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terça-feira, 17 de março de 2020

O feiticeiro-marinheiro da margem sul do Tejo

"Uma surpreendente derrota do Benfica no Barreiro - a única do Campeonato Nacional de 1971-72 - trouxe à superfície uma figura até então desconhecida, António Manuel Conde de Araújo e Brito. Chamaram-lhe o Pai da Vitória. Abria novas visões sobre o futebol...

A derrota do Benfica no Barreiro, face ao Barreirense (0-1), não podia deixar de ter foros de sensação. Estávamos no final de Março de 1972, e, até aí, domingo após domingo, os encarnados iam triturando adversários. Por isso, aquela tarde no Campo D. Manuel de Melo ficou marcada a fogo nas letras do campeonato.
O treinador do Barreirense era Carlos Silva, o meu querido amigo Carlos Silva, com o qual trabalhei durante anos, com o qual reparti tantos e tantos momentos, tantas e tantas horas de conversa. Mas, curiosamente, não era o Carlos Silva que andava nas bocas do mundo. Era um bruxo, um feiticeiro... Ou melhor: um comandante da marinha portuguesa. Eu explico já aí abaixo.
António Manuel Conde de Araújo e Brito. O nome diz-vos alguma coisa? Provavelmente, não.
Tarefa: preparar psicologicamente os jogadores do Barreirense.
Não havia grandes dúvidas fora ele o maior responsável pela vitória sobre o Benfica. Fizera os seus rapazes sentirem-se capazes do impossível.
Utilizava várias técnicas até então desconhecidas entre nós. Na sua maior parte derivadas do Hata-Yoga, uma forma de, através do relaxamento, estabelecer um equilíbrio mental com visa à superação. António Manuel era um rapaz ainda novo. Tinha a cabeça cheia de sonhos. E o futuro estendia-se na sua frente como uma planície que busca o abraço das montanhas.

Essa vitória única
A vitória do Barreirense sobre o Benfica, nessa tarde de 1972, trouxe o comandante Araújo para as páginas dos jornais. 'O homem que bateu o campeão com o poder da mente!', disse dele um vespertino. Mas o próprio desvaloriza tamanha importância: 'Cabe-me, principalmente, a evocação do estímulo. Quando apresentei o meu projecto ao treinador Carlos Silva e, em seguida, à direcção do clube, mostraram-se muito interessados na minha intervenção. E os jogadores também estiveram muito disponíveis. Não vejo que haja qualquer diferença entre a preparação de um jogador de futebol ou a de outro qualquer indivíduo, independentemente da sua área profissional. O meu principal trabalho é explicar o que se pretende do seu esforço para a obtenção de um determinado objectivo'.

Simplista, no mínimo
Oitavo lugar final, entre 16 participantes: nada mau, mas também nada de particularmente extraordinário para os barreirenses.
Ainda assim, 11 vitórias. O Benfica foi campeão tranquilo, com mais 10 pontos do que o segundo classificado, o Vitória de Setúbal. O treinador encarnado era Jimmy hagan, que, ao contrário do comandante Araújo, falava pouco, muito pouco. 'Mr. No Comments!'.
Na segunda volta o Benfica vingar-se-ia com juros: 5-1!
Afirmava Araújo: 'Acho que deve ser posta à disposição de qualquer profissional de futebol uma determinada orientação psicológica que lhe possibilite combater as deficiências inerentes à sua profissão.' Aí a curiosidade despertava. E quais são? Quais são? O homem, impávido:
'O futebol provoca todo o tipo de conflitos de carácter muito particular e que também afecta de forma muito intensa a massa de adeptos'. O comandante procurava ir ao mais longe possível no seu estudo: 'A acção de um psicológico junto de cada uma das equipas da I Divisão, por exemplo, parece-me inevitável e indispensável. Talvez assim muitas das situações desagradáveis que decorrem em campo ou nas bancadas pudessem ser evitadas'.
Passaram-se décadas. Hoje em dia, as equipas não dispensam os psicológicos. Mas terão sido debelados os problemas? Nos campos? Nas bancadas? Não me parece.
Além do mais, depois de o comandante Araújo ter surgido à boca de cena, rapidamente surgiu alguém a recordar Bélla Guttmann: havia lá treinador mais psicológico do que ele? O húngaro mágico cujas palavras podiam mudar o destino de um jogo?
'Procuro ajudar os jogadores a relaxarem', dizia o homem que todos apontavam como grande responsável pela vitória do Barreirense sobre o Benfica (a única derrota das águias nesse campeonato, ainda por cima!). 'Quero combater alguns dos males desta nossa época, como são os casos do stress e do surmenage, a angústia e a depressão, e admito recorrer à hipnose para isso - para garantir uma área no cérebro a que chamo de 'ponto vigilante'.'
Quanto à pergunta fundamental - qual fora a contribuição do comandante/psicólogo para o triunfo dos barreirenses? -, ele reduzia-a a um momento: 'Provoquei, nos balneários antes do jogo, uma experiência desconfortável. Resolvê-la, libertou-os. Tirou-lhe um peso de cima, tornou-os mais disponíveis. Mais próximos de conseguirem abater um adversário, decididamente mais forte'.
O marinheiro-feiticeiro estava na moda. Mas não tardou a desaparecer na espuma dos dias..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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