"Vai sempre uma grande distância entre um sistema doutrinário e a prática que o realiza. São muitos e de diversa índole os livros sobre treino desportivo, mas nenhum deles “faz” um Di Stéfano, um Pelé, um Cruyff, um Maradona, um Ronaldo, ou um Messi. Os livros podem ajudar o campeão a fazer-se a si mesmo, nada mais. Os livros e o treino! O campeão nasce potencialmente preparado para ser campeão. Mas é principalmente pelo treino visível e pelo treino invisível que ele actualiza o que é, em potência. Eu sou um defensor consciente e perseverante de uma boa leitura mas, no que à leitura diz respeito, nota-se um problema grave, no nosso desporto: os “agentes do desporto” portugueses normalmente não lêem, nem sabem o que devem ler. Como não conhecem o paradigma que fundamenta e norteia a prática desportiva, a sua “ciência normal” é a que vem escrita nos manuais de treino; e, porque os manuais de treino dizem todos a mesma coisa, acobertada por rótulos que só iludem ingénuos ou aqueles que se deixam iludir – os nossos “agentes do desporto”, ou deixam, desanimados, rapidamente de ler, ou refugiam-se na prática, imitando até à exaustão os profissionais mais antigos, detentores de incomparável experiência e com êxitos (muitos êxitos) no currículo. Só que, muitas vezes, os mais velhos aconselham os mais novos em tom marcial e decisivo, como se a sua experiência estabelecesse a objectividade total de um jogo de futebol, ou de qualquer outra modalidade desportiva. Vale aos neófitos a paciência e a simpatia doutros antigos jogadores e treinadores, que ensinam a sorrir o muito que sabem. Bruno Lage, actual treinador do Benfica, teve a sorte de encontrar um destes “missionários” de uma correta prática do futebol e de uma pedagogia que leva os alunos ao questionamento dos quadros mesquinhos de algumas teorizações.
Segundo o jornal A Bola, de 16 de Fevereiro de 2019: “Na sombra estava uma das pessoas que mais marcaram a vida de Bruno Lage: Jaime Graça. O magriço de 1966, glória do Vitória de Setúbal e do Benfica viu, no preparador físico, potencial de futuro. Como o próprio treinador do Benfica confessou, depois de assumir um compromisso com os mais jovens do Benfica, só queria ser preparador do Benfica. Mas já ali estava um futuro treinador. Jaime Graça tinha-o fisgado”. Aliás, “a grande escola do Bruno foi o Jaime Graça, foi um segundo pai para ele (…). As jantaradas com Jaime Graça acabavam com a toalha repleta de esquemas tácticos”, onde escreviam, tanto o Jaime Graça, como o Bruno Lage. De facto, para alcançar-se um conhecimento rigoroso e objectivo, há necessidade de um trabalho interdisciplinar prática-teoria. Muitas vezes, na universidade, anula-se o espírito crítico, com o culto abusivo de um “magisterdixismo” puramente teórico. E, para mim, quem só teoriza não sabe. Mas… quem só pratica – normalmente repete! O objecto da história de uma área científica é um objecto construído, cujo inacabamento parece sempre essencial e que só a síntese prática-teoria pode ajudar a um claro desenvolvimento, quero eu dizer: nenhum método (ou eminentemente prático, ou declaradamente teórico) tem, em si, a chave da resolução de um problema, qualquer que ele seja. As grandes revoluções científicas, desde o século XVII, até hoje, foram proclamadas, formuladas, teoricamente, mas visavam sempre religar os “dados da experiência” com a revolução filosófica que habitualmente acompanha as crises, no âmbito das ciências. Uma revolução, ao nível das ideias, precisa de condições materiais e sociais, necessárias à sua emergência. As condições históricas, que possibilitam uma revolução científica, são de vária ordem. Não nos é lícito, porém, separar as ideias do seu enraizamento concreto. Prática-teoria estão íntima e estruturalmente ligadas.
Bruno Lage é um exemplo que se me afigura importante salientar. É licenciado em Educação Física e Desporto, tem portanto a cultura e a formação suficientes e um máximo de prática, de saber-fazer, que lhe permitem alicerçar, com segurança, isto é, com racionalidade e objectividade, a sua prática profissional. Neste caso (como nos demais) o conhecimento universitário é indispensável, mas há tanta coisa mais a ter em conta, na prática profissional de um treinador desportivo. Voltemos ao jornal A Bola, agora na página da colaboração semanal de Jorge Valdano: “Aconteceu com Del Bosque, com Zizou, mais atrás no tempo com Luís Molowni e agora com Santiago Solari. Habituamo-nos a dizer que o denominador comum dos seus êxitos é a gestão do balneário. Uma meia-verdade. Em todos os casos mencionados, há um respeito pelo talento do jogador, um reconhecimento de que o futebolista necessita de uma certa liberdade, para assumir a sua responsabilidade profissional. Ou é brando deixar no banco Isco, Marcelo e Bale? Há muita coragem implícita em ser justo e escolher em função do mérito. Esse é o principal trabalho. Os restantes aspectos são detalhes que podem esperar. Dar poder aos jogadores da formação, perante a maturidade e personalidade do plantel do Real Madrid e coloca-los diante da sua responsabilidade profissional – é algo que tem mais inteligência do que todos os métodos que visam apurar o jogo de uma equipa. Se queremos elogiar Solari, comecemos por aqui”. Já escrevi, há um bom par de anos, que “é o homem (ou a mulher) que se é, que triunfa no treinador que se pode ser”. Antes e depois da síntese prática-teoria, como necessidade inadiável à prática profissional de um treinador, há que recorrer à inteligência, à sensatez, à coragem, a uma fidelidade constante a valores, para que o seu mourejar diário possa resultar em êxitos. Embora, na alta competição, reconheçamo-lo, ninguém ganha por ter valor, mas tem valor porque ganha.
Alto, simpático, aprumado, com olhar firme, voluntarioso e, pelo que oiço, um aparteador com piada, Bruno Lage pode ser, para Luís Filipe Vieira, um dos seus colaboradores mais valiosos, dos seus conselheiros mais argutos, dos seus amigos mais fieis. Dá mostras de ser pessoa onde os vícios de uma certa politicagem, típica do futebol, ainda não lhe corroeram a integridade do profissional. Umas das coisas que mais me espanta, nele, é a facilidade como toma decisões difíceis e, nas entrevistas televisivas, sabe explicá-las, com o seu ar repousado, paciente e bonacheirão. Parece ser também um treinador que não se compromete com beligerâncias desnecessárias. Enfim, observado de longe, parece ser pessoa sem gestos desrazoados e golpes descompostos e, sobre o mais, que muito sabe do seu ofício. E com aquela sabedoria, que é mais do que ciência. Na universidade, ainda se encontram alguns positivistas que aconselham os alunos a acreditarem tão-só no que trouxer o rótulo de científico. Para eles, fora da ciência só há conversa displicente, tagarelice, ideologia. Só que o rótulo científico encobre, repetidas vezes, todo e qualquer saber, mesmo aquele que apodrece em velhas teses de doutoramento. Sei que, desde o seu nascimento, no século XVII (isto é, com a revolução de Galileu) a ciência moderna distingue-se por um enorme potencial crítico. De facto, nesses recuados anos, a ciência representava (e opunha) a ordem da Razão contra o Dogma e a ordem da Crítica contra o Absolutismo Monárquico. Está por fazer-se, com humildade, uma verdadeira interdisciplinaridade Ciência-Filosofia-Teologia. A interdisciplinaridade, para mim, não é algo que se pratica, unicamente, na universidade e nos laboratórios – é para ser vivida, ao longo da vida toda, incluindo no futebol. E onde o saber do Jaime Graça, o principal mentor de Bruno Lage, deve entrar, em interdisciplinaridade, com o saber universitário. Para que possam nascer mais Brunos Lages. E se reconheça a indissociabilidade entre o ensino e a pesquisa…"
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