acabámos por ganhar esse campeonato (1968/69). O outro foi uma situação parecida, mas com o Sporting, que a determinada altura chegou a ter seis pontos de avanço. Nós andávamos um pouco aflitos, com a massa associativa a pôr pressão em cima. Lembro-me de jogar na Luz e, ao fim dos primeiros 15 minutos, com o resultado ainda em 0-0, já havia assobios. Eu era o capitão e não foi nada fácil. Os adeptos estavam tão habituados a ver golos logo de início e a liderar o campeonato que estar em segundo era um problema. Mas fomos campeões, com três pontos de avanço (1979/71). Essa recuperações revelam uma coisa interessante: não ter medo de ganhar, ter segurança do valor que se tem e ter estofo para ir buscar forças quando o grau de dificuldades é maior. Não se podia falhar. Cá está um bom teste a todos na vida: cumprir uma tarefa quando não se pode falhar. Há um aumento de pressão e responsabilidade.
- Perante o hábito de ganhar que já existia nesses dois campeonatos, o atraso pontual funcionou como um desafio extra?
- E a equipa soube responder. O Benfica ganhou campeonatos em que andou sempre à frente, mas também teve a experiência de ganhar depois de ter andado quase sempre atrás. Foram duas grandes experiências.
- Lembra-se da primeira festa?
- Houve uma pequena invasão de campo. Algures por aí há umas fotografias desse momento. Eu consegui sair sem ninguém me tocar. Fiz uns 250 dribles naqueles minutos, devo ter feito tantos como em toda a minha carreira. Fui driblando gente e enfiei-me pelas escadas abaixo. Eu era um miúdo de 18 anos naquela altura e tive receio daquele mar de gente. Foi uma coisa incrível, mas consegui safar-me. Só festejei mais tarde, com a família e amigos.
- Não havia festa com a equipa?
- Nada. Íamos para casa e festejávamos com a família ou com alguns colegas. Eu festejei muitas vezes com o Eusébio e as nossas famílias. Mas era uma coisa privada. Não havia Marquês de Pombal nem nada disso. Ninguém ia para a rua. Hoje é que há um grande aproveitamento político. Naquele tempo, não. Nunca festejei um título com um político em toda a minha vida.
- Portanto, festejavam juntos no estádio e depois cada um celebrava à sua maneira.
- Quando nós festejámos verdadeiramente no estádio, com milhares e milhares de sócios e simpatizantes do Benfica à nossa espera, foi quando viemos de Amesterdão (após a conquista da Taça dos Campeões Europeus, em 1962). Tinha eu 18 anos e o Eusébio 20. Chegámos ao estádio, eu com pequeno urso nos braços, que ofereceram ao Benfica e depois foi para o Jardim Zoológico, e ver ali milhares e milhares de pessoas à noite, com as luzes acesas como se fôssemos para um jogo, foi um momento fantástico. Também me lembro de um campeonato que ganhámos em Tomar e houve uma grande romaria até Lisboa. Eram carros e motos por todo o lado, mas chegámos a Lisboa e cada um foi para a sua casa.
- A importância de ser campeão nacional no Benfica é hoje diferente do seu tempo?
- É diferente porque vivemos uma época diferente, porque o País é diferente e porque a rivalidade agudizou-se. E, por isso há intenção de tirar partido, não só para festejo próprio mas também de provocação aos outros. O clube é mesmo, as pessoas é que são diferentes. O Benfica tem a mesma cor, põe é mais força e impacto na cor.
- Não gosta?
- Defendo que, quando se ganha, não deve ser contra alguém. Não admito que se ganhe alguma coisa com o intuito de deitar alguém abaixo. Os americanos têm uma frase fantástica. Eles dizem que ganhar não é tudo, mas é a única coisa. Só que é a única coisa, em respeito pelo adversário. Eu não posso, nem devo, nem quero, nem gosto que alguém veja um adversário como um inimigo. Não quero que nenhum benfiquista pense dessa maneira. Não quero o mundo perfeito, porque isso não existe. Mas, enquanto cá andar, quero contribuir para um mundo muito mais civilizado. O desperto, e nomeadamente o futebol, tem a obrigação de ser assim. Quanto mais sucesso temos mais responsabilidade temos de ser grandes e maior inteligência emocional temos de mostrar. Nada nos impede de alcançarmos o sucesso, mas não há nada na vida que nos obrigue a ficar arrogantes. Peço desculpa. Foi isto que aprendi aqui, no meu país e no Benfica, com os dirigentes e colegas mais velhos a darem o exemplo. Sou parte de tudo o que aprendi com essa gente. E mais ainda: quando fui para os Estados Unidos da América, em 1975, reforcei tudo o que aprendi aqui, confirmando que eu e todos os que me ensinaram estávamos no caminho certo. Não tive que mudar nada. Apenas tive a oportunidade de ver noutro mundo essa mesma cultura desportiva. Quanto mais se ganha, mais respeito tem de se ter pelos outros.
- A camisola do Benfica pesa mais?
- Dizem que sim. Porque o Benfica tem mais País, tem mais histórico, tem mais adeptos. Mas isso não acrescenta nada ao compromisso de ser um bom profissional. No Benfica, no Arouca ou noutro clube qualquer, é exactamente a mesma coisa. O ser profissional não se mede pelo clube que se representa. Ou se é ou não se é. Agora, a dimensão de um clube, sendo maior, acrescenta visibilidade e isso obriga-nos a ter mais cuidado. Porque passamos a ser muito mais do que jogadores de futebol. Passamos a ter que ser exemplos, também. E a sociedade exige que, quando mais conhecido se for, quando mais se for uma estrela, maior tem de ser o exemplo que damos. E é preciso saber ligar com isto.
- Que importância histórica tem este tetra para o Benfica? Nem a sua geração conseguiu.
- Nós fizemos três, três, três. Aliás, eu e o Eusébio somos os únicos. Mas nunca chegámos ao tetra. Perdemos sempre para o Sporting, em anos de Campeonato do Mundo: 1966, 1970 e 1974. Olhe, que bom, mas que maravilha esta de eu ainda cá andar e ter este sabor. Levou todos estes anos, mas finalmente aconteceu, alguém que veio e me deu o tetra. Não o conseguiu como jogador, treinador ou dirigente, mas tenho o prazer de o partilhar agora com aqueles que me proporcionaram. Apetece-me quase dizer: faltava-lhe isto.
- Que jogadores foram mais decisivos nestes quatro anos?
- Seguramente, o Luisão. O Jonas também, Gaitán, Salvio, Júlio César, Jardel. Destaco estes. Foi tudo gente muito importante. Porque, além da qualidade, todos eles ajudaram imenso a liderança do Luisão. Vieram de boas famílias para uma boa família. Não estranharam. E isto tem muita influência. Porque ajudaram os miúdos todos a crescer. Como antigo jogador do Benfica e capitão em alguns 250 jogos, fico muito grato e esta gente. Porque eles vieram de fora e perceberam em pouco tempo o que é o Benfica. Isto é um factor muito importante para se ganhar.
- Qual deles personifica melhor o Benfica dos anos 60?
- Há um bocadinho em vários. Olho para o André Almeida e vejo o Cruz e o Neto. O Luisão projecto-o no Germano, a grande referência da defesa. Depois vejo o Jonas e digo assim: 'Eh, pá!, este tipo é como o José Águas ou o Mário Coluna'. É o líder lá na frente.
- Algum faz lembrar o António Simões?
- Gosto muito do Salvio. É um excelente jogador, com muita maturidade. Teve azar com as lesões, mas é muito culto a jogar. Depois vejo este pequenito, o Cervi, a ir ao encontro de algumas coisas que eu fiz ao longo da minha carreira.
- Algum destes encaixaria no seu Benfica?
- Há um sexteto irrepetível no Benfica e na Selecção portuguesa. Jaime Graça, Coluna. José Augusto, Torres. Eusébio, Simões. Mas isso não me impede de dizer: João Pinto, grande jogador, Rui Costa, Aimar, Gaitán, Di Maria... Bem, há uma quantidade deles. Peço é ajuda, por favor. Quem é que se tirar para eles entrarem? Comparar épocas diferentes é um exercício muito difícil, embora a arte e o talento sejam intemporais.
- Há um ADN de um jogador à Benfica?
- Muito difícil explicar isso. Mas posso dizer que são aqueles que chegam e ficam apanhados pelo clube. Muitos têm que se ir embora, mas todos falam em voltar. Quando vivemos fora do nosso país e jogamos num clube que não é aquele onde crescemos, e mesmo assim ficamos completamente identificados, é porque há uma química qualquer que nos apanhou.
- Depois de um período em que ganhou apenas um campeonato, entre 1994 e 2010, considera que nas últimas épocas o Benfica recuperou a hegemonia do futebol português?
- A história conta que houve domínio de um clube, depois de outro e a seguir de outro. O Benfica teve uma travessia terrível e durante muito tempo não conseguiu ganhar. Mas, entretanto, fez várias coisas acertadas e o resultado é este. Inovou-se, organizou-se, contratou novos quadros técnicos e percebeu que estamos num mundo completamente distinto daquele que foi o meu. Ou seja, com a componente negócio no qual a indústria do futebol se tornou, o clube percebeu que era incompatível continuar a ser comprador. Percebeu que tinha de ser formador e fez um grande investimento no Seixal, de onde, nos últimos anos, começou a tirar rentabilidade. Os clubes portugueses não têm outra alternativa e o Benfica percebeu isto primeiro. E agora está à frente exactamente porque se modernizou e investiu. E se também se credibilizou, muito o deve a este presidente. Se o Benfica seguir neste caminho, tem todas as condições para continuar a dominar desportivamente. Este sucesso é ao mesmo tempo um desafio para não parar.
- O Benfica chegou a este tetra comandado por dois treinadores, Jorge Jesus e Rui Vitória, cada um com dois títulos. Atribui-lhes a mesma importância neste ciclo?
- Este tetra é um marco para o presidente, mas não me posso esquecer dos treinadores. São ambos conhecedores do jogo e do treino, não tenho dúvidas. Atribuo igual mérito aos dois. Mas, com todo o respeito, parece-me que o Jesus tinha mais qualidade em quantidade do que o Rui Vitória. Também foi mais feliz em ter os jogadores mais tempo disponíveis. Perante essas limitações, o Rui Vitória foi capaz de equilibrar o grupo, sempre com uma mensagem muito positiva, sem nunca se desculpar com a ausência de um jogador. Essas coisas têm muito influência no grupo, porque é um atestado de confiança e competência para quem está apto. No que diz respeito ao Jesus, confirmou-se que é um homem com vocação para treinador, não podemos negar isso. Juntando os dois teríamos o treinador perfeito.
- Que contributos mais relevantes trouxeram?
- Conhecimento a liderança, embora exercida de forma distinta. Isto prova que, existindo conhecimento, o caminho para o sucesso não é único. E acrescento um aspecto que foi importante para os dois: a organização e o profissionalismo do clube. O Rui Vitória foi mais sensível à aposta nos jovens, ao perceber que este tinha de ser o caminho mesmo que tivesse algum custo, ele conseguiu. Mérito de jogador feito. Mérito de jogador que foi feito."
Entrevista de Rui Antunes, a António Simões, in Visão
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