"Como é que um país com menos de 30 anos, 4 milhões de habitantes, ainda a lamber as feridas da guerra e com um futebol onde grassa a corrupção e a precariedade das infraestruturas consegue chegar à decisão de um Mundial é algo que até os próprios croatas têm dificuldade em explicar. Esta é a história de uma final improvável - e polémica, no próprio país
Tentem imaginar a importância que tem o futebol para um povo que viu o ponto de ruptura da sua luta pela independência acontecer precisamente num jogo de futebol. Vamos recuar a 13 de maio de 1990. Nesse dia, Dínamo Zagreb e Estrela Vermelha de Belgrado jogavam na capital da então República Socialista da Croácia, para a liga jugoslava, poucas semanas após os independentistas croatas terem vencido as primeiras eleições multipartidárias no território em quase 50 anos. A tensão entre adeptos sérvios e croatas rapidamente se transformou num multitudinário motim. Entre gritos de “Zagreb é Sérvia”, pedras atiradas pelos adeptos do Dínamo, a resposta à facada dos sérvios e o gás pimenta atirado pela polícia, o relvado tornou-se num campo de batalha. Não houve mortos, mas houve feridos. E a partir daquele jogo, a ferida aberta do ódio nunca mais fechou. A Croácia declararia a independência em Junho de 1991, mas a guerra com a Sérvia arrastou-se até 1995.
Boa parte dos 23 jogadores croatas que este domingo, a partir das 16 horas, vão tentar tornar-se campeões mundiais frente à França, nasceram antes ou durante a guerra. Luka Modric, talvez o melhor jogador deste Mundial, o médio que, como tão bem apontou Jorge Valdano, “enche o campo de senso comum”, viu as milícias sérvias matarem-lhe o avô e outros seis familiares. O médio do Real Madrid tornou-se refugiado e passou a infância a viver em hotéis na cidade de Zadar. A família de Dejan Lovren fugiu para a Alemanha, onde o central viveu até aos 10 anos. Foi também na Alemanha que se refugiou a família de Mario Mandzukic, o homem que marcou o golo que derrotou a Inglaterra nas meias-finais e deu a este país com menos de 30 anos e pouco mais de 4 milhões de habitantes uma inédita e, diz-se por Zagreb, miraculosa ida a uma final de um Mundial.
A Croácia poderá tornar-se no 2.º país com menos população a vencer um Mundial, depois do Uruguai em 1930 e 1950. É um pequeno país no leste europeu, ainda a lamber as feridas da guerra. No ranking FIFA, o país balcânico começou o Mundial na 20.ª posição. Por si só, isto tornaria o sucesso da Croácia admirável, mas esta caminhada é ainda mais improvável do que seria de pensar. Não é por estarmos a falar de uma pequena e jovem nação que o feito da Croácia é visto como um milagre: é porque o futebol no país vive mergulhado num verdadeiro caos, onde impera a corrupção, a instabilidade, a falta de infraestruturas modernas e em que várias estrelas da selecção do país não são vistas com bons olhos pelos próprios compatriotas, que se dividem entre os que exultam com as conquistas da selecção e os que não esquecem, nem querem esquecer, aquilo que acreditam ser um sistema que está longe de ser limpo.
O escândalo que divide o país
O sucesso da Croácia não só neste Mundial - esteve em 10 das 12 últimas grandes competições, algo que só tem paralelo neste campeonato do pequenos países com Portugal - parece explicar-se com um misto de talento e improvisação.
Para chegar ao Mundial da Rússia, por exemplo, o caminho foi mais do que tumultuoso. Zlatko Dalic, o actual seleccionador, chegou ao cargo como interino antes do último jogo da fase de qualificação, frente à Ucrânia, depois da federação croata despedir Ante Cacic devido aos maus resultados e ao deteriorar da relação com adeptos e jogadores. Dalic encontrou-se com os jogadores pela primeira vez no aeroporto, antes da equipa embarcar para Kiev. A Croácia venceu por 2-0 e conseguiu um lugar no playoff onde bateria a Grécia.
Sem um plano ou um sistema verdadeiramente coesos a nível federativo, o futebol croata apoia-se essencialmente no trabalho do Dínamo Zagreb, clube da capital, fortemente financiado pela autarquia, para onde convergem os melhores treinadores e jogadores do país - dos 23 convocados da Croácia, 14 foram lá formados. Apesar de ser o maior dominador do futebol croata, estabilidade é palavra não conhecida no estádio Maksimir. Nos últimos 13 anos, o clube despediu 17 treinadores.
E se hoje a Croácia se divide entre aqueles que apoiam a selecção e aqueles que só a querem ver perder, a culpa também é do Dínamo Zagreb. Ou melhor, do homem que liderou o Dínamo de 2003 até 2016, Zdravko Mamic. Alguns dias antes do Mundial, Mamic, que chegou a ser também vice-presidente da federação, foi condenado a seis anos e meio de prisão por fraude relacionada com transferências de jogadores. No total, Mamic, que entretanto fugiu para a Bósnia, apoderou-se de mais de 15 milhões de euros do clube, numa teia de interesses e influências que arrastou, por exemplo, Dejan Lovren e Luka Modric. Ambos estão a ser investigados e Modric irá a tribunal acusado de perjúrio, depois de ter mudado o seu testemunho no julgamento de Mamic.
A defesa de Modric a Mamic caiu muito mal numa parte dos adeptos croatas, que começaram a ver o seu melhor jogador como alguém conivente com o status quo, com a corrupção que grassa no país - o julgamento de Mamic, por exemplo, teve de ser mudado de Zagreb para Osijek devido às estreitas ligações entre o antigo dirigente e a justiça local. Muitos não perdoam o jogador e são esses os mesmos que amanhã, se Modric levantar a taça de campeão mundial, não o vão aplaudir.
“Aqueles que sempre se opuseram ao poder de Mamic nunca irão perdoar aquilo que ele fez ao futebol croata”, começa por nos dizer Juraj Vrdoljak, jornalista croata do canal Telesport, antes de nos dar um exemplo daquilo que é uma sociedade polarizada face à sua equipa nacional: “Minutos depois de nos qualificarmos para a final, recebi uma chamada de um amigo que costumava ser um ávido adepto da selecção. Mas desta vez a mensagem dizia: ‘Não consigo sequer ter raiva. Estou só terrivelmente triste’. Enquanto boa parte de Zagreb festejava, ele foi dormir”.
Um atraso de décadas
Para lá dos escândalos de corrupção, há outro factor que torna esta final croata altamente improvável: o atraso do país face às potências europeias em termos de infraestruturas.
“São, em geral, bastante fracas. Só quatro equipas da liga têm relvados que cumprem os regulamentos da UEFA e o futebol de base é praticamente inexistente”, explica-nos Juraj Vrdoljak. Rúben Lima, lateral do Moreirense que jogou entre 2011 e 2015 na liga croata, onde passou pelos três principais clubes do país (Hajduk Split, D. Zagreb e Rijeka), diz que “em termos de condições o Hajduk e o Dínamo são um bocadinho aquilo que o Sporting e o Benfica eram antes de serem construídos os centros de estágio e os estádios novos. Nessa altura treinava-se nos dois ou três campos que existiam à volta dos estádios antigos e nada mais. Na Croácia ainda é assim”.
E então como se explica que no meio do caos, esta selecção tenha chegado a uma final de um Mundial? É sorte, é genética, é talento? Lima acredita que o facto dos clubes croatas apostarem cedo nos talentos, que rapidamente saltam com sucesso para os grande campeonatos europeus, pode explicar alguma coisa. “São jogadores muito evoluídos tecnicamente”, conta-nos. Já Vrdoljak diz que "as questões genéticas terão um papel importante no sucesso dos atletas croatas”, mas aponta algo mais, que pode estar relacionado com aquilo que boa parte destes jogadores assistiram durante os anos de guerra, violência e privação. “O que leva os jogadores mais longe? A necessidade de vencer apesar de todos os obstáculos que tiveram pelo caminho”. E isso não se ensina nas academias."
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