"Os corações enquanto estão vivos têm caminhos particulares, exigem por isso nomes diferentes
Em tempos de sustos cardíacos, um elogio ao coração
A forma
1. A forma do coração há muito deixou de ser uma forma orgânica e parece ter-se juntado às formas da geometria clássica: o quadrado, o triângulo, o rectângulo, a circunferência e o coração. As cinco formas - quatro que são artificiais e uma que é humana e representa a vida.
O humano inventou a roda, o coração terá inventado a bondade, dizem os mais optimistas.
Nomes iguais, nomes diferentes
2. No livro História Universal do Coração, de Richard Lewinsohn, é lembrado que algumas tribos índias «usam a mesma palavra para coração e estômago». Claro que essas tribos sabem bem que esses órgãos são elementos diferentes, mas talvez sejam vistos como duas coisas que mexem, que têm batimentos, mais ou menos evidentes. Para essas tribos o corpo inteiro digere: o estômago digere alimentos, o coração digere sangue (os pulmões: o ar) e o cérebro recebe, digere e transforma os pensamentos. O corpo inteiro como um grande estômago.
Numa outra tribo do Mato Grosso, os indígenas usam duas palavras diferentes «uma para o seu próprio coração (nomaihaci)» e uma outra palavra para «o coração dos outros (maihaciti)». É como se dissessem: o meu coração não pode ter o mesmo nome. Os corações enquanto estão vivos têm caminhos particulares, apaixonam-se por coisas e pessoas distintas, exigem por isso nomes diferentes. A anatomia não tem tanta importância como a biografia. É a forma como cada um vive que acabará por dar o nome ao seu coração.
Loucura e coração
3. Há ainda belas superstições em redor deste órgão essencial. Os nativos da tribo da Ilha Nias da Indonésia, por exemplo, sempre segundo o livro de Lewinsohn, têm uma explicação para a loucura, que passa, no fundo, por uma alteração, concreta das coordenadas do coração (x, y). A loucura, defende esta tribo, é provocada por um espírito que entra no corpo e «empurra o coração para cima». Isso mesmo: empurra, como se o coração fosse um móvel que os espíritos zangados decidem mudar de sítio.
Coração e consciência
4. Para a forma de pensar do antigo Egipto, o coração era o local onde se alojava a consciência moral humana.
A cabeça pensava, raciocinava, fazia cálculos e usava verbos para explicar o mundo. Já o coração era um órgão mudo, porém era aquele por onde passariam esses dois caminhos que na Antiguidade era claramente separados: o caminho do bem e do mal. Assim, o coração era a testemunha prieira do corpo; era o coração que olhava para os actos dos braços e do resto da pele e os julgava. Ele «era a testemunha final» da vida de um humano e, por isso, depois de morto, coração e homem separavam-se. O Homem ia para «banco dos réus» e o coração era a testemunha. No julgamento, o juiz perguntava à testemunha (coração) se o réu (o resto do corpo) se tinha comportado bem. Coisa estranha, um órgão do corpo depor a favor ou contra si próprio ou contra o resto do corpo. Mas sim, era isso. Era o grande órgão, um órgão portador de um espírito que sobrevivia. Em termos concretos, no julgamento dos mortos, o coração era pesado numa balança - acção simbólica, claro. Pesavam-se, no fundo, os actos bons e os actos maus. Podemos até pensar numa espécie de contas de mercearia moral: 10 Kg de actos bons menos 5 Kg de actos maus igual a um saldo de 5 Kg de bondade. Mas claro, não há uma verdadeira unidade de medida para o moral. No entanto, o coração foi sempre a referência.
Nada de raciocínios
5. O «coração, se pudesse pensar, pararia», escreveu Pessoa. O coração é importante, para os antigos e para os contemporâneos, mas que o coração não pense demasiado, dele só queremos que bata ao ritmo certo que a biografia exige. Que mantenha o ritmo como a bateria da banda."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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