"A pandemia da covid-19, para além do rasto de morte que tem deixado — muito por culpa de políticos eugenistas, diga-se —, está também a deixar de pantanas o Desporto, essa actividade que obriga a preparação cuidada e intensa numa base científica e que exige competição na procura da superação pelo rendimento do melhor resultado, enquadrado na rota de excelência e do reconhecimento do mérito. A questão é de vista desarmada: logo que seja possível um depois, como vai ser? Que retorno vai haver depois das forçadas paragens em que o tempo foge definitivamente a uns e intervala demasiado para outros? Como recuperar? O que acontecerá às modalidades colectivas limitadas ao jogo executado por memórias distantes e impedidas de ampliar a determinante coesão técnica, táctica, estratégica dos seus elementos?
Se para as modalidades individuais, mesmo com a brutal falta de calendarização conhecida que permita uma periodização de treinos objectiva e adequada, ainda é possível uma manutenção da preparação em nível razoavelmente elevado, para os desportos colectivos o necessário distanciamento físico — e não social, que desse houve e há num fartote quotidiano de diversas formas comunicativas — impede tudo aquilo que cada modalidade obriga. E não se pense que é apenas o Rugby, desporto colectivo de combate onde a conquista de terreno se faz num palmo de respiração comum, que é incompatível com a actual pandemia — olhe-se para o Vólei, que se diz seguro porque tem uma rede a impedir contactos e que, afinal, não separa a respiração conjunta de um rematador contra um bloco de dois ou três adversários. Já o treino do Atletismo em pista é possível com separações de dez metros, se em perseguição, ou de dois corredores, se lado a lado — e à velocidade mais próxima possível do exigido no alto nível competitivo.
Durante uns meses, as modalidades colectivas ficarão limitadas a uma competição onde apenas participará um reduzido grupo de atletas do alto nível e sujeitos a regras de controlo constante, de enorme exigência e verificáveis antes de cada jogo. Jogo que se disputará, por falta do melhor entendimento das coisas, na frente do betão ou de truques a mascarar a verdade das bancadas vazias. É o que vemos no actual retorno do futebol português. Aos adeptos da modalidade ou das equipas restará — teoricamente, porque na prática a ver vamos — o sofá de casa ou um espaço comum de grupos de 20 na frente de um ecrã gigante de televisão ou virados uns para os outros, num faz de conta emocional, a lançar gritos de ânimo ou desânimo que os jogadores jamais darão conta. Mas, num golo transmitido por terceiros, saltos e abraços pela emoção coletiva que afirma o sentimento de pertença, não. Serão jogos que, para atores e espectadores, vão ter o sabor insonso das coisas por obrigação, mesmo que se comentem as vitórias e as derrotas sob o eterno prisma do mesmo culpado de sempre.
Os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 já foram atirados para 2021, na quase certeza de que não serão realizados em terras japonesas, porque um novo adiamento será quase inevitável uma vez que, ao que se sabe, não haverá vacinas em tempo útil para permitir a necessária preparação dos atletas e para o controlo dos milhares de visitantes que chegariam de toda a parte do mundo. A isto junte-se o aumento da desigualdade conhecida das possibilidades preparatórias de ricos e pobres, com um desequilíbrio a aumentar muito entre uns e outros, entre aqueles que tiveram acesso às prevenções em tempo útil e aqueles que conseguiram, num resvés de aflitos, apresentar-se limpos de suspeitas infecciosas. E tudo numa mais que provável desvalorização de resultados. Porque a inexistência de factores de risco para os grupos etários jovens, nomeadamente para o grupo de 20/29 anos, dito saudável e ao qual pertencem a maior parte dos atletas, não passa de um mito — veja-se o caso português para dados de 31/5/2020: o grupo etário 20/29 representa 13,3% da totalidade de infectados, para 7,9% de infectados no grupo etário 70/79. Ou seja: o jovem grupo etário de 20/29 anos, não tendo praticamente qualquer risco de letalidade, constitui um risco enquanto grupo transmissor da infecção. O que exigirá cuidados especiais e testáveis para que seja possível iniciarem as suas práticas desportivas competitivas.
No fundo, os modelos de referência que atraem e seduzem e que estão na base da sequência circular da substituição rejuvenescida estarão longe do seu melhor, atraindo menos e abrindo espaços para outras naturezas que, insidiosas, se apoderarão do vazio com promessas de fácil atractividade e com apostas seguras, sem riscos aparentes ou dificuldades de acesso. Vai ser assim: por culpa daqueles que insistem em dar o nome de Desporto a tudo que mexe, ignorando as diferenças para a actividade física ou para o mero lazer de movimento e que insistem quer na sua insofismável e absoluta visão salutar, quer na dificuldade de entender que a importância do “Desporto para 2/2 Todos” se centra, acima de tudo, na preocupação pelo direito de acesso à prática desportiva competitiva por culturas de diferentes raças, religiões ou costumes, o e-sports, mexendo os olhos e os dois polegares, aí estará, com toda a naturalidade que possa aparentar nomeadamente mostrando a moralidade de preocupações antidopagem que usará como suas, para ocupar, com a sua enorme capacidade financeira, o vazio que ficará no buraco desta pandemia.
E se não houver percepção de que existem novas e diferentes exigências para salvaguarda do Desporto, preparando novos processos estratégicos de implementação e de acesso a apoios governamentais específicos, perder-se-ão, para além da importância da complexidade do seu modelo, as características do Desporto que definem o seu enorme valor social: integração, excelência, mérito.
Como em tudo o resto na vida, o Desporto que conhecemos pode, por ignorância, equívoco ou distracção, não ser para sempre. E o outro dito desporto que nos espera, o e-sports, viverá pelas vistas curtas de manutenção de uma ignorante mistificação primária: que o elemento central do Desporto é a Juventude."
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