"«Se não fosse o espaço e o tempo vossa excelência, por exemplo, seria um extraordinário atleta»
Dois pormenores
1. - Do que estávamos a falar na semana passada, excelência?
- Do tempo e do espaço.
- Ah, essas pequenas coisas!
- Sim.
- Tempo e espaço. Um, dois. Correr no momento certo e na direcção certa.
- Isso!
- É muita coisa, não?
- Talvez. De facto, há sujeitos que se lembram do espaço, mas esquecem por completo a dimensão tempo.
- Falta de memória.
- E assim correm - como dizíamos da outra vez - para o sítio certo, rapidíssimos, mas no momento errado.
- Esqueceram o tempo.
- Sim.
- E os outros?
- Os outros, têm uma excelente memória para o tempo. Correm no momento certo, na hora h, no momento decisivo e necessário, mas...
- Mas?
- ... na direcção errada.
- Espaço e tempo, duas variáveis Mas insisto. Não será complicado de mais?
- O mundo nunca foi simples.
- Teremos, pois, de treinar a velocidade, mas não esquecer o resto.
- Sim, excelência. O pequeno resto: o espaço e o tempo.
- Se não fosse o espaço e o tempo vossa excelência, por exemplo, seria um extraordinário atleta.
- Sim! Sempre tive essa ideia muito clara para mim.
- É que só lhe faltam mesmo esses dois pormenores, excelência.
- Sim, dois pormenorzinhos. O que são o espaço e o tempo ao pé da vontade e das ganas e etc.?
- Nada, excelência, nada.
- Pois.
Uma boca, muitos ouvidos
2. - Há um falar e dois entenderes, sábia frase do povo, excelência.
- Um sujeito fala e dois ouvem. E não ouvem o mesmo.
- Dois entendimentos, portanto, para cada frase.
- No mínimo.
- Pois. Se vossa excelência falar para onze sujeitos, com calções ou não, terá onze formas diferentes de entender a sua fala. Porque cada ouvido tema sua biografia.
- Exactamente: cada ouvido tem as suas experiências próprias.
- O ouvido não é um órgão anatómico, é um órgão biográfico.
- Não é pele, cartilagens,etc. Nada disso. É memória quase tudo.
- Exactamente, um órgão biográfico. É um belo termo.
- A minha história é em parte tudo aquilo que eu ouvi antes. E vi.
- Isso.
- Eu diria, de uma forma mais simples: a cada ouvido sua interpretação.
- Eu diria mais: se vossa excelência se isolar numa sala e falar sozinho para o espelho.
- Um monólogo?
- Um monólogo. Dizia: se falar sozinho para o espelho, o espelho, ou melhor, a imagem que dele vem, entenderá de forma distinta aquilo que vossa excelência diz.
- O meu reflexo não entende o que eu digo da mesma maneira que eu.
- O espelho ouve o que vossa excelência diz, e reflecte. É uma máquina de reflectir, o espelho.
Espelho, reflexão física, intelectual e ética
3. - Excelência, já reparou?
- Em quê?
- Falamos em reflexão do espelho e em reflexão de um sujeito. Não é por acaso.
- Não?
- Não, é o mesmo fenómeno. Um à superfície, outro lá dentro, mas o mesmo fenómeno.
- Reflectir é isto, excelência: olhar para aquilo que se faz no momento exacto em que se faz. O espelho permite isso. Um feedback imediato.
- Isso, excelência.
- Corrigir a posição dos braços e das pernas diante do espelho, como se faz nas academias de dança. Vossa excelência olha para o espelho e confirma se a sua posição e os seus movimentos são correctos.
- Isso.
- Mas deixe-me dizer uma coisa, excelência.
- Diga.
- Eis do que o mundo no geral precisava: um espelho que reflectisse não o exterior, mas o interior.
- Como assim?
- Um espelho em que se conseguisse ver o próprio pensamento no momento em que estava a pensar.
- Um espelho intelectual.
- Sim, um sujeito via à sua frente, nesse tal espelho de pensamentos, aquilo em que estava a pensar e corrigia, no próprio momento, o seu pensamento.
- Eventualmente com a ajuda de alguém no exterior.
- Sim, como um professor de dança, mas este professor corrigia o pensamento.
- Mais para cima, continue esse raciocínio, agora leve esse pensamento o mais alto possível. E etc.
- Possíveis indicações de um professor que corrigisse os pensamentos. Os pensamentos, não a fala.
- Isso.
- Mas faria mais sentido uma auto-correcção dos pensamentos. E para isso serviria esse espelho em casa, no quarto. Um espelho que reflectisse os pensamentos.
- Sim, tudo muito bem - mas também faz falta um espelho moral e ético. Etc.
- No fundo, é preciso reflectir. É o que falta.
- Como um espelho.
- Sim, como um espelho que pensa."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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