"Em 1964, o Zenit não era de São Petersburgo, era de Leningrado. Não tinha os milhões da Gazprom: clube popular sem grandes vitórias no futebol soviético. Defrontou o Benfica em Florença: venceu por 1-0.
Zenit de Leningrado: era assim que o conheciam em 1964, quando defrontou o Benfica em Florença, para um torneio internacional.
A verdade é que o nome oficial do Zenit não leva a cidade a reboque, seja ela a Leningrado dos anos soviéticos (ou São Petrogardo, no início) ou a São Petersburgo do tempo dos czares e deste tempo de agora, sem czares, ou com czares diferentes, os novos do poderio financeiro. Clube de Futebol Zenit - apenas -, nascido das cinzas de um grupo de ingleses instalados na ilha de Vasilievsky, no final da década de 1890, que apelidavam a sua equipa de Ostrov.
A história dos clubes russos (e por influência, dos clubes dos países do leste europeu) é confusa e mereceria bem mais do que as margens estreitas de uma página como esta. Influências sociais e políticas não alteraram somente os nomes das cidades que os albergam, mas também, naturalmente, os seus próprios nomes. Dizem alguns que o Zenit nasceu da transformação de um tal de Murzinka, fundado em 1914, que utilizava o mesmo estádio de Obukhovsky até 1924. Outros, apontam-lhe como predecessor o Leningradsky Metallichesky Zavod (Indústria Metálica de Leningrado, numa tradução ao correr da pena). Há ainda quem insista que foi uma mescla de ambos (acrescida de outras organizações mais pequenas) que deu origem ao Zenit em 1938. Fora de dúvidas é que o berço do Zenit é operário. Algo que ninguém apostaria agora que, nobremente conhecido por Zenit de São Petersburgo, se transformou num dos novos ricos do futebol do mundo, propriedade da poderosíssima Gazprom, a maior empresa de gás natural do planeta.
Nova vida: vida de opulência!
E assim, o sombrio Zenit, que fora uma vez campeão da URSS em 1984 e ganhara uma Taça em 1944, transformou-se num filho da classe rica ao qual tudo pode exigir-se.
Fresquinhos como carpas do Volga
Mas vamos até 1964, Junho, dia 16. Benfica e Zenit de Leningrado encontram-se em Florença. Vence o Zenit por 1-0, com golo de Nepomilev, aos 13 minutos do segundo tempo, num remate que fez a bola bater no corpo de Coluna e enganar Costa Pereira.
Dizem os jornalistas que assistiram ao encontro ao vivo (e não pela televisão, como é moda dos dias que correm, em que os repórteres não levantam o traseiro da secretária para se darem ao trabalho de demandarem aos estádios), que a diferença entre as equipas esteve no factor físico. Os portugueses, que tinham acabado a época, mostravam-se cansados; os russos, que iniciavam a sua, pareciam frescos como carpas do Volga.
Falam também as crónicas da época de uma arbitragem desastrosa do italiano Angelini que chegou a perdoar uma grande penalidade evidente ao Zenit por falta sobre o azougado António Simões.
Bateu-se o Benfica com a classe que lhe era sobejamente reconhecida. Germano, Coluna, José Augusto, Simões, Eusébio e Serafim desenhavam lances ofensivos de qualidade inegável. Impuseram, por seu lado, os adversários uma toada mais dura. As faltas sucediam-se. Os portugueses deixaram-se embalar pela toada tristonha da balada russa, jogou-se cada vez menos, discutiu-se cada vez mais. A bola era apenas mais um elemento pontapeável por entre canelas e joelhos.
E, assim sendo, nada de muito bom se esperava.
Torres e Eusébio foram vítimas da batalha e saíram para dar lugar a Pedras e a Augusto Silva. O Benfica perde qualidade. Forças, já não tinha muitas.
Com a vitória na mão, o Zenit dedicou-se a defender. Bater o grande Benfica, duas vezes campeão da Europa, era motivo de orgulho para os operários de Leningrado. Vontade de trabalhar não lhes faltava. Queixaram-se também eles de um «penalty» perdoado a Germano. Rodearam José Augusto, que passara para o centro do terreno, orientando o futebol ofensivo da sua equipa, de soldados prontos a tudo.
Secaram o terreno. Duros, inflexíveis, mantiveram-se atentos. Nada foi capaz de fazer dobrar a sua vontade, o seu futebol colectivo no qual se destacava Danilov, Trotikov, Vassilev e Burstalkin.
Esta semana, o Zenit volta a defrontar o Benfica. Este outro Zenit: rico, burguês, cheio de jogadores estrangeiros que custam milhões e milhões.
O velho operário de Leningrado vive à grande!
Como o tempo muda a verdade das origens."
Afonso de Melo, in O Benfica
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