"Seria um exagero defender que o jogo para determinar o terceiro e quarto lugares se realizou num lugar apropriado, porque não há lugar apropriado para tamanha abominação. Mas São Petersburgo foi, pelo menos, um lugar propício para a Bélgica se despedir do Mundial com um "até breve".
Reza a lenda que a cidade nasceu de um Verbo, de uma instrução proferida com peso bíblico. Numa manhã enevoada de 1703, Pedro I, o Czar de Todas as Rússias, cavalgava pelos pântanos onde as águas do Nevá chegam ao Golfo da Finlândia, à procura de um sítio para acampar. Por fim apeou-se, desembainhou a espada, rasgou uma cruz na turfa e disse: "Será aqui erguida uma cidade". E assim foi. Construída não só em cima de um pântano, mas de um pântano que na altura nem sequer lhe pertencia (as terras eram reclamadas pela Suécia, a meio de uma guerra de 20 anos com a Rússia). Mas Pedro I tinha uma visão e queria uma nova capital. Milhares de servos escavaram fundações com as próprias mãos, transportando terra nas dobras das roupas. Áreas pantanosas foram drenadas; ergueram-se muros para evitar inundações. Arquitectos, pedreiros e engenheiros foram contratados para abrir "uma janela para o Ocidente". Cem mil servos morreram durante os trabalhos. Depois foi preciso povoar a cidade, e Pedro I decretou a mudança de milhares de moscovitas, a quem ordenou que aparassem as barbas, vestissem roupa alemã e se comportassem genericamente de forma mais europeia. E a capital mais imaginária do continente foi-se tornando real.
A renascença do futebol belga não foi um projecto menos delirante; e também começou com alguém a declarar uma utopia em voz alta.
Em Junho de 2000, pouco depois de uma derrota com a Turquia ter feito da Bélgica o primeiro país organizador de um Campeonato da Europa a ser eliminado na fase de grupos, o presidente da Federação belga fez um telefonema ao seu director-técnico, Michel Sablon: "Há algo de profundamente errado com o nosso futebol. Tens de mudar isto e começar do princípio". A reacção de Sablon (segundo reza uma lenda já tão refinada como a de Pedro I no estuário do Nevá) foi pegar numa folha de papel em branco e escrever a seguinte frase: "O futebol belga não presta, é preciso melhorar".
O que Sablon fez foi dedicar os anos seguintes a invalidar essa frase. A tarefa não implicou varrer apenas qualquer porcaria residual na Federação, mas sim deitar ao lixo toda uma maneira de pensar. Começou por passar dois anos a calcorrear o país, assistindo a todas as competições jovens, comparando depois processos, estruturas e resultados com os vizinhos próximos, França e Holanda. Contratou peritos da Universidade de Leuven para analisarem quase duas mil horas de jogos filmados e recolherem dados estatísticos (sobre número total de passes, número de toques na bola por cada jogador, etc.). Uma das conclusões a que chegou - a de que havia um foco excessivo nos resultados e insuficiente no desenvolvimento de atributos individuais - deu início à revolução. O modelo de treino que idealizou para os escalões jovens, e que a Federação obrigou todos os clubes a seguir, encurtou as dimensões dos campos, e eliminou balizas, passes longos e foras-de-jogo das primeiras etapas formativas. Tudo isto vinha de um desejo de replicar as condições do futebol de rua num contexto de laboratório, depurando o processo de aprendizagem até o reduzir aos princípios elementares: a finta, o passe curto, a tabelinha. No fundo, a sua ideia mais original e eficaz terá sido a percepção de que o instinto competitivo a estimular era não o de querer vencer, mas um muito mais próximo do apelo primitivo do jogo, que precede a existência de balizas e a preocupação com o resultado final: o de querer ser melhor que o adversário, e conseguir ludibriá-lo, naquele breve momento em que um tem bola e o outro não.
A selecção da Bélgica hoje não é uma execução directa do projecto de Sablon (que mandatava, entre outras coisas, um sistema obrigatório de 4-3-3 a ser usado em todos os escalões). E muito do sucesso recente é inseparável de uma base de recrutamento estratosfericamente alargada pela emigração, capaz de cozinhar um lote de estrelas com origem no Congo, Mali e Marrocos. Mas aquilo que em 2014 e 2016 ainda parecia uma colecção de efeitos especiais à procura de um guião, conseguiu agora a melhor classificação da sua história, proporcionou dois dos melhores jogos do Mundial (contra Japão e Brasil), e teve em Hazard o jogador mais consistententemente entusiasmante da prova.
Qualquer "geração de ouro" (tal como São Petersburgo, com a sua a reputação vagamente amaldiçoada de lugar roubado à natureza), vive sempre à sombra do vazio que se arrisca a deixar, quando esgotar o tempo que pediu emprestado ao futuro. Mas no Mundial do Qatar em 2022, De Bruyne, Courtois e Meunier terão 30 anos, Hazard 31, Lukaku 29, Tielemans 25 - fora aqueles cujos nomes ainda nem sequer conhecemos. O futebol belga não prestava e agora presta. Consigam ou não construir algo maior, será sempre interessante observar algo que nasceu numa folha de papel em branco e numa frase indignada."
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