"O Atleta Comum
“Eu sei que não sou o maior talento do desporto. Todos sonham ser o melhor do mundo, mas eu sempre fui realista. Prefiro ser um ajudante na minha equipa de sonho do que correr por mim próprio num nível inferior”, disse o ciclista Tim Declercq da equipa Quick-Step, a disputar o estranho Tour deste estranho 2020. Ao fim de uns anos, a não ser os fanáticos de uma modalidade, poucos conseguem identificar os actores secundários que, pela sua simples presença, ajudam a reforçar o brilho das grandes estrelas. Lembramos um Induráin, um Merckx ou mesmo os ídolos caídos em desgraça, como Pantani ou Armstrong, mas o tempo apaga os nomes dos seus ajudantes e, ainda mais, os “aguadeiros” de equipas menores. No entanto, sem eles não existiria o fascínio da serpente do pelotão a percorrer as estradas, não haveria estratégia colectiva, não teríamos as imagens marcantes dos acólitos a carregarem um chefe de fila montanha acima. Os corredores míticos são imortais, extra-terrestres de qualidades que superam o nosso entendimento. Os outros, os seus ajudantes quase anónimos, parecem-se connosco. Por isso, não os vemos. Por isso é que devíamos olhar para eles.
Vitória de Setúbal
Era uma questão de tempo. Tantas vezes o cântaro vai à fonte que um dia acaba no campeonato de Portugal. Durante muitos anos, o Vitória Futebol Clube conseguiu escapar ao destino de outros clubes históricos da Margem Sul como o Barreirense ou a CUF, mas andava sempre na corda bamba: salários em atraso, polémicas, desnorte directivo e dívidas, salvações in extremis. Apesar de algumas descidas e subidas, altos e baixos, o Vitória parecia insubmersível e, de vez em quando, lá alcançava um brilharete – a conquista da taça em 2005, a taça da liga em 2008 – como que a recordar a sua grandeza passada e a afirmar a sua pertença ao restrito grupo dos clubes triunfadores. Porém, os sinais de decrepitude eram inegáveis, bastando olhar para esse belíssimo Estádio do Bonfim e para a sua degradação e também para o laço cada vez menos apertado entre as gentes da cidade e o seu clube. Terá havido em muitas ocasiões má gestão, mas o declínio do Vitória é também o espelho de uma realidade que não se explica apenas por erros conjunturais. Num país em que se confunde desporto com futebol e em que se confunde futebol com os três grandes, é este o destino que aguarda os restantes clubes. Nenhum Schmeichel, nenhum Casillas, nenhum Cavani chega para disfarçar esta pobreza estrutural em que são todos náufragos embora alguns ainda não tenham consciência disso.
Vitória à portuguesa
Bem sei que nestes tempos de correcção histórica qualquer louvor à excepcionalidade portuguesa – a não ser que seja uma excepcionalidade negativa – é visto como uma manifestação de patrioteirismo arcaico e obsoleto, mas na vitória de Miguel Oliveira na Estíria – o que se aprende de geografia com o desporto – eu vi um triunfo à portuguesa, cheio de ratice, inteligência intuitiva e aproveitamento dos erros alheios. Enquanto os dois pilotos que iam na frente estavam entretidos na sua particular disputa, Oliveira esperou pelo momento certo, por uma, como agora se diz, “janela de oportunidade”, e, deixem-me cá pensar num termo adequado, papou-os, comeu-os de cebolada, comeu-lhes as papas na cabeça. O mérito é individual, sem dúvida, e não é por Miguel Oliveira ser muito bom que os portugueses são automaticamente “os melhores”. Mas é impossível ver aquela ultrapassagem, aquela “ratada”, e não sentir uma emoção epidérmica e, ao mesmo tempo, profunda, talvez atávica, mas nem por isso menos legítima, idêntica à que sentimos quando Fernanda Ribeiro triunfou em Atlanta ou quando Éder marcou o golo mais importante e mais improvável da história do futebol português em Paris. Foi uma coisa linda de se ver – quantas vezes podemos dizer isto de um desporto motorizado?
A novela Cavani
As reacções à novela Cavani, ao vem-não-vem, às narrativas paralelas de jactos para Paris e férias em Ibiza, qual filme de espionagem internacional, mostram que o talibanismo e a toxicidade vieram para ficar. Podem acabar com os programas de grunhos engravatados, com as exibições televisivas de testosterona e macho-alfismo sempre no limite da violência e muito para lá de qualquer contenção verbal e dever de urbanidade, que o mal já está entre nós. Gozar com os infalíveis papas da nossa fé? Achar ridícula, além de incoerente, para a realidade do nosso futebol a contratação milionária de um jogador? Logo descem das árvores e saltam das grutas os pitecantropos de todas as cores armados de fervor clubístico e iliteracia para carregar sobre os hereges. Cartilheiros? Os clubes não precisam de cartilheiros. Para quê pagar a alguém quando se tem ao dispor um exército de voluntários acéfalos?"
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