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sábado, 12 de maio de 2018

A alegre nazificação do futebol

"O tipo que no último mês de Novembro divulgou a fotografia de um árbitro espancado acrescentando à inequívoca brutalidade da imagem o comentário "este não rouba mais" é o mesmo tipo que esta semana foi alegremente acompanhado até Fátima pelas câmaras de uma estação de televisão que não quis perder um instante sequer daquela peregrinação jovial e desportiva. Sem memória, que é a sua essência, o jornalismo torna-se cúmplice e parte interessada nos desacatos das chamadas "claques" do futebol. Tomem-se por exemplo os festejos da conquista do título à porta do hotel onde os novos campeões pensavam pernoitar. As tochas a arder lançadas pela congregação de fieis pegaram fogo ao edifício obrigando os jogadores a mudar de hotel a meio da noite. Foi, assim, proporcionada a extensão das transmissões televisivas em directo preenchendo-se as emissões com aquele bónus de conteúdos provocados pela "alegria" do momento.
Na mesma semana, num outro lugar do país – e o país não é muito grande – ouviu-se um outro bando entoar alegremente cânticos celebrando a morte de um sujeito que "ficou sem cabeça" num confronto entre gangues de cores rivais. Tal como já se tinha ouvido a outros uns quantos cantares sobre a queda de um avião que transportava uma equipa brasileira de futebol quando, segundo a letra da canção, melhor fora que o avião fatal transportasse uma equipa cá do burgo. Gente desta, abusivamente escorada na força social das cores com que se fardam, protegida pela cobardia e inoperância dos legisladores e amparada pela inacreditável condescendência da imprensa, vai tomando o futebol – o jogo – como refém enquanto nos enchem os ouvidos com a sua cultura de ódio e de morte. A ponto de já ser considerado "normal" pelos cidadãos mais incautos todo o aparato que o Estado coloca à disposição para garantir a tranquilidade – de quem? – quando os arruaceiros se deslocam em marchas militarizadas com os seus cânticos odientos e as simbólicas tochas de um lado para o outro para irem à bola.
Há quem jure a pés juntos que o Estado faz lindamente em gastar dinheiro e em dispensar efectivos para proteger a população do contágio com a turba e para pôr o património a salvo da delinquência quando, na realidade, é precisamente o contrário que acontece. São os desordeiros que marcham protegidos pelo esforço cândido de quem não quer ver a besta quando a besta levanta a cabeça. Calma, é só futebol dirá muita gente tranquila. Mas não é só futebol quando o futebol se transfigura em santuário de acolhimento de semelhantes barbaridades, quando o despejar de tochas sobre um jogador num relvado é defendido alegre e oficialmente como "um festival pirotécnico dos melhores já alguma vez vistos em Portugal" e que "devia ser repetido mais vezes". Será, certamente, por uns e por outros, à vez. De que cores se vestem? Tanto faz. São, no fundo, camisas castanhas e colapso do Estado."

Leonor Pinhão, in Record

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