"Pois é, meus filhos. Está a chegar o primeiro Mundial da vossa vida. Ainda tão curta e já tão bela. Pelo menos aos olhos do vosso pai, sempre babado e capaz de sorrir até para uma fralda vossa. Suja.
Hoje é o dia de uma lição sobre memória. Uma lição sobre os retalhos que preservo dos meus oito primeiros Mundiais. Levo-vos oito Mundiais de avanço, já viram? Ao nono, está combinado, vamos estar juntinhos e a sofrer por Portugal. Com a mamã.
Sem pesquisas apressadas, sem perguntas a amigos enciclopédicos entendidos na matéria, viajo convosco de forma instintiva aos meus Campeonatos do Mundo. E, não se preocupem, levo comigo as cadernetas de cromos. Para nos rirmos de umas quantas personagens.
Qualquer desculpa é boa para ter o vosso sorriso à minha frente.
México 86
Em Estugarda o Carlos Manuel fez o Torres sonhar. E a mim também. Vocês têm de ver esse golo, um milagre. Bola ao ângulo superior esquerdo do Schumacher e depois os postes da baliza do Bento a defenderem tudo. E lá fomos nós para Saltillo.
Eu tinha oito anos e conheci o D10S Maradona nesse verão. Já vos falei dele, lembram-se? Era aquele senhor que pegava na bola e driblava ingleses como quem limpa o rabinho a meninos. Não se riam, o exemplo é completamente inocente.
Maradona, sim, numa final que vi em casa dos vossos avós. 3-2 contra os maus da Alemanha. Também gostava muito do Burruchaga e do Valdano, mas esses eram habitantes aqui do nosso planeta. Diego era outra coisa.
Portugal? Nem queiram saber. Eu e o vosso avô Sérgio ficávamos acordados até tarde, para nada. Ainda ganhámos à Inglaterra, mas depois houve para lá umas confusões e viemos cedo embora. Perdemos contra a Polónia e Marrocos.
Para começar foi bom. Pelo menos lembro-me de algumas coisas. Dos Mundiais de 78 e 82, népias, nadinha.
Itália 90
Vi em casa do Pedro Moisés, sim o dentista, o jogo inaugural. O Omam-Byik, dos Camarões, marcou de cabeça e a Argentina perdeu. Frangalhada do Pumpido. Camarões, sim. É um país africano, também nunca ouvi falar dele até 1990.
Portugal não foi lá e tive de falar com sotaque brasileiro durante um mês. Um mês em que todos os dias são domingo. Valdano, lembram-se meninos? Fui com o Brasil até aos oitavos-de-final, mas depois eles beberam água estragada – vamos dizer assim – e fiquei sem selecção.
Passou a Argentina do meu Maradona. E do Cannigia, um tipo que corria muito e que depois jogou no Benfica.
Mas sabem de quem eu gostei mesmo? De um velhote chamado Roger Milla, avançado daquele país esquisito que ganhou à Argentina. Camarões, isso.
O Milla marcava e bailava nas bandeirolas de canto. Num dos jogos roubou a bola ao doido do Higuita, o guarda-redes da Colômbia, e foi por lá fora. Ganda Milla! Na noite de São João vesti a camisola dele, mas perderam contra Inglaterra.
Por falar em Inglaterra. Foi por estes dias que comecei a gostar de jogadores alternativos. Como explicar…? Daqueles que jogam poucas vezes e não chegam aos jornais. Uma espécie de Will Grigg, aquele irlandês do Euro2016. Coisas de miúdos.
Steve Bull, da Inglaterra, Nico Claesen, da Bélgica, Frank Mill, da Alemanha. Maluqueiras.
Ah, a Alemanha foi campeã do mundo e em Itália nasceu um novo herói, o Toto Schillaci. Há uns tempos entrevistei-o para o Maisfutebol, bom tipo.
O Maradona? Acabou a chorar, sem taça. Desgraçado do Andreas Brehme.
EUA 94
O vosso velhote tinha 16 anos e teve autorização paterna para uma viagem a Vigo. Muito antes de Vigo conhecer Benni McCarthy. Foi lá que vi o Roberto Baggio a atirar um penálti para os céus de Los Angeles e o Brasil a festejar o tetra.
E lá fui eu com os amigos Daniel e Nelson para as calles galegas.
Meninos, não vos quero mentir, mas acho que vi todos os jogos desse Mundial. Vi uma Roménia deslumbrante, comandada pelo Maradona dos Cárpatos, Hagi; e uma Bulgária incrível, com o Kostadinov do FC Porto no ataque, o doido do Stoichkov a jogar muito e ainda dois jogadores do Sporting, o genial Balakov e o Iordanov.
Foi um mês espectacular, cheio de grandes jogos. O melhor? Brasil-Holanda, miúdos. 3-2 nos quartos-de-final, com o meu amigo Bebeto a fazer dois golinhos. Amigo, sim senhor. Entrevistei-o 22 anos depois disso, em casa dele, lá na Barra da Tijuca.
Esse Brasil tinha o Branco, o Raí, o Cafu, mas tinha sobretudo o Romário. Um craque, meninos, um bom malandro.
Portugal? Tivemos de esperar até 2002 para ter o nosso país num Mundial. Vocês são uns privilegiados. Isto dantes não era assim.
França 98
A bola vinha em balão, longa e incontrolável. Mas não para o Bergkamp, miúdos. O Dennis levantou o pé direito, a bola beijou-lhe a chuteira e ficou lá, até ser rematada para dentro da baliza da Argentina. Isto ao minuto 90, vejam bem!
Que momento, meninos. Estávamos mais de dez amigos, numa tarde de muito sol e calor, em frente a uma televisão pequena, lá em Pedras Rubras, terra dos vossos bisavós.
Essa Holanda tinha uma equipa excelente, com o Bergkamp, que eu adorava, mas também o Kluivert, o Davids, os manos De Boer, o Overmars, o Seedorf e o Van Hooijdonk.
Ficou no quarto lugar, atrás da melhor Croácia de sempre, a Croácia do Davor Suker. É agora dirigente da federação e falou com o vosso pai há uns tempos. Um craque, um pé esquerdo delicioso.
Mas o melhor de todos era o Zidane. Esse, o careca treinador do Real Madrid. Meninos, esse senhor era um génio. Elegante e perigoso. O Materazzi que o diga. Na final desse Mundial fez dois golos e estragou o dia ao Brasil. O Ronaldo teve convulsões no quarto do hotel, tudo muito mau.
Foi o Mundial dos 20 anos e o último sem o nosso Portugal.
Miudagem, está quase a começar. Acreditem, é um dos melhores meses do ano. Apertem bem os cintos, o papá vai levar-vos a uma viagem maravilhosa. Já compraram a vossa caderneta?"
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