"As pinturas rupestres de mãos, impressões positivas ou negativas, datadas entre 28 e 40 mil anos, quer sejam as mais antigas as de La Pasiega, de Chauvet ou da ilha de Sulawesi, transformaram o ser humano em espectador. O desporto transformou esse mesmo ser humano em espectador-consumidor.
Hannah Arendt dizia-nos que a excelência – areté – necessitava da presença dos outros, de um público formal. Em 1936 já Hitler tinha percebido isso ao fazer transportar a tocha olímpica de Olímpia para Berlim, quando a televisão dava os seus primeiros passos na divulgação das imagens de uns Jogos Olímpicos…
Hannah Arendt dizia-nos que a excelência – areté – necessitava da presença dos outros, de um público formal. Em 1936 já Hitler tinha percebido isso ao fazer transportar a tocha olímpica de Olímpia para Berlim, quando a televisão dava os seus primeiros passos na divulgação das imagens de uns Jogos Olímpicos…
Mas os atletas também perceberam que a existência desse público formal poderia servir para passar as suas mensagens. Tommie Smith e John Carlos, ao fazerem a saudação típica dos Black Panthers no pódio, foram talvez dos primeiros a demonstrarem isso nos Jogos Olímpicos de 1968, no México.
Recentemente, no mundial de futebol, na partida entre a Suíça e a Sérvia, que a primeira venceu por 2-1, Xherdan Shaquiri e Granit Xhaka, autores dos golos da Suíça, comemoraram os mesmos fazendo um gesto, com as mãos cruzadas, aludindo à águia de duas cabeças da Albânia. Disse-se que provocaram os adeptos sérvios… Contextualizemos: Xhaka é filho de pais albaneses de origem kosovar ao passo que Shaqiri é mesmo kosovar… e sabemos que a Sérvia não reconhece a independência do Kosovo.
A FIFA, solícita, abriu um inquérito e multou os dois jogadores suíços em 8,7 mil euros. Curioso a FIFA também sancionar jogadores que chamem «macaco» a um adversário considerando isso racismo e não sancionar um jogador por injuriar a mãe de um árbitro ou de um adversário porque esses termos fazem parte da linguagem do futebol… Hipocrisia ponto um!
Em 1999 a Nike pagou 500 mil dólares à União Ciclista Internacional para encobrir uma análise positiva de Lance Armstrong… (veja-se Albergotti, R. & O'Connell, V., 2014, “Lance Armstrong – o ciclista”, Alfragide, Livros D'Hoje). No entanto, a mesma Nike, em Outubro de 2012, ano em que Armstrong perde os seus 7 títulos do Tour, emite um comunicado onde expressa ter sido enganada por Armstrong durante mais de uma década e que a mesma “não tolera o uso de drogas ilegais que melhorem o desempenho desportivo”. Hipocrisia ponto dois!
E se o desporto criou o espectador-consumidor, a entrada da publicidade em jogo neste levou a alterações profundas no espectáculo. O que significa alterações profundas no desporto.
Antes da era Armstrong, alguém na Europa conhecia os US Postal? Ou deles tinha ouvido falar? Não, foi ele que lhes deu visibilidade, foi ele que os publicitou durante todos os anos em que os carregou às costas. Mas o Estado norte-americano pretende reaver de Lance Armstrong – como se só ele fosse patrocinado e não toda a equipa – a quantia de 85 milhões de euros por sentir-se defraudado pelo patrocínio abonado pelos US Postal entre 2000 e 2004… com juros referentes a 13 anos… Hipocrisia ponto três!
Se o consumo do desporto pelo espectador e a publicidade provocaram mutações no desporto, a intromissão da política no mesmo maior alteração veio a provocar. O atentado ocorrido nos J. O. de Munique, em 1972, e os boicotes aos J. O. de 1980, em Moscovo, e aos de 1984, em Los Angeles, são provas macro disso (não nos ocuparemos das provas micro por agora). Actualmente, muitos desportistas, principalmente de futebol americano, nos Estados Unidos, ajoelham-se durante a entoação do seu hino como forma de protesto em relação às políticas daquele país. Donald Trump já se pronunciou: “a primeira vez que se ajoelharem devem ser expulsos do jogo, à segunda devem ser proibidos de jogar durante a temporada e ficar sem salário”. Aguardemos os próximos capítulos… para vermos a força da política sobre o desporto ou a capacidade do mesmo resistir à intromissão da mesma.
“Uma vozearia rebentara no solar. Voltaram para trás a toda a pressa e tornaram a espreitar pela janela. Sim, eclodira uma violenta altercação. Havia gritos, murros na mesa, olhares ferozes de desconfiança, desmentidos irados. A origem do tumulto parecia residir no facto de Napoleão e o Sr. Bonifácio terem jogado simultaneamente dois ases de espadas.
Doze vozes gritavam, furiosas, e todas se assemelhavam. Era agora evidente o que sucedera aos rostos dos porcos. Os animais diante da janela olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos, e novamente dos porcos para os homens: mas era já impossível distingui-los uns dos outros.” Assim termina George Orwell o seu «A Quinta dos Animais». Assim se encontra o desporto… refém do espectador-consumidor, da publicidade, da política e da hipocrisia."
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