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sábado, 22 de outubro de 2016

O futebol na televisão portuguesa

"Há programas em que se atiram palavras à cara uns dos outros como, antigamente, nos filmes cómicos, se atiravam com bolos de creme

«Eu nunca vejo, mas contaram-me». É assim que muitas vezes começa narrativa de um espectador dos reality shows futebolísticos que todos os dias passam nas televisões portugueses. Ou seja: há um certo pudor, principalmente a parte de quem tem um determinado estatuto social em dizer que vê o que se assemelha ser uma sessão pornográfica... de futebol.
Não há razões para tanta vergonha, apesar de em alguns desses programas haver, muitas vezes, quem perca o controlo sobre o que pensa e, sobretudo, sobre o que diz. São momentos intelectualmente penosos, sim, mas estão dentro da realidade televisiva que, na ansiosa procura de audiências, transforma qualquer momento e qualquer tema televisivo numa sessão de entretenimento.
É tudo uma questão de cultura do espectador, que é, afinal, o único responsável por aquilo que vê e quer ver. Não vem mal ao mundo não resistir à tentação de um programa de entretenimento desportivo onde cada actor desempenha um papel de rufia do seu clube, transforma o show televisivo num género de luta na lama e atira palavras à cara do parceiro como antigamente, nos filmes cómicos, se atiravam bolos de creme à cara uns dos outros. Virá mal ao mundo, sim, se o espectador pensar que não está no mundo da ficção e que aquilo é mesmo a realidade, que os actores são pessoas que estão a desempenhar cenas da vida real e que não são pagos, precisamente, para fazerem aquele papel.
Depois, há, ainda, a legitimação da diferença. Pela força (até nos loucos investimentos financeiros) de alguns canais, pelo conjunto de plataformas que abarcam e pelo carácter específico dos seus conteúdos. Um canal como o da Bola TV, que tem uma personalidade sólida e que está necessariamente ligada à força única e credível da marca BOLA não pode ser um canal que não respeite a inteligência dos seus fieis seguidores.
Pode perguntar-se, no que respeita aos canais que insistem, até com algum sucesso de audiências, onde está a sua responsabilidade na defesa e no desenvolvimento do futebol, mas a resposta é óbvia. Nem os canais de televisão, em especial os canais privados, têm qualquer obrigação de desenvolver o futebol ou o que quer que seja, nem os antigamente chamados orgãos de comunicação têm de ter, hoje em dia, demasiadas preocupações na formação de uma sociedade que a hipermodernidade, de que nos fala Gilles Lipovetsky, deformou.
Os tempos são outros e não os podemos olhar com os olhos do passado, sob risco de não compreendermos e apenas nos desgastarmos num emaranhado de lamentos.
É, aliás, esta nova realidade física e intelectual, que alguns filósofos contemporâneos apelidam de era do vazio, que permite e explica aquilo que, apenas há alguns anos, seria considerada uma inaceitável irresponsabilidade de alguns dirigentes desportivos que parecem ter perdido definitivamente as velhas noções de ética do cargo que ocupam, mas não seguidos como líderes religiosos.
A liberdade tornou-se, hoje em dia, tão ampla e tão dispersa que consagra, ao mesmo tempo, e com a mesma dignidade o direito à inteligência e à estupidez. Uma e outra podem ser reflectidas nas mais diversas plataformas formais e informais de comunicação, porque a chuva de informação é de tal forma impiedosa que em vez de trazer mais conhecimento traz mais confusão. Se quisermos encontrar um exemplo, podemos lembrar-nos do trânsito de uma grande cidade. Os automóveis, em princípio, traziam-nos maior facilidade e conforto na mobilidade, mas eles, hoje, são tantos, tantos, que podem, de facto, imobilizar-nos na confusão e no caos.
(...)"

Vítor Serpa, in A Bola

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