"José Maria Nicolau merece ser aqui relembrado por uma e outra vez. Foi uma figura única do ciclismo português e marcou, com Alfredo Trindade, a rivalidade acima das rivalidades. Um Benfica-Sporting sobre duas rodas.
Chamavam-lhe «O Hércules do Cartaxo», tamanha a sua potência. José Maria Nicolau foi o maior ciclista da década de 30, e há muitos que o consideram o melhor de todos os tempos. Começou mal. Em 1928, no Lisboa-Óbidos-Lisboa, desistiu. Voltou no ano seguinte. Lisboa-Cartaxo. «Queria chegar primeiro na minha terra. Seria algo para jamais esquecer. Vesti pela primeira vez a camisola do Benfica. Sentia-me capaz de tudo. Mesmo tendo como adversários gente do melhor, como Quirino de Oliveira ou António Marques. A prova era terrível. A saída de Lisboa era feita através de azinhagas com mau piso. Mal partimos, lancei-me na frente. Bem me avisaram para ir mais devagar, que iria rebentar num instante, mas não liguei. Na ponta final fui vencido pelo Quirino. Fiquei triste e satisfeito. Triste por perder. Satisfeito por perceber que era tão bom como os outros».
Não era. Era melhor.
Dedicou-se a vencer: I Circuito de Lisboa, Taça União, III Volta dos Campeões, Grande Prémio de Outuno, Estoril, I Porto-Vigo, Porto-Lisboa, Volta a Portugal! Vencia provas com quem bebia água: fácil, de golada...
A Volta a Portugal estava na sua 2.ª edição. Tinha havido a primeira; depois, quatro anos de intervalo. Finalmente, Nicolau.
Alto, jovem pleno de vigor. Era um touro de potência. Determinado; entusiasta. «Desde que atingiu a classe de corredor de primeira linha, não hesitava em arrancar logo de princípio. Em muitas provas, pareceu levar tudo de reboque, na sua roda... Nas descidas, era do mais confiado. A 'alma' de Nicolau, em cima da bicicleta, correspondia à 'alma' tradicional do Benfica».
Em 1932 não ganhou a Volta. Mas ganhou o resto: V Volta dos Campeões, Taça Golegã, Taça Olímpica, Grande Prémio de Lisboa, 12 Voltas à Gafa, Porto-Lisboa, Taça União, III Lisboa-Coimbra, Campeonato de Portugal em Fundo, Lisboa-Benavente. Não havia limites para José Maria Nicolau.
Um rival de peso
Houve, depois, a rivalidade. A rivalidade de sempre: Benfica-Sporting - José Maria Nicolau - Alfredo Trindade. No velho jornal Os Sports, após a III Volta a Portugal, conquistada por Trindade, fazia-se a comparação: «A superioridade atlética de Nicolau em relação a Trindade é inegável: a derrota na III Volta não o apouca, porque os melhores perdem e não deslustra perder quando o adversário é valoroso e se vendeu cara a vitória. Nicolau disputou provas, além da Volta, e em todas triunfou; nas dezanove etapas da Volta, venceu doze vezes e ficou quatro vezes em segundo e duas em terceiro. É difícil demonstrar mais absoluto senhorio, e o campeão do Benfica merece a designação de rei na época de 1932».
A carreira de Nicolau foi pejada de triunfos.
Houve um ou outro, em especial.
O recorde batido na Porto-Lisboa. Estava em 14h42s, e Nicolau fez 12h10s - 2h35m11s de diferença. Explosivo! Supersónico! Há uma fotografia bem exemplar desse momento. Nicolau junta as mãos sobre a cabeça em gesto de triunfo. Está aos ombros dos seus companheiros - Mário de Almeia, Domingos Leal, Santos Duarte, Vassalo Miranda, Aguiar da Cunha e Gil Moreira. Uma equipa de campeões!
A rivalidade continuava- «Nicolau-Trindade de constituíram a mais célebre rivalidade ciclista de todos os tempos em Portugal», escrevia-se na Stadium, uma revista revolucionária (em todos os sentidos) para a época. «As estradas do continente eram ímanes que atraíam compactas multidões para as suas beiras. Os gritos de incitamento, os aplausos vibrantes do povo eram incentivos caros que chegavam à alma dos seus formidáveis ciclistas. O triunfo de um deles não era, de modo alguém, derrota inglória do outro. Era um duelo ímpar de emoção, um duelo sem fim. Desta alternância de ganhar e de perder nasceu a mais excepcional e vibrante rivalidade desportiva de todos os tempos no ciclismo lusitano. O facto de Alfredo Trindade pertencer ao Sporting e José Maria Nicolau ao Benfica completou com extrema felicidade o quadro dessa formidável emulação desportiva, jamais atingida entre dois atletas no plano puramente individual. Nicolau ganhou a II Volta a Portugal, e Trindade foi segundo. Trindade ganhou a III Volta a Portugal, e Nicolau foi segundo. Na quarta, Nicolau desistiu, e Trindade ganhou. Na quinta, Trindade desistiu, e Nicolau ganhou. Que melhor igualdade se pode desejar para traduzir a enorme rivalidade que existiu entre os dois ídolos do ciclismo?».
Os dois nomes entraram, lado a lado, no corredor estrito dos mitos. Passaram-se as décadas, e mantém-se a chama. Correm ainda num desafio infinito pelas estradas da memória."
Afonso de Melo, in O Benfica
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