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terça-feira, 30 de abril de 2019

Palpitava o gigante humano...

"Um jogo curioso teve lugar pouco depois do fim da II Grande Guerra. Entre a Royal Air Force e uma equipa do Exército Português. Stanley Matthews foi figura. E o benfiquista Rogério também.

'Uma multidão que ri, que gesticula, que grita, é como uma trovoada. Um sol magnânimo cai triunfalmente sobre o estádio. Não é possível medir visualmente a grandeza disto. O gigante humano palpita, arqueja com uma grande emoção diferente dos outros jogos'. Era assim que se escrevia, de forma grandiloquente, na primeira página do Diário de Lisboa do dia 17 de Fevereiro de 1946.
A II Grande Guerra ainda pairava dolorosamente sobre a memória da Europa. Uma geração dizimada nas trincheiras.
A Royal Air Force representava como poucas a imagem dos vencedores dos nazis de Adolf Hitler.

Cavaleiros do ar
'Tributemos-lhes, numa apoteose, uma homenagem à sua gloria de seis anos de guerra!'
Pode não parecer, mas era de futebol que se tratava.
A RAF defrontava uma selecção militar portuguesa no Estádio Nacional.
'Lá vem os Hurricanes!', gritava a multidão.
'Centenas de espectadores agiram bandeirinhas com as cores das duas nações. Tudo, afinal, se prepara para uma festa e não para uma competição: aliados sempre! As mulheres mostram-se encantadas. Não se diga que a nossa Primavera não teve flores!'
Conseguem perceber a importância que este jogo ganhou na altura?
É que, ainda por cima, na equipa da RAF alinhava o mais extraordinário futebolista dos seus tempos: Stanley Matthews, o Feiticeiro do Drible.
Três benfiquistas batiam a pala na equipa militar lusa: Salvador, Francisco Ferreira e Rogério.
Os adeptos portugueses ficavam fascinados com os números grandes e bem visíveis que estavam cosidos nas costas das camisolas dos britânicos.
O general Óscar Carmona não falhou à solenidade.

Muito mais do que um jogo
Às vezes, nas buscas incessantes que faço sobre o futebol dos tempos de antanho, encontro autênticas peças de literatura. A prosa de Tavares da Silva é um exemplo excepcional do que acabo de dizer. Num jogo estranho, hoje caído no olvido. A Royal Air Force contra o Exército Português? Há que conceder-lhe um espaço na parede branca das recordações.
'A cidade despejou-se aqui. Todos os caminhos que vêm dar ao estádio são caudalosos rios humanos. Na praça da Maratona avançam impetuosamente as massas de espectadores ansiosos por encontrar lugar. Por vezes nota-se um arrepio. Ouve-se A Portuguesa. Em frente da tribuna, alinham-se as duas equipas. Os nossos, de bivaque na cabeça, fazem a continência. O grupo do Exército Português veste calção branco e camisola grenat da selecção nacional, com o escudo das quinas substituído pelo emblema militar - distintivo verde'.
Rogério entra com a gana invejável de fanático pela vitória. É ele que ameaça, aqui e ali, a baliza inglesa.
Matthews é ovacionado de cada vez que toca na bola com os seus pés de veludo.
Em quatro minutos, o resultado fez-se.
Rogério vai para cima de Franklin e de Scott, dribla ambos e remata sem contemplações; o guarda-redes da RAF não consegue segurar a bola que sobra para Peyroteo: 1-0 para os militares nacionais.
28 minutos decorridos.
Mercer contorna Serafim e entra na área. Pontapé rasteiro, seco: Azevedo batido - 1-1.
32 minutos.
O joga torna-se equilibrado mas o ritmo é lento.
Só que, lá está, é para além de um jogo. É um momento inesquecível de retorno à paz após anos de destruição do mundo.

Ninguém tinha dúvidas: os mestres tinham vindo a Portugal!
E já se tomava nota: o representante maior da Federação Inglesa, Raymond Glanning, confirmou oficialmente que a selecção de Inglaterra defrontaria Portugal no ano seguinte no Jamor.

Foi terrível! Tremendo! Portugal perdeu por 0-10!!!!
Tavares da Silva fechava livremente a sua prosa: 'Jogo emocionante.... Dois grupos orgulhosos sobre o formoso rectângulo. Cada um, por seu lado, vibrou e sentiu bem que o desporto é hoje uma coisa grande, um segredo que tem em si a força bastante para arrebatar as grandes multidões...'
Que sorte poder ler linhas como estas mais de setenta anos depois. E saber entender a importância dos momentos."

Afonso de Melo, in O Benfica

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