"De todos os prognósticos que podiam ter sido feitos sobre o Uruguai-Portugal, o mais ignóbil - o mais insultuoso - seria prever um "bom espectáculo". Não foram bons espectáculos que nos trouxeram aqui. O Uruguai chegou a este ponto - e refiro-me a um itinerário maior do que a soma dos jogos do seu grupo - não com espectáculos, mas adoptando uma abordagem fanática à pura competência. E Portugal dedicou (cada vez mais se suspeita que involuntariamente) grande parte dos últimos três anos a purgar quaisquer possibilidades adjectivais, reduzindo tanto os seus métodos como os seus triunfos a uma gigantesca tautologia: isto funciona através do seu funcionamento, ora atentem, por obséquio, nesta taça que aqui temos.
O que aconteceu no Estádio Olímpico de Sochi foi um confronto entre as duas potências futebolísticas mais improváveis dos seus respectivos continentes. De um lado um país de três milhões de habitantes, detentor do record de títulos oficiais (vinte) no futebol internacional; que organizou e ganhou o primeiro Campeonato do Mundo; que ganhou outro, vinte anos depois, silenciando o estádio mais repleto na história do desporto; que venceu dois torneios Olímpicos; e que conquistou quinze vezes a Copa América, mais do que Brasil e Argentina, os dois gigantes entre os quais a geografia o entalou.
Do outro lado um país que ganhou todos os Europeus e Mundiais para os quais convocou o André Gomes.
Tinha tudo para ser um encontro decidido pela contabilidade de momentos de eficácia e foi mais ou menos isso que aconteceu. Portugal teve o azar de encontrar uma organização colectiva que é a forma platónica da cópia imperfeita que nós próprios encarnámos por acidente desde o Euro-2016: uma maneira de defender que começa por questionar criticamente todos os pressupostos do adversário antes sequer de interceptar o primeiro cruzamento. A juntar a isto, Diego Godín, que pode ou não ser o melhor defesa-central do mundo, mas que é certamente o melhor a neutralizar os modos específicos como Portugal consegue criar perigo. O golo vespertino obrigou-nos também a recuperar um hábito dormente: reagir a um jogo que, à nossa revelia, se torna interessante.
A reacção não foi de todo desinteressante; foi apenas contra os nossos melhores interesses. Cristiano Ronaldo despediu-se (a ver vamos) de Mundiais com um desempenho de brusca futilidade, procurando freneticamente soluções mais no passado do que no presente, como o processo mental de alguém incapaz de adormecer. E Bernardo Silva lá mostrou um vislumbre do que pode ser o futuro a médio-prazo: a aposta ocasional no transporte de bola, ao invés da distribuição por correio aéreo.
A melhor, mais justa, e menos surpreendente notícia da noite foi a grande exibição de William Carvalho, a juntar às exibições globalmente positivas que já fizera nos jogos anteriores. Esta segunda opinião não é consensual, porque quase nada sobre William é consensual. Faz parte do seu fardo que as manifestações mais subtis do seu talento sejam tratadas como óbvias e que as mais óbvias sejam recebidas como um mistério. O seu principal problema é que o seu principal atributo é o mais difícil de detectar, até porque os efeitos são uma função da escala, da acumulação, da continuidade. Já o maior defeito é tão fácil de detectar que por vezes nem é preciso vê-lo; basta fazer uma piada, que tratará de se cumprir sozinha.
Quando tem a bola, o que William faz é expressar uma opinião. Quando o adversário tem a bola, o que William faz também é expressar uma opinião (e por vezes, sim, por vezes essa opinião não é mais sofisticada do que "esta pessoa vai aqui a passar muito depressa à minha frente"). Mas quando são os colegas a ter a bola, William deixa de ser um portador de opiniões, e passa a ser a garantia de uma ideia.
Definir essa ideia não é uma tarefa fácil, e se calhar ajuda ter visto mais de 150 jogos dele nos últimos cinco anos, alguns entre o bom e o sublime, alguns razoáveis, outros francamente péssimos.
Por exemplo: é raro, mas acontece, William fazer um mau passe (raro porque a sua rigorosa paciência se traduz na relutância em arriscar qualquer passe que deixe o colega em dificuldades maiores do que o próprio William sentirá caso não o faça). Mas quem tenha visto os tais 150 jogos pode garantir que é muitíssimo mais frequente vê-o receber um mau passe. E não falo de um passe inexacto ou imperfeito, mas de um daqueles passes que, mesmo chegando em condições, deixa o destinatário sem escolhas, o tipo de passe que consiste essencialmente em transferir a posse de um problema insolúvel. E é nesses momentos que a tal ideia se torna mais clara, porque quando William recebe um mau passe é quase sempre porque ele próprio decidiu recebê-lo.
William não é o tipo de médio que promova uma acção de vanguarda igualitária, elevando todos os colegas a um nível superior, obrigando-os a jogar melhor. O que faz é impedi-los de jogar em aflição - e portanto pior. Não há milagres no seu jogo, apenas um imperativo moral: ninguém deve estar sozinho, ninguém deve ficar sem opções, ninguém deve sentir que não tem um último recurso, ninguém deve ser obrigado a agir em desespero. E isto descreve menos um "trinco", na verdade, do que uma espécie de Estado Social. Daí a sua vulnerabilidade à crítica, pois é fácil observar as suas múltiplas ineficiências, e todos os momentos em que os seus serviços falharam ou chegaram demasiado tarde. E será provavelmente o seu trágico destino passar o resto da carreira como alguém cujo maior mérito é contrafactual: as coisas seriam muito piores na sua ausência."
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