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sábado, 13 de maio de 2017

Eriksson. “Uma palavra em português? Benfica”

"O "Questões do Forno Interno" entrevista o único treinador com dobradinhas em três países, agora a desbravar caminho na China. Cuidado, isto mete Ikea, sueca e Macieira.

Gostámos tanto tanto, mas tanto, da China que decidimos acampar por aqui. Se há uma semana é Manuel Cajuda, treinador de um clube da 3.ª divisão, agora falamos com um homem da 2.ª. Um homem especial pelo tom de voz, pela simplicidade do ser e pela quantidade de títulos. Para começar, é o único treinador de sempre a juntar campeonato mais taça no mesmo ano em três países. Primeiro na Suécia (IFK Gotemburgo 1982). Depois em Portugal (Benfica 1983). Finalmente em Itália (Lazio 2000). Se a isso juntarmos o facto de ter chegado a três finais da Taça UEFA por clubes diferentes (IFK 1982, Benfica 1983 e Lazio 1999), está o caldo entornado. Que categoria, chi-ça. Sven-Göran Eriksson é o nome de quem se fala. Actual treinador do Shenzhen, terceiro classificado da 2.ª divisão, é um craque em todos os sentidos. Aos 69 anos de idade (Cristiano Ronaldo nasce no mesmo dia de Sven: 5 Fevereiro), ainda irradia vontade de fazer história como treinador, a sua profissão desde 1977.  
- Mr. Eriksson, good morning.
- Boa noite.

- Tem razão. Mr. Eriksson, boa noite.
- Ahhhh, agora sim. Boa noite.

- Ufff, fala português [um português-assuecado, vá]. Sabe mais palavras?
- Benfica.

- Muito bem. E mais?
- Tudo bem?

- Tudo, claro.
- Como te chamas?

- Daqui Rui Miguel Tovar.
- Tovar? Conheço esse nome há muuuuitos, muitos anos. Jornalista português, certo? Entrevistou-me algumas vezes, na RTP.

- Esse é o meu pai.
- Ah, boa boa. Um bom pai leva sempre o filho pelo bom caminho.

- Bons tempos, esses das entrevistas com o meu pai na RTP?
- Uyyyy, claro que sim. Fui para um país magnífico, que conheci de Norte a Sul, e dei continuidade à minha carreira, com títulos.

- Quem é o responsável pela sua contratação?
- Um visionário chamado Fernando Martins.


- Visionário, como? Afinal, o Eriksson tinha ganho a Taça UEFA pelo IFK Gotemburgo na época anterior.
- Vou responder em duas fases. Era visionário pela sua filosofia: salários normais, prémios de jogo altos. E era visionário porque viu em mim qualidades para liderar uma grande equipa europeia como o Benfica. Eu só tinha 34 anos e era sueco, de um país sem tradição no futebol mundial.

- O que fez ele para contratá-lo?
- Reuniu os dirigentes e explicou-lhes a ideia. Muitos deles torceram o nariz ao meu nome, um desconhecido, ainda por cima da Suécia, e ele simulou um ataque cardíaco. A secretária dele estava de conluio e chamou logo uma ambulância. Grande confusão. O meu nome foi avante mas 18 dirigentes demitiram-se contra a decisão de Fernando Martins de me contratar.

- Eis Eriksson em Portugal. Ainda se lembra do primeiro dia?
- É uma boa história.

- Conte.
- Aterrámos em Lisboa e a minha mulher apresentou-se, sem querer, com uma camisola verde e brancas às riscas.

- Como o Sporting ou como o Rio Ave?
- Como o Sporting, ahahahah. Imagina lá isto. O presidente Fernando Martins avisou-a simpaticamente para nunca mais o fazer, ahahah.

- E ainda se lembra do primeiro jogo?
- Claro que sim, nunca se esquece. Primeira jornada do campeonato. Ganhámos 1-0 ao Espinho, em campo neutro [São João da Madeira], com um golo de Humberto Coelho.

- E do primeiro jogo na Luz?
- Também me lembro, óbvio.

- [silêncio daqui]
- [silêncio dali]

- Então, qual foi o resultado?
- Ahahahah, julga que não sei: 3-0 ao Boavista.

- E, já agora, o plantel. Lembra-se de fio a pavio?
- A mudança na minha vida foi tão positiva, da Suécia para Portugal, que todos esses momentos são inesquecíveis. O presidente era um visionário-corajoso, o estádio era enorme, lindo, os adeptos eram aglutinadores e a equipa era mágica. Veja lá os jogadores com nível de selecção: Bento, Pietra, Bastos Lopes, Humberto, Veloso, Álvaro, Shéu, Carlos Manuel, José Luís, Alves, Chalana, Diamantino, Nené, Filipovic, Stromberg, Manniche e por aí fora. Tive a sorte de conquistar esses jogadores e de nos darmos todos muito bem.

- Que época.
- Digo-lhe mais sobre essa época de estreia: só perdemos duas vezes em 49 jogos: 1-0 em Alvalade com o Sporting e 1-0 em Bruxelas com o Anderlecht, na 1.ª mão da final da Taça UEFA. Ganhámos campeonato e taça.

- Qual taça?
- A de Portugal. Fizemos a dobradinha.

- Com quem é essa final?
- Isso tem história rica em acontecimentos. É aquele Porto-Benfica nas Antas.

- Ahhhhh, a taça fora de época?
- Isso, em Agosto.

- Houve um problemazinho, não houve?
- É uma maneira de colocar as coisas, ahahahah. O presidente Fernando Martins não achava normal uma final da Taça entre Porto e Benfica nas Antas. O caso arrastou-se e fomos de férias sem o resolver. Em Agosto, lá fomos jogar.

- E o Benfica ganhou?
- Ganhámos, sim. Um-zero com golo do Carlos Manuel. Um daqueles pontapés de fora da área. Ele era extremamente importante nesse tipo de lances e resolvemos muitos jogos assim. Esse do Porto é só um deles.

- Começava aqui a lenda de Eriksson nas Antas.
- Às vezes, ganhava lá.
- Há aquela histórica vitória nas Antas com dois golos do César Brito.
- Ahhhh, esse jogo também dava um filme.

- Dá para contar?
- O autocarro da nossa equipa é travado pelos adeptos, inclusive apedrejado uma vez, já perto do estádio, e temos de ir a pé até às Antas, a carregar sacos, por entre adeptos e mais adeptos, debaixo de insultos. Foi [compasso de espera, à procura da melhor palavra] intimidante. Entrámos no estádio, por fim, e o balneário está fechado com um cadeado.

- Fechado, como assim?
- O presidente Pinto da Costa dera ordens para só abrir a porta a uma hora do início do jogo. Quando o encontro no meio dos túneis, ele diz-me: “Respeito-o muito, Sr. Eriksson, mas guerra é guerra.”

- A porta do balneário abre-se mesmo a uma hora do início do jogo?
- Abre-se eeeeee é um cheiro que nem se pode. Intenso. Aquilo não dava para estar ali, simplesmente não dava. Equipámo-nos no túnel, há fotos disso e tudo.

- E depois, e depois?
- Fomos a jogo.

- Com três centrais.
- Ricardo, Paulo [Madeira] e William. No meio, Thern e Paulo Sousa. À direita, Paneira. À esquerda, Veloso. No ataque, Valdo a 10 mais Rui Águas a 9. Ao lado dele, Pacheco.

- Ao intervalo, 0-0.
- Correto.

- Aos 80 minutos, 0-0.
- Correto.
- No banco, Magnusson, Isaías e César Brito.
- Fiz entrar o César Brito.

- Saiu o Pacheco.
- Correto. Foi a melhor substituição da minha carreira. Já dei voltas à cabeça e admito-o. Ahahahahahah. O César Brito entrou e revolucionou o jogo. Na primeira vez que toca na bola, 1-0. Na segunda, 2-0. Fomos campeões nacionais.

- O Eriksson ainda volta às Antas mais uma vez.
- Hum?

- Pela Sampdoria.
- Pois foooooi. Estava em modo Benfica e, de repente, fala-me da Sampdoria.

- Taça das Taças.
- Sim, lembro-me perfeitamente. Aliás, nunca mais me esquecerei de me reencontrar com o grande Bobby Robson. Quando eu ainda não tinha ganho nada, viajei até à Inglaterra para ver ver um jogo do Ipswich, treinado por ele. Perguntei-lhe se podia falar-lhe por cinco minutos e ele convidou-me para me sentar ao seu lado no banco, durante o jogo do dia seguinte, com o Aston Villa.

- Uau, que honra.
- Apareci na televisão e o jogo deu em directo na Suécia. Os meus pais encheram-se de orgulho e eu nem lhe conto. Ainda não havia telemóveis nem emails, senão seria bonito.

- E esse reencontro com o Robson no Porto?
- Ele tinha ganho em Génova, na 1.ª mão. Um golo do Iuran, se não me falha a memória [e não falha, não senhor]. Nas Antas, nós copiámos o resultado com um golo do Mancini.

- Reencontra-se também com Pinto da Costa?
- Antes do jogo, lembro-lhe aquela vez com o Benfica em 1991 e ele ri-se. No fim, sou eu quem se ri: 5-3 nos penáltis [falha Latapy, decide Lombardo].


- O Eriksson sempre foi um homem sorridente. É a sua imagem de marca.
- Chamavam-me Ice Man em Inglaterra.

- Cá, o Eriksson é o Macieira Man.
- Ahahahah, essa é boa. Que memórias belíssimas.

- Lembro-me dos cartazes na rua e dos anúncios nas páginas de revistas. Aquela foto é mítica. Como é que tudo isso aconteceu?
- [Eriksson continua a rir-se] [ainda está a rir-se] [é agora?] [nãããããã, só mais um pouco, se faz favor] Foi o meu agente que fez um acordo com o senhor da Macieira e passei a usar aquele chapéu branco com a tira preta. 

- Grande lance de marketing.
- Marketing pré-histórico, isso sim. Que aventura.
- Aproveitou, ao menos?
- O quê?

- Alguma vez bebeu Macieira?
- Macieira e outras bebidas desse tipo. Eram boas. E também conheci o tal senhor, muito, muito simpático.

- Três títulos de campeão português em quatro anos é dose.
- Foi um período óptimo, como lhe digo. A qualidade do Benfica era excepcional.

- Por isso é que Eriksson chega a duas finais europeias?
- Isso mesmo, era uma equipa fabulosa. Tanto a 1983 como a de 1990. Havia bons jogadores, bom ambiente, boa estrutura.

- E um bom treinador.
- Ahahahah. Obrigado.

- Como é que se perdem duas finais europeias?
- O Anderlecht em 1983 era um portento, era quase a selecção belga com um ou outro estrangeiro de renome. Perdemos lá por 1-0. Cá, a Luz já estava abarrotada a três horas do início do jogo. O ambiente era magnífico e tudo parecia estar bem encaminhado com o golo do Shéu. Só que eles fizeram o 1-1 e stop. A festa foi deles. Pena para o clube, que merecia aquela taça pelo caminho exemplar até à final, sem uma derrota sequer. E pena para aqueles adeptos que seguiam o Benfica para todo o lado. Era incrível vê-los em qualquer parte da Europa, fosse em Bruxelas Roma ou Sevilha.

- Fala-se de problemas com o Alves no jogo da 2.ª mão.
- Comigo? Não creio, não me lembro. Lembro-me, isso sim, é de ele ter sido suplente nesse jogo, por opção técnica. Entrou aos 62’ e depois disse-me que se tivesse sido titular, o Benfica não teria perdido a taça. Ahahahah, gostei. Ele era muito corajoso na forma como se dirigia às pessoas.

- Em 1990, é a final da Taça dos Campeões com o Milan.
- Um ataque de sonho: Gullit e Van Basten. Daí para trás, era só isto: Rijkaard, Evani, Ancelotti, Baresi, Costacurta, Maldini, Tassotti. Enfim.

- Diz-se que soa um apito das bancadas no golo de Rijkaard. Que é isso que trava a defesa do Benfica.
- Também ouvi isso, mas não me parece. Aldair subiu ligeiramente mais do que devia e o Rijkaard apareceu naquele espaço para se isolar. O Milan era um exemplo na arte de aproveitar o mínimo deslize. As equipas italianas, no geral.

- Diz o Eriksson, campeão italiano pela Lazio em 2000.
- Esse é outro momento grandioso. Uma equipa que não era campeã desde 1974.

- No plantel, dois portugueses: Sérgio Conceição e Fernando Couto.
- Dois excelentes seres humanos. Jogadores top, da grande selecção portuguesa do Euro-2000.

- No Europeu seguinte, o de 2004, Eriksson volta à Luz.
- À nova Luz. E para viver dois momentos arrepiantes.

- Dois?
- O primeiro é aquela derrota com a França, na primeira jornada da fase de grupos. O Lampard faz o 1-0 e depois temos um penálti. Infelizmente, o Barthez defende o remate do Beckham. Na parte final, Zidane marca duas vezes. De livre directo e de penálti. A frustração foi imensa. Só naquele dia. Depois, a Inglaterra acertou o passo e conseguimos passar aos quartos-de-final.

- Aí é Portugal.
- Portugal de Scolari, o homem que nos eliminou no Mundial-2002 (Brasil 2 Inglaterra 1). Nesse jogo, conseguimos a vantagem por Owen na sequência de um erro de Portugal. Depois, o Rooney lesionou-se. Tinha dito, dias antes, que só vira um jogador de 18 anos exibir tanta qualidade numa fase final e esse era Pelé em 1958. Agora, Rooney. Ele estava com uma força e uma vontade imensas. Aquele lance em que se lesionou diminuiu as nossas possibilidades. Fiz entrar o Vassell, que conhecia bem e até o estreara na selecção. Aliás, na estreia, ele marcou um belíssimo golo de bicicleta. Só que o Vassell não era o Rooney. E Portugal aproveitou para empatar. No prolongamento, outro 1-1 em golos. Nos penáltis, é aquilo que toda a gente.

- No Mundial-2006, mais do mesmo.
- Aí sem o Rooney, de novo. Ele foi expulso. Arrastámos, por assim dizer, o jogo para os penáltis num ambiente intenso em Gelsenkirchen, com o estádio fechado. Ouviam-se os adeptos como se estivessem ao meu lado, no banco. Penáltis e adeus Mundial.

- Saiu triste da Inglaterra?
- Foi o trabalho mais difícil da minha vida e o lugar mais alto da minha carreira. Uma vez, encontrei o então Primeiro-Ministro Tony Blair no aeroporto de Luton e ele meteu-se comigo: ‘Vamos ver quem aguenta mais tempo no cargo’. Queria ganhar, claro, mas fui sempre eliminado nos quartos-de-final: Mundial-2002, Euro-2004, Mundial-2006.

- Sempre por Scolari.
- Ahahah, é verdade. Aqui na China, também já perdi um campeonato para ele.

- Sente saudades de Portugal?
- Saudade é uma palavra bem portuguesa. Bonita. Carregada de sentimento. Sinto saudade, claro. Vivi grandes momentos.

- Lembra-se ainda dos nomes dos estádios, por exemplo.
- Sporting, Alvalade. Porto, Antas. Braga, 1.º de Maio. Guimarães, D. Afonso Henriques. Faro, São Luís. Setúbal, Bonfim. Marítimo, Barreiros.

- E mais coisas de Portugal?
- Cascais.

- Vivia lá, não era?
- Verdade. Os meus vizinhos eram Strömberg e Manniche.

- E mais?
- A Marginal, que vista, e o trânsito, ahahahahah.

- E ainda não havia Ikea no tempo do Eriksson.
- Ahahahahah, o Ikea já existia na Suécia antes de eu nascer. A minha primeira casa na Suécia foi toda do Ikea. Gostava do Ikea para entrar e comer.

- Comer?
- Óptima comida sueca.

- Há Ikea na China?
- Há oito. Um deles aqui, em Shenzhen.

- É grande?
- Grande? Enooorme. Na lista dos dez maiores Ikea’s do Mundo, oito são da China. Isto é um mundo à parte.

- Como passa o tempo aí na China, a jogar à sueca?
- Ahahahah. Jogava muito em família, lá em casa. Era à sueca e ao póquer.

- Dava-se bem?
- [silêncio] Nem por isso. Perdia quase sempre, ahahahah.

- No futebol é bem diferente.
- Ganhei muitos títulos, muitos amigos e belas memórias. Tudo de bom. Quero continuar a acumular essas experiências. Até quando?

- Até sempre.
- Não consigo deixar de ser treinador. Adoro treinar. É mais uma vocação do que uma profissão. Acordo e quero sair para treinar, jogar. Não sei fazer mais nada. Se vou de férias, aborreço-me em pouco menos de um mês. Ahahahahah."

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